Reportagem

De volta ao passado ou ao futuro? [parte 2]

Pandemia do novo coronavírus expôs as mazelas das sociedades e impõe ao mundo rever suas ações e projetar mudanças

TEXTO Débora Nascimento

01 de Junho de 2020

Uma das realidades do isolamento social trazido como prevenção à propagação do vírus foi a adoção massiva do 'home office'

Uma das realidades do isolamento social trazido como prevenção à propagação do vírus foi a adoção massiva do 'home office'

Foto Divulgação

[continuação do especial De volta ao passado ou ao futuro?ed. 234 | maio de 2020]

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Se possui um inegável aspecto desagradável e claustrofóbico, a quarentena, por outro lado, vem servindo também como uma espécie de laboratório para diversos setores da sociedade, ao forçar a aplicação de soluções que já vinham sendo discutidas, como o home office e videoconferências, que seriam maneiras de driblar a conturbada mobilidade urbana, economizar emissões de gás carbônico, gastos das empresas com energia elétrica e tempo de deslocamento do funcionário – assim como as aulas, consultas jurídicas e médicas à distância.

“Tenho recebido novos clientes que já chegam aceitando a nova modalidade remota, que possui até dimensões positivas”, relata o psicanalista Carlos Ferraz. “Uma cliente, por exemplo, disse que provavelmente gostaria de continuar com a consulta virtual, porque ela se sentia mais confortável na casa dela, evitava o tempo no trânsito, a dificuldade de estacionar e ficava mais à vontade para se expressar, não tendo a minha presença física. Outra pessoa pediu para fazer a consulta só por áudio. As experiências são muito variadas. Num primeiro momento, atender pela tela foi difícil, mas a nossa capacidade de adaptação é incrível. De modo a imaginar a possibilidade de poder trabalhar de forma remota. O Conselho (Federal de Psicanálise) já aceita esses atendimentos em limites bastante restritos. Mas, com a pandemia, esses limites foram afrouxados. Imagino que, pós-pandemia, esse é dos aspectos que vai mudar na vida cotidiana. Imagino, no futuro, no consultório, ter uma tela maior. Antes da pandemia, já tive clientes lamentando que precisavam sair da terapia porque moravam muito longe do meu consultório”.

As profissões e empregos vão sofrer transformações depois da pandemia, que ainda não sabemos exatamente como serão. Mas já há tendências. “Pra começar a pensar num futuro do emprego, primeiro vamos ver que existiam contextos múltiplos. Então, essas áreas de emprego vão ser afetadas de formas diferentes. De uma maneira muito positiva, neste momento, se desmistificou, por exemplo, a autonomia do trabalhador no home office, quando antes se dizia que o gerente tinha que estar em cima, senão o funcionário não trabalhava, isso caiu por terra. Mas a gente sabe que isso não é a realidade da maioria do Brasil. O terceiro setor, o setor de serviços, tem uma força enorme nos negócios e está sendo afetado”, avalia o antropólogo Léo Lima, do Porto Digital, profissional interdisciplinar que trabalha na indústria de tecnologia com foco em produtos inovadores.

“Já existia uma tendência à automação. Por exemplo, a automação de atendimento do McDonald’s. Agora, provavelmente, vai ser automatizada a produção do hambúrguer. Vai haver um maior investimento em automação. O programa Pequenas empresas, grandes negócios vai começar a mostrar cases de sucesso com automação. Pode ser que a gente tenha, agora, o momento ideal para a aprovação do carro autônomo. Você preferiria, atualmente, pegar um Uber com uma pessoa ou um carro apenas autônomo? Um carro autônomo vazio que poderia, inclusive, nos intervalos das corridas, liberar uma nuvem de desinfetante dentro do veículo. Parece um sistema bem mais adequado ao momento que vivemos, de pandemias e de futuras pandemias. Somos programados para obedecer, mas quem é bom em obedecer mesmo é a máquina”, ironiza.

Para o antropólogo, a tão falada “uberização” do trabalho, uma metáfora para a precarização do trabalho, é um conceito que parte do ponto de vista da classe média, que acreditava que, estudando, teria acesso a empregos, como um direito inato. “Mas o trabalhador que nasceu no CEP errado viu uma melhora das condições de trabalho. Outra coisa: será que a gente vai conseguir fazer essa mudança tão rapidamente, a ponto de capacitar as pessoas, para que elas se tornem esses funcionários digitais de que o mundo tanto precisa? E será que se precisará de tantos funcionários digitais assim, a ponto de conseguir empregar todo mundo? Haverá automação dos serviços legais, médicos. Talvez a automatização barateie e democratize o acesso a serviços de advocacia, arquitetura”, conjectura. Na área jurídica, já há softwares que criam e avaliam processos, de acordo com a legislação vigente de cada país, e apontam rapidamente erros em documentos produzidos por humanos – o que, por exemplo, faria diminuir a quantidade de advogados em um escritório.

Mas, nesse contexto, é possível serem criadas novas vagas de empregos, novas profissões ou novas formas de emprego?

“Algumas profissões antigas vão ganhar novas funções, como atuantes em outras esferas. Produtores de eventos vão virar produtoras de lives e presença digital. A pessoa que vendia pessoalmente vai aprender a usar o Instagram. Essas profissões do futuro vão existir, porque não são profissões do futuro, são profissões do presente. Ninguém declarou que existia a profissão de youtuber ou influencer, no entanto, elas passaram a existir. A gente tem que se entender como elemento ativo da construção desse novo normal, desse novo ideal social, desse novo pacto social, que já vem se esgarçando há tanto tempo. A gente tem que reforçar: qual é o novo pacto social? Qual é o futuro que nós queremos construir juntos? Quais são as profissões, cargas horárias, condições de trabalho que queremos ter? Qual é o novo normal que nós queremos forjar juntos, olhando pra todo mundo? São perguntas que a gente precisa se fazer para evitar que os outros ditem”, aponta Léo Lima.

No artigo 7 predictions for a post-coronavirus world, publicado em abril na plataforma de textos Medium, a mestre em economia e finanças Emma Rose Bienvenu listou algumas possíveis mudanças: 1) crescimento de empresas de serviços digitais, de serviços de entrega de alimentos, comércio eletrônico; 2) aumento do tráfego de mídia social e acentuada queda nos gastos com anúncios, atingindo empresas de produção, agências de publicidade, estações de rádio e TV; 3) o trabalho remoto se tornará o padrão e a tecnologia em torno dele será aprimorada, causando desaceleração no setor imobiliário comercial, depois o trabalho remoto poderá ser desempenhado por trabalhadores altamente qualificados em países de baixo custo; 4) a telemedicina será recorrente e haverá inovação tecnológica para sua melhor aplicação; 5) metrópoles vão estabelecer sistemas permanentes de vigilância de pandemia, empresas e estádios realizarão monitoramento de sintomas e temperatura corporal; 6) a crise da dívida estudantil diminuirá à medida que o ensino superior se mover para o online; 7) fronteiras nacionais e regionais usarão triagem biométrica para detectar vírus mortais e impor quarentenas obrigatórias aos viajantes; após uma onda inicial de isolacionismo, quando a próxima pandemia ocorrer, os sistemas globais de monitoramento e geração de relatórios a detectarão mais cedo.

Outra mudança importante que deve ocorrer será na forma de consumir. Segundo uma pesquisa global da consultoria EY, que entrevistou de forma online 5 mil pessoas, nas três primeiras semanas de abril, 44% foi o aumento das vendas por e-commerce no Brasil e 78% das pessoas consultadas saíram de casa apenas para comprar itens como alimentos e remédios. O levantamento aponta quais comportamentos de consumo devem permanecer após a pandemia: 31% dos consumidores acreditam que não terão os gastos alterados; 25% devem gastar mais com itens essenciais, como saúde; 22% acham que vão gastar um pouco menos; 13% planejam fazer cortes profundos nos gastos e 9% pretendem gastar mais em todas as categorias de consumo, como se não houvesse amanhã – a propósito, o arriscado uso de dinheiro em papel, pela possibilidade de contaminação, está em vias de ser amplamente substituído por transações em aplicativos móveis.

O especialista em tecnologia e inovação Fernando Barra, no livro Meu emprego sumiu, lançado em plena quarentena, aposta na autonomia como nova realidade trabalhista. “Em um futuro próximo, o modelo de contratação e retribuição salarial também mudará, aproximando-se do modelo atualmente exercido por profissionais liberais autônomos, onde um contrato será feito para realizar um conjunto de tarefas e não mais um pagamento fixo por um mês de trabalho. Cada vez mais, especialistas trabalharão em plataformas onde diversas empresas irão disponibilizar projetos a serem realizados, e estes especialistas poderão escolher em qual projeto desejam trabalhar e por quanto tempo. Plataformas de compartilhamento que pagam comissão para profissionais liberais vão crescer cada vez mais. Modelos como o Uber se expandirão para outras áreas, além da entrega e logística. Um especialista vai trabalhar para mais de uma empresa ao mesmo tempo, em projetos distintos e com equipes diferentes, recebendo por cada tarefa realizada”, aponta.

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Nesse contexto dos empregos informais, estão os artistas, que vêm ajudando os quarentenados a suportar o confinamento, seja através da literatura, da música, do cinema... Mas esses artistas também estão em busca de sobrevivência. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, no ano passado, o setor movimentou R$ 190 bilhões no país, gerando cerca de 2,5 milhões de postos de trabalho. Mas as perdas para a cultura, neste ano, são estimadas em R$ 46 bilhões. Sem contar que a situação já estava agravada pela diminuição do Fundo Nacional de Cultura, que, em 2019, foi de R$ 995 mil, contemplando apenas sete projetos (em 2010, foram liberados R$ 344 milhões). Para se ter uma ideia do impacto, a indústria mais rentável do setor cultural, a cinematográfica, teve, até março, uma perda de US$ 5 bilhões (metade desse valor é referente ao fato de a China ter fechado 60 mil salas de cinema) – o valor estimado, com o prolongamento da quarentena, é de US$ 15 bilhões.

“Para além de artistas consagrados pela mídia televisiva e pelas redes sociais, a grande maioria dos/as trabalhadores/as e técnicos das artes e das culturas se veem, desde sempre, relegados/as à escória da sociedade”, afirma o ator, produtor, diretor de teatro e professor do curso de Artes Cênicas da UnB, Érico José. “No contexto da pandemia, a classe artística brasileira está agonizando. A situação é gravíssima: espaços culturais sendo fechados por falta de público e, consequentemente, de atividade artística e financeira, deixando um rastro enorme de dívidas para quem dirigia tais locais, contratos sendo extinguidos pela falta de perspectiva de retomada das atividades, artistas à míngua, sem trabalho, sem recurso, sem alimentação. O panorama é calamitoso”, pontua.

Para ele, há dois caminhos que podem amenizar o quadro catastrófico: “O suporte oficial, que é o que se espera de um país democrático numa situação complexa como esta, e o suporte informal, que é, infelizmente, o que vem funcionando efetivamente no momento. O suporte oficial consistiria em propostas conjuntas das instâncias governamentais (municipais, estaduais e federal) em prol da classe artística, com alternativas de projetos virtuais de larga abrangência e com diretrizes muito claras, para que a parcela atingida mais agudamente pudesse ter acesso aos benefícios públicos como contrapartida da aprovação de projetos. Também poderiam ser abertos editais antecipados para realizações no próximo ano, com liberação de parte das verbas ainda neste período de pandemia. Sabemos que há ações nesse sentido, mas elas estão vinculadas, em sua maioria, a instituições culturais que se sensibilizaram com a real situação de desamparo de artistas e técnicos do país. E, exatamente por serem ações específicas, não contemplam a grande maioria dos artistas necessitados”.

O professor lembra que há também algumas ações governamentais em alguns estados e municípios, mas que são casos específicos. “Caso houvesse uma preocupação séria e consistente da Secretaria Especial de Cultura, veríamos um empenho em nível nacional. O segundo caminho, o do suporte informal, é o que tem acontecido em larga escala no país, com artistas abrindo vaquinhas online, lives solidárias, amigos/as artistas em situação financeira mais equilibrada apoiando diretamente os/as demais, com comida, contribuição financeira e outras alternativas. É realmente lamentável ver que a informalidade está em todos os extratos da sociedade e revela o quanto o Brasil precisa regular e equiparar as políticas públicas, visando um tratamento digno a todas as camadas da sociedade, inclusive a artística.”

O produtor cultural, pesquisador e autor do livro Música Ltda: o negócio da música para empreendedores, Leonardo Salazar, destaca que a interrupção abrupta dos shows programados, ocasionada pela pandemia da Covid-19, fez desacelerar, mundialmente, toda a cadeia produtiva musical, por tempo indeterminado. Para se ter uma dimensão das perdas, entre os meses de março e maio de 2019, foram realizados, em média, 6,6 mil shows e eventos por mês em todo o Brasil, com arrecadação média de R$ 11,3 milhões mensais em direitos autorais.

“Esse momento de crise econômica também é um momento de reinvenção para todos os agentes da indústria da música: novos modelos de negócios, novas fontes de renda, novas estratégias comerciais. Sem dúvida alguma, cada artista deverá encontrar seu caminho para um destino comum: a transformação digital. A maior parte do público consumidor de música já era digital, móvel e conectada. Uma parte dos artistas ainda não havia percebido essa tendência. O novo coronavírus serviu para acelerar essa transformação digital, necessária e inevitável dos agentes do show business em busca de novas soluções. O princípio básico do negócio continua o mesmo: o artista entrega sua música e recebe de seu público algo em troca. Mas as iniciativas do passado não garantem a sobrevivência no futuro. Para novos problemas, novas ideias. O artista deverá usar sua criatividade também para tocar a sua carreira e monetizar seu talento. Para começar essa nova empresa, deixo duas pistas: 2/3 dos brasileiros acessam o YouTube para ouvir música; e o brasileiro acha justo pagar em média R$ 10 por um disco e R$ 23 por um show”, afirma.

Em debate no canal Escola da Cidade (YouTube), o advogado e jornalista especializado em tecnologia Ronaldo Lemos faz um panorama de como será viver em sociedade em um mundo pós-pandemia: “Câmeras termais medindo a temperatura da pessoa para, por exemplo, entrar num show. A pessoa será abordada por um agente público. Haverá preocupação com biossegurança. Isso vai fazer parte do plano de cada cidade”. Essa será a forma de voltarmos a frequentar ambientes fechados e coletivos, como shoppings, supermercados, aeroportos, cinemas, teatros, universidades, escolas. Por ora, sem vacina e tratamento eficaz, a única forma de se proteger é o isolamento. “O novo coronavírus não é um problema individual. Ou todo mundo trabalha para resolver o problema ou o problema não se resolve. A recuperação rápida de Taiwan, China e Coreia do Sul mostra esse pensamento coletivista. O vírus expôs os limites de cada sociedade”.

Em meio às discussões sobre os impactos da pandemia na economia, uma palavra inadequada tem aparecido como lugar-comum: oportunidade, usada em frases como “oportunidade de negócios”. Felizmente, Ronaldo Lemos foi uma das raras vozes que se colocaram contra o seu uso. Interrompeu o debatedor Guilherme Wisnik para que não a utilizasse: “Não gosto de usar a palavra oportunidade, agora é sobrevivência”. E completou que o Brasil tem chance de se recuperar economicamente, porque é um grande produtor de alimento. “Nessa crise, as pessoas podem adiar comprar carro, celular, roupa, tudo isso pode ser deixado para o ano que vem. Mas comida não dá para adiar. E a China é nosso maior importador. O Brasil não é complementar com a economia dos Estados Unidos. Os dois países concorrem com a produção de suco de laranja, carne bovina, soja e várias commodities.

Para não permanecer em desvantagem na corrida tecnológica, Ronaldo Lemos afirma que o Brasil precisa, o mais rápido possível, de 5G (essencial para “a internet das coisas”, a próxima fase das tecnologias de telefonia celular, que conectará qualquer objeto à rede). “Se tiver, criará as bases de uma indústria de inovação. A gente não tem indústria de microchips, não tem uma indústria de plataformas de internet. O 5G muda a forma como a cidade se organiza: 3D em tempo real, ônibus que se conectam, telemedicina, poder ser operado à distância. O Brasil precisa ser, além de consumidor, produtor de tecnologia. Se o 5G não chegar, vamos apenas consumir.”

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No campo da política, algumas tendências pós-pandemia vêm sendo apontadas por especialistas: recrudescimento dos nacionalismos, da xenofobia, fechamento de fronteiras, discursos contra a globalização, o discurso político abrangerá a ciência (Luc Ferry, filósofo); retorno do localismo, reencontro com o ideal comunitário, abalo na verticalidade do poder das elites, fim do mito do progresso e da prevalência do materialismo (Michel Maffesoli, sociólogo); possibilidade de vincular o patriotismo à saúde pública e à vida de sua comunidade, desmilitarizar o patriotismo norte-americano (Mark Lawrence Schrad, professor de ciência política); constatação de que o setor público deve assumir uma responsabilidade direta pelo desenvolvimento e fabricação de medicamentos (Steph Sterling, vice-presidente de advocacia e política do Roosevelt Institute).

Para a cineasta canadense Astra Taylor, diretora do documentário O que é democracia? (2018), em depoimento à organização de jornalismo norte-americana Politico Magazine, a pandemia mostrou que tanto as reivindicações tidas como impraticáveis, como o cancelamento de dívidas para empréstimos estudantis e dívidas médicas (exigidas em 2011 pelo Occupy Wall Street), agora estão sendo discutidas pelos políticos e postas em prática. “Desde o início, os despejos eram evitáveis; os sem-teto poderiam ter sido alojados e abrigados em prédios do governo; a água e a eletricidade não precisavam ser desligadas para as pessoas que estavam atrasadas em suas contas; licença médica paga poderia ter sido um direito para todos os trabalhadores; pagar sua hipoteca com atraso não precisava levar à execução de uma hipoteca; e os devedores poderiam receber perdão da dívida.”

Trump já congelou os juros dos empréstimos para estudantes, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, suspendeu todas as dívidas médicas e estudantis. Democratas e republicanos discutem a suspensão da cobrança ou o cancelamento definitivo de empréstimos para estudantes. Já no Senado brasileiro, foi apenas aprovada a suspensão de pagamento do Fies durante a pandemia.

“É claro que, em uma crise, as regras não se aplicam – o que faz você se perguntar por que elas são regras em primeiro lugar. Esta é uma oportunidade sem precedentes de não apenas apertar o botão de pausa e aliviar temporariamente a dor, mas de alterar permanentemente as regras para que milhões de pessoas não sejam tão vulneráveis, para começar”, pondera Taylor.

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A quarentena não somente teve um impacto negativo na economia, mas também surtiu, mesmo que temporariamente, efeitos positivos no meio ambiente. Em 22 de abril, foi comemorado o 50o ano do Dia da Terra e, coincidentemente, houve um “respiro” no planeta. Com poucas fábricas funcionando, menos automóveis nas ruas e raros aviões no céu, o impacto positivo foi percebido em diversos países. Imagens feitas por satélites da Nasa e ESA (Agência Espacial Europeia) mostram menos concentração de dióxido de nitrogênio (NO2) na China, em janeiro e fevereiro, período da quarentena. Com o retorno, voltaram a ser 50% maiores do que no período anterior – dados do Centro de Pesquisa em Energia e Ar Puro.

De acordo com a Universidade de Columbia, as emissões de monóxido de carbono em Nova York diminuíram 50% em comparação ao ano passado. Na capital paulista, também caiu pela metade, logo na primeira semana da quarentena. A Itália teve redução da poluição atmosférica, assim como a Índia – moradores do norte do país puderam ver parte da cordilheira de Dhauladhar, no Himalaia, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial.

Com menos carros e humanos nas ruas, animais passaram a circular livremente em áreas urbanas do Reino Unido, Tailândia, Índia e África do Sul. Peixes puderam ser vistos nos canais de Veneza, antes turvos pela circulação de barcos. A quarentena também diminuiu o ruído sísmico da crosta terrestre – fenômeno detectado por geólogos em várias partes do planeta. A diminuição pode facilitar a detecção de terremotos leves e pequenos abalos sísmicos.

Por outro lado, no Brasil, o período não é uma trégua à natureza, mas de aumento no desmatamento – apenas em abril, as queimadas cresceram 64%, em relação ao mesmo mês no ano passado, e 55%, no acumulado do ano, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O desmatamento, somado ao período de seca na região amazônica entre junho e outubro, favorece as queimadas, que podem ser piores que as do ano passado. Elas ainda costumam provocar graves problemas respiratórios nos moradores das áreas afetadas. Durante as queimadas de 2019, as internações mensais nos nove estados da Amazônia foram de 5 mil crianças. Com o colapso no SUS, devido à Covid-19, pode-se agravar a tragédia humanitária na região – que é apontada pelo ecologista David Lapola como possível local da próxima pandemia, devido à invasão humana aos habitats dos animais por causa do desmatamento.


Queimada em Rondônia, em setembro de 2019. Enquanto a quarentena trouxe um “respiro” para a natureza em outras partes do planeta, no Brasil, aumentaram as queimadas e o desmatamento na Região Norte. Foto: Bruno Rocha/Foto Arena

“O coronavírus é algo sério o suficiente, mas vale lembrar que há algo muito mais terrível se aproximando”, alerta Noam Chomsky, na Jacobin Brasil. “Estamos correndo para o desastre, algo muito pior do que qualquer coisa que já aconteceu na história da humanidade, e Trump e seus lacaios estão à frente disso, na corrida para o abismo. De fato, há duas ameaças imensas que estamos encarando. Uma, é a crescente ameaça de guerra nuclear, exacerbada pela tensão dos regimes militares e, claro, o aquecimento global. Ambas podem ser resolvidas, mas não há muito tempo, e o coronavírus é terrível e pode ter péssimas consequências, mas será superado, enquanto as outras não serão. Se nós não resolvermos isso, estaremos acabados.”

“No hemisfério latino-americano, o principal representante é o presidente Jair Bolsonaro no Brasil, que está competindo com Trump para ver quem pode ser o mais criminoso do mundo. Trump pode vencê-lo facilmente por causa do poder dos EUA, mas as políticas não são muito diferentes e estão prejudicando não apenas o Brasil, mas o mundo inteiro. As previsões atuais em revistas científicas são de que, em cerca de 15 anos, a Amazônia passará de um sumidouro de CO2 para um emissor de CO2. Isso é um desastre e Bolsonaro segue subsidiando as indústrias de mineração e o agronegócios”, completou Chomsky.

Isso é só uma pequena amostra do impacto do ser humano na Terra. Nós, que somos minoria no planeta, 7,7 bilhões de pessoas (0,01% de todas as coisas vivas), fomos responsáveis, no ano passado, pela morte de 1 bilhão de animais nas queimadas da Austrália e 83% das mortes de todos os mamíferos selvagens, desde o início da civilização. Segundo estudo do Weizmann Institute of Science, de Israel, a biomassa do planeta é composta de três vezes mais vírus e três vezes mais vermes, 12 vezes mais peixes, 17 vezes mais insetos, aranhas e crustáceos, 200 vezes mais fungos, 1.200 vezes mais bactérias e 7.500 vezes mais plantas do que seres humanos. Em tese, o planeta é deles. Mas somos nós que estamos – mal – na liderança.

“Agora, de repente, estamos agindo rapidamente como uma civilização. Apesar de muitos obstáculos, estamos tentando achatar a curva – para evitar a morte em massa. Fazendo isso, sabemos que estamos vivendo um momento de importância histórica. Temos consciência que o que fazemos agora, para o bem ou para o mal, será lembrado mais tarde. Essa sensação de encenar a história é importante. Para alguns de nós, isso compensa parcialmente a perturbação de nossas vidas”, observou a escritora de ficção científica Kim Stanley Robinson, no artigo The coronavirus is rewriting our imaginations, publicado na New Yorker, em maio.

“Sabemos que nossa alteração acidental da atmosfera está nos levando a um evento de extinção em massa e que precisamos agir rapidamente para evitá-lo. Mas não agimos de acordo com o que sabemos. Não queremos mudar nossos hábitos” continua a escritora. “Possivelmente, em alguns meses, retornaremos a alguma versão do antigo normal. Não é que o coronavírus seja apenas um ensaio – é muito mortal para isso. Mas é a primeira de muitas calamidades que provavelmente ocorrerão ao longo deste século. Agora, quando elas vierem, estaremos familiarizados com o sentimento.”

Só se comanda bem a natureza obedecendo-a. A manifestação desta epidemia indica que não podemos mais dominar a natureza, mas, sim, viver com ela. Tudo o que desejamos dominar se revolta. (Michel Maffesoli)

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Extra:
Leia a entrevista com Cris Pankararu
Leia entrevista com José Luiz Ratton
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DÉBORA NASCIMENTO,
repórter especial da revista Continente e colunista da Continente Online.

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