No evento criado pelo ator e produtor Robert Redford, o grande vencedor foi The miseducation of Cameron Post, de Desiree Akhavan, um drama sobre conversão gay ambientado no início dos anos 1990. Em Tiradentes, o prêmio Helena Ignez 2018, dado pelo júri da crítica a um destaque feminino nos filmes que competiam nas mostras Aurora (longas) e Foco (curtas), foi para Julia Katharine, atriz e roteirista de Lembro mais dos corvos, de Gustavo Vinagre. Uma mulher trans em um filme que é, e somente só, sobre ela e suas experiências e vivências. Um prêmio político, assim como o do festival norte-americano.
São tempos políticos estes que estamos vivendo, não há como negar. Baixo centro, filme de Ewerton Belico e Samuel Marotta, levou o prêmio principal desta que foi a 21ª edição da mostra, o troféu Barroco, dado pelo júri que continha duas pernambucanas, a crítica e pesquisadora Carol Almeida e a professora e pesquisadora Mariana Baltar. Em Baixo centro, debatido com a participação da Continente na mesa, uma longa jornada noite adentro conecta cinco personagens ora atraídos, ora repelidos pelo magnetismo de uma Belo Horizonte escura, intimidante, porém ocupada por seres que resistem. “O filme é, de certa forma, sobre esses estilhaços de cidade e o fracasso de um projeto modernista no Brasil”, definiu Belico.
O interessante da Mostra de Cinema de Tiradentes transcende a quantidade de troféus distribuídos (poucos, inclusive, se compararmos a tantos outros festivais). É um evento coeso, de programação balizada pela curadoria de Cleber Eduardo e Lila Foster, este ano sob o tema Chamado realista. Todos os filmes, sem exceção, tangenciavam essa proposta, ora confrontando a realidade tal qual ela se apresenta (como Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans, e sua bela reflexão sobre o valor do trabalho em um país que só tende a odiar os trabalhadores) e ou se evita (Antes do fim, de Cristiano Burlan, exibido na mostra Olhos livres, acendia, com lirismo e delicadeza, uma questão: por que não falar sobre suicídio?), ora se distanciando dela – caso de Era uma vez Brasília, de Adirley Queirós, mas que na verdade só foge, em tese, da realidade, pois mescla ficção científica e distopia para falar de um Brasil cada vez mais atual.
O quebra-cabeça de Sara (2017), curta-metragem do cineasta carioca Allan Ribeiro, era também uma síntese deste Brasil. Filmado com o celular dele, é um breve retrato de Sara, a sua própria diarista, e de como ela lida com a descoberta de que a filha, agora, tem uma namorada. “Vejo o filme como sendo sobre tolerância, algo em falta não só no Brasil, mas no mundo. A Sara é uma pessoa que assume seu preconceito, que fala de religião mas não esconde que está na luta para entender e aceitar a escolha da filha”, comentou o diretor à Continente.
Orçada em R$ 2,7 milhões, esta 21ª edição ratificou o que é, talvez, o maior marco identitário de Tiradentes. “Continuamos sendo uma plataforma de lançamento do cinema independente”, pontua Raquel Hallak, coordenadora da mostra. “Mas continuamos acompanhando não apenas as novas tecnologias e as produções dos jovens realizadores, como também gerando reflexão. Foram 34 debates nesta edição apenas. Recebemos filmes de 15 estados”, acrescenta. A fecundidade da produção contemporânea se reflete, sempre, em Tiradentes. A julgar pelo que se viu, pelo recorte político e pelo convite a um chamado realista, 2018 tende a ser um ano em que o Brasil se verá, cada vez mais matizado, contraditório, perigoso e plural, e decerto se problematizará nos filmes do porvir.
LUCIANA VERAS é repórter especial da revista Continente.
*A repórter viajou a convite da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes.