Os longas-metragens exibidos na terça e na quarta (23 e 24/1), reunidos nas mostras Olhos livres e Aurora (as duas passíveis de premiação, a primeira por um júri composto por jovens críticos, a segunda por um júri da crítica, do qual fazem parte as pesquisadoras e críticas pernambucanas Carol Almeida e Mariana Baltar), evidenciam essa fricção com o “chamado realista”. Alguns, como o documentário AraPyau – Primavera guarani (São Paulo, 2018), roteirizado, montado e dirigido por Carlos Eduardo Magalhães, eram um próprio “chamado” ou um convite – melhor, uma incitação a uma abordagem direta da realidade e à necessidade de nos contrapor ao que está dado.
Exibido na noite da quarta (24), em que o julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dominou o noticiário, os corações e as mentes do país inteiro, AraPyau foi apresentado pelo diretor e por uma liderança indígena, que ao subirem ao palco do Cine-Tenda, o principal espaço de exibição de Tiradentes, cumpriram alguns instantes de silêncio. “Como cineasta, tenho a ferramenta do cinema para poder contar essa história de um povo maravilhoso, de um povo que tem muito a nos ensinar, de resistência, de resiliência e de nunca perder a fé”, declamou Magalhães. Foi o suficiente para que os aplausos viessem sob forma de reconhecimento da urgência em se agarrar a quaisquer frestas de resistência possíveis.
Na narrativa, uma câmera livre, com planos longos, acompanha vários guaranis em suas tekoas, ou agrupamentos, e os planos para a ocupação do pico da Serra do Jaraguá, ação levada a cabo em setembro de 2017 (e que, inclusive, deixou 600 mil paulistanos sem sinal de televisão). Alguns personagens de AraPyau já haviam sido registrados por Vincent Carelli em Martírio (2016), porém o documentário de Vincent se espraia por outras searas de abordagens. Aqui, aqui eles aparecem com maior inteireza e intimidade em seus rituais, seus cânticos e suas atitudes cotidianas, a fim de preservar uma cultura e lutar pela manutenção do seu território.
“Aos 10, 11 anos, os jovens já começam na luta. A gente sabe o que é sofrer e lutar pelo que é nosso. Se é para ir para a floresta, a gente pode ter até medo, mas do medo vem a luta, como diz Nhanderu”, explicou a liderança guarani Pará, que havia subido ao palco e conversou com a imprensa no debate transcorrido na manhã desta quinta (25/1). Nhanderu, na cosmogonia guarani, seria o criador, o responsável pela existência de todos. E, também, a razão de seguir em constante e contínua batalha.
A noção de “preservação” e “luta” também perpassava filmes distintos como O nó do diabo (Paraíba, 2017), conjunto de cinco episódios rodados por realizadores paraibanos sob a égide do terror, mas de extrema lucidez na abordagem do racismo arraigado na História do Brasil, e Imo (Minas Gerais, 2018). São duas possibilidades de um chamado realista expandido, por assim dizer. Em Imo, a diretora Bruna Schelb Corrêa prescinde das palavras para entrelaçar três contos de mulheres em situação de violência de gênero. “Se eu me recuso a falar, se opto por não ter palavras, reforço a força das imagens. É um filme feito para as mulheres que conseguem falar sobre o que acontece em suas vidas e também para ajudar aquelas que não conseguem. Sem diálogos, você pode ver e pensar sobre isso. Cria-se um poder de comunicação maior do que quando se usam as palavras”, comentou Bruna à Continente.
A narrativa é “experiência pura”, como definiu a crítica Glênis Cardoso, de Brasília, convidada pela mostra para participar do debate. E, ancorando-se em exemplos e procedimentos de cineastas como Chantal Akerman (1950-2015), Bruna de fato perseguiu um filme, um estado de coisas, que transpassasse alegorias e força bruta para explicitar o machismo nosso de cada dia – o mesmo machismo e a mesma misoginia empregados, em ampla escala, no golpe que destituiu Dilma Rousseff, presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos, em 2016.
Duas outras mazelas – antigas, contudo ainda irremediavelmente contemporâneas – foram canalizadas em O nó do diabo e Navios de terra, ambos da mostra Olhos livres. Com direção de Ramon Porto Mota, Ian Abé, Gabriel Martins e Jhésus Tribuzi, o primeiro, pensado como uma série de televisão, acompanha os acontecimentos e as relações entre senhores e vassalos/escravos em uma fazenda. O signo do horror, explícito em cada um dos episódios, serve para escancarar a violência e brutalidade presentes no modo como brancos tratavam e ainda tratam negros. Interessante perceber que a narrativa, iniciada no tempo presente e depois mergulhada até o século XIX, ainda que desigual, acerta no protagonismo dado aos personagens negros e também ao sugerir uma maior apropriação de suas matrizes, suas raízes e seus potenciais tanto mais estejam próximos do passado.
Em Navios de terra, segunda parte de uma trilogia em que a diretora Simone Cortezão explora a extração mineral (combustível também da sua tese de doutorado), a ficção é escolhida para abordar “as montanhas que desaparecem”. Como bem lembrou a crítica Cecília Barroso, de Brasília, ao apresentar o filme no debate realizado no Centro Cultural Yves Alves, “em um semestre, mais da metade de minério que sai do Brasil vai para a China e a partir daí, a narrativa sugere várias conexões entre Ocidente e Oriente”.
Um ponto crucial é que Navios de terra também fala da tragédia de Mariana e de tantas outras que estão por vir. “Existem 47 barragens que podem explodir a qualquer hora. O que aconteceu é que Mariana atingiu o Rio Doce. Eu nasci no Vale do Aço, sei que esses desastres acontecem e são esquecidos todos os dias. Mariana é um lugar de vulnerabilidade e o filme busca essas bordas, esses lugares de invisibilidade, como um próprio navio, que é um lugar de espera”, destacou Simone.
Seu navio, a transportar o minério que sai do Brasil com uma tripulação cansada, guiado por computadores, é uma metáfora de um país que parece à deriva. Talvez essa seja uma das principais constatações do conjunto de filmes reunidos na cidade que leva o nome do mártir da Inconfidência, de alguém que ousou questionar a Coroa Portuguesa e propor a independência do Brasil – obras essas que versam sobre povos autóctones, os negros que nos reinventaram e as mulheres, populações-chaves nas estatísticas de dizimação.
Não por acaso, Tiradentes foi citado no discurso de Lula pós-julgamento. Segue a chamada à realidade.
LUCIANA VERAS é repórter especial da revista Continente.
*A repórter viajou a convite da 21ª Mostra de Tiradentes.