Cobertura

Uma mostra com os nossos males

O maior festival de cinema da América do Sul abre sua programação nesta quinta, pela primeira vez totalmente online e com reflexos diretos destes tempos pandêmicos no que exibe

TEXTO Luciana Veras

22 de Outubro de 2020

No filme de abertura, uma família abastada festeja as bodas de sua caçula Marian (Naian González Norvind)

No filme de abertura, uma família abastada festeja as bodas de sua caçula Marian (Naian González Norvind)

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo começa nesta quinta (22) sob o signo da virtualidade. Não haveria como ser diferente neste ano pandêmico, mas é curioso imaginar o maior festival do território sul-americano, que se espraia pela gigante metrópole que é “a maior cidade da América do Sul”, como canta Gal Costa em Baby, restrito às salas de nossas casas, aos computadores, smartphones e demais dispositivos onde seus 198 filmes poderão ser vistos. Sinal dos tempos, pois, é ver sua programação inteira na Mostra Play, a plataforma do evento, e não no guia que vira uma espécie de talismã de toda e qualquer pessoa que vai cobrir ou curtir a Mostra. 

Falando em programação, será possível “bater o centro” a partir desta noite, depois da cerimônia de abertura, a ser transmitida às 19h30, pelo canal da Mostra no YouTube. A maior parte das quase duas centenas de obras, oriundas de 71 países, estará “em cartaz” a partir das 20h e poderá ser vista até 4 de novembro. Há exceções e uma delas é o filme de abertura, Nova ordem (México/França, 2020), de Michel Franco, que chega à Mostra depois de levar o Grande Prêmio do Júri em setembro, no Festival de Veneza de corpo de jurados presidido pela atriz Cate Blanchett.

Nova ordem ficará disponível apenas durante esta sexta, 23 (a partir de 0h01 e até 23h59), com uma limitação de 1 mil views – ou seja, como se fosse projetado em uma sala de cinema com igual lotação. “É um filme polêmico, mas estamos em um ano que não é fácil para estar no Brasil, em nenhum sentido. É um ano de reflexão, de luto, e acho que podemos, sim, abrir com um filme forte, sobre o México, mas que reflete questões que têm a ver com o Brasil e com a América Latina”, pontuou Renata de Almeida, diretora da Mostra, na entrevista coletiva em que descortinou toda a programação, ocorrida no último dia 10.

De fato, trata-se de um filme forte. Vimos Nova ordem na cabine (virtual, claro) que a Mostra organizou. Após uma abertura em que picotam imagens rápidas, porém contundentes (uma jovem nua banhada por uma chuva verde, uma móvel sendo atirado de uma varanda), Michel Franco nos conduz por um cotejo imediato entre as realidades distintas a coabitar a Cidade do México: um casal de idosos precisa sair às pressas do hospital onde a mulher está internada, porque não existem leitos suficientes quando chegam dezenas de feridos, enquanto uma família abastada festeja as bodas da sua caçula Marian (Naian González Norvind) com Alan (Dario Yazbeck) com luxo, opulência, champanhe e muitos serviçais.


Cena do filme Nova ordem. Foto: Divulgação

O casamento é filmado com intimidade pela câmera de Franco, que explora certas nuances (os presentes em dinheiro que os noivos recebem, o cofre no closet) para que fiquemos atentos à iminência de algo a acontecer. Inevitável remeter a Parasita de Bong Joon Hoo quando vemos uma casa chique, com pessoas alinhadas e ricas, envoltas em uma redoma que julgam intransponível. No entanto, como em Parasita, justamente um dos destaques da 43a Mostra em 2019, a bolha vai ser estilhaçada com a chegada de “visitantes indesejáveis”, seguindo o que diz a breve sinopse do filme.

A nova ordem que se instaura, em menos de 1h30, espelha a luta por justiça social, a desigualdade crônica que caracteriza a Cidade do México – ou São Paulo, ou Recife, ou qualquer outra grande urbe da América Latina –, a sanha por reparação histórica e a urgência da revolta. Entretanto, retrata, também, a ascensão de um fascismo que não se controla e que, como tal, já não atende, nem obedece, a lado algum – e o terror, então, pode se abater sobre qualquer um. Militarização da sociedade, violência irrestrita, estupros coletivos, tortura, vigilância e punição são alguns dos elementos que Michel Franco usa para compor um cenário distópico, sim, mas com laços estreitos, ainda que exacerbados com as tintas ficcionais e com seu estilo, em certos momentos, estridente por demais, com que estamos a ver em vários países do planeta.

O final é aterrorizante, mas não menos do que toda a narrativa que se cinzela a partir da festa-gatilho do embate elite versus proletariado sempre explorado. Será exagero imaginar uma “nova ordem” assim? Ou o cinema segue a captar o espírito do tempo e, como vanguarda que sempre foi, está apenas a absorver as vibrações de controle e repressão a reverberar no mundo? Qualquer que seja a resposta, importante é ver o filme, de fato uma obra que enfeixa México, Brasil e América Latina. 

“Na Mostra, eu acho que tem os nossos males. A seleção ilustra o momento que estamos vivendo. A curadoria faz um pouco um trabalho jornalístico também. Aliás, não gosto de curadoria quando é muito vaidosa, quando, por exemplo, passa um filme que não tem nada a ver com a realidade. A gente se pauta muito pelo que está acontecendo no mundo. A pandemia já está presente na programação. Acho que daqui a dois anos, ou no ano que vem, teremos outros filmes sobre esse momento único. E temos questões políticas em vários outros filmes”, complementou Renata.

Como de hábito, a seleção traz obras que estrearam em latitudes relevantes da cartografia cinematográfica mundial – Sundance, Berlim, Cannes, Locarno, Veneza, Toronto. Da Berlinale, vem o iraniano Não há mal algum, de Mohammad Rasoulof, vencedor do Urso de Ouro; de Veneza, vem Nova ordem, o novo do filipino Lav Díaz, Gênero, Pan (premiado na Orizontti), e também Miss Marx, a recriação que a italiana Susanna Nichiarelli. Coronation, documentário de Ai Weiwei, repercute o confinamento em Wuhan, no início do surto provocado pelo novo coronavírus; do chinês Jia Zhangke, figura recorrente na Mostra e autor do cartaz desse ano, vem o documentário Nadando até o mar se tornar azul; e Abel Ferrara aparece duas vezes, com Siberia, exibido em Cannes, e com o documentário Sportin' life.

A Mostra Brasil oferta mais de 30 títulos, com a participação expressiva de realizadoras – Lucia Murat, Marcela Lordy, Daiana Toffoli, Viviane Ferreira, entre outras –, e um longa-metragem pernambucano: Curral, de Marcelo Brennand, com Thomás Aquino e Rodrigo Garcia como dois amigos que passam a trabalhar junto quando um deles se candidata a vereador em Gravatá (PE). Com esse enredo sobre eleições municipais, está na proa do que estamos a viver no Brasil de 2020.


Filme mexicano é exageradamente pesado. Foto: Divulgação

COBERTURA
A Continente está presente na 44a Mostra Internacional de São Paulo, como esteve em todas as edições desde 2015. Pela primeira vez, cobrindo o festival não in loco, e sim dentro da vereda possível, e buscando trazer recortes e informações interessantes nesse mar de quase 200 filmes. Agora, somos parte de um conjunto mais amplo de veículos e uma maior rede de cinefilia – sendo virtual, o evento pode ir além do território paulistano e abraçar todos os estados do país. “Mesmo que as salas tivessem reaberto antes, não teria condições de a Mostra acontecer, então, ao decidir por fazer online, nesse momento, conseguimos disponibilizar duas mil views de cada filme”, observou Renata de Almeida.

Isso é muito menos restritivo, por exemplo, do que as quatro sessões que aconteceriam nas salas de exibição, muitas delas com capacidade para 100 ou 150 pessoas. Faz falta, demais, ter a Mostra presencial. Sabemos, claro, que jornalismo e cobertura se constituem, também, no encontro, mas que sigamos, então, com a vontade de experimentar o festival por um outro viés e assim trazer todos vocês nessa jornada.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.


EXTRA
Onde ver: mostraplay.mostra.org
Todas as infos: 44.mostra.org
Preço do ingresso: R$ 6a

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