Ficção

Caminho ao futuro da lua

TEXTO Pedro Bomba

23 de Julho de 2018

Pastel óleo e nanquim sobre papel

Pastel óleo e nanquim sobre papel

Ilustração Mozart Fernandes

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Sobretudo quando os parentes
carregavam a lua sobre os ombros. A última notificação oficial é datada de 1590 quando caravelas originárias da Espanha atracaram às margens da ilha à procura de algodão e metal amarelo, o ouro. Era a quinta empreitada do país europeu nos últimos trinta anos. Todas as outras houveram de não voltar ou de não enviar sequer uma mensagem. Nas bases colonizadoras, as especulações eram inúmeras sobre o desaparecimento das esquadras. Os mais experientes afirmavam sobre a existência de uma tribo violenta vivente naquela ilha. Todos entendiam aquele caminho incompleto como a mais temida rota expedicionária, conhecida como a rota da execução.

Quando a terceira embarcação arriscou-se rompendo as águas atlânticas sob o comando do expedicionário Magalhães Lopez, o então imperador, empolgado com a ousadia dos intimoratos, prometeu a cada um dos seiscentos homens um pedaço de mundo.

– Para morar, explorar e viver rico de riqueza – dizia o imperador fitando os olhos dos impressionados.

A partida dos homens era de muita festa e choro das mães sensíveis, que quase sempre, ancoradas ao porto, fotografavam as últimas geografias dos filhos. Nunca voltavam. Nem sequer uma mensagem.

Os que comandavam tudo, os que previam terras e riquezas, vestiam-se de apostadores bradando a coragem alheia com promessas oceânicas. Um determinado período de vestígio nenhum era o sinal de que, por ali, não havia retorno. Não tardava para as ordens estabelecerem outras caravelas, e surgirem outros homens dispostos a descerem a rota da execução. Somente em 1588, prometendo um pedaço de mundo e metade de outro a cada um dos três mil navegantes, o imperador conseguiu megalomantizar a expedição e enviou cinco esquadras sob o comando de Cristóvão Maltez, conhecido por encontrar as Ilhas Galengas e matar cruelmente cinco mil nativos explorando prata e madeira. Maltez, gritava um jargão que, segundo relatos, encorajavam os tripulantes.

– Vamos seus merdas, a conquista não sabe da gente, mas nós sabemos dela. A morte não existe perante a riqueza e a coragem!

A riqueza que afirmava ser maior que a morte era a utopia baseada nas suposições dos estudiosos sobre terras desconhecidas, notícias de nada de lugar nenhum. Dois anos depois, quando a população já havia esquecido dos que partiram, aportou, com cerca de 20 homens, a embarcação de Manoel Guimes, comandante do navio de matérias-primas. Dentro do bolso, trouxe o relato que tornou-se documento oficial, escrito pelo próprio Cristóvão Maltez. Diferentemente do seu entusiasmo em terra firme, a carta revelaria muito mais sobre o império do que a ilha e a tribo:

Os contratempos estiveram projetados em originadas náuticas, é impraticável interromper a pujança que seduz a riqueza, mas observem, há mais metal amarelo do que possamos idealizar. Aportamos em terra quando virações soprados de má direção nos alavancaram disposição custosa, mas passamos bem, no que é possível afirmar.

Estamos naquilo que Moreno Galé afirmou existir: Um arquipélago. Seis grandes ilhas. Diferentemente do que compreendíamos, há muito mais terra. Porém, os que sobraram de nós, cerca de cem ainda, estamos na ilha cega. Daqui não se distingue as outras ilhas, é uma imensidão de terra e matas arboresças e fechadas. Eles nos atraíram para cá e cá habitamos. Em três noites seguidas, quando as estrelas apresentavam-se, uma claridade violenta atormentou os tripulantes, cegando-os e lhes propondo a morte. Outros, encontram-se encarcerados dentro de si mesmos, hipnotizados com a linha do horizonte que movimenta-se conforme as lembranças pessoais secretas. É de enlouquecer, descrevem os embarcadiços. Permaneço de costas ao mar, é assim que escrevo e espero que chegue ao destino, procuro mirar os olhos nas copas dos cedros-rosa que só eu vejo.

Os nativos não vivem aqui, pelo menos não os vivos. Vez ou outra, aparecem na ilha para enterrar seus iguais. Aqui é a Ilha da Morte, senhores. Quando enterram a carne humana podre, é certo que à noite o clarão levará dezenas de nós. Mas lembrem-se, há muito ouro e muita terra.

Com a certeza de viver e não voltar, Comandante Geral de Esquadras

Cristóvão Maltez

Mais de quatro séculos passaram-se quando em 1997, na Universidade Autônoma de Celos, a liderança Karuatëü – pronuncia-se Karuateí – convidada para participar da palestra com o tema La construcción de la hidroeléctrica y los impactos de las personas originarias, revelou a história de seus antepassados no arquipélago de Sanches, como denominam os antropólogos.

– Na constelação de Wapaguarÿ – caminho ao futuro da lua – cada ilha é uma estrela. No caminho da existência, vivemos em diferentes estrelas, mudamos constantemente de ilhas a depender dos ensinamentos necessários...– explicou pausadamente a liderança até ser interrompida pelo estudioso em ciência das ilhas.
– Mas por muito tempo chamou-se aquelas ilhas de Ilha da Morte, os livros contam que muitos navegantes morreram, isso é verdade? – indagou o doutor.
– Sim, sobretudo quando os parentes carregavam a lua sobre os ombros, ali revelavam os patrícios que partiam-se lua. A ilha da morte, como vocês dizem, pra nós, é a Ilha de Gamorãÿ – que quer dizer chegada ao instante. É lá onde são enterrados nossos parentes e transformados em luas. Meu avô descrevia que toda gente que aportava com intenções de explorar as terras e nossos patrícios perdia-se na ilha cega, na ilha da chegada ao instante. Ancorados à beira da praia, muitos enlouqueceram até a morte, porque pra qualquer lado que olhavam, viam a parte de dentro da cabeça, e muitas vezes eram horripilantes as cenas que viam. Todas as outras ilhas desapareciam aos olhos, diziam os navegantes. Na verdade, as outras ilhas sumiam porque encontravam-se dentro da ilha da chegada ao instante. Quando queríamos nos deparar com a parte de dentro da gente, íamos pra ilha onde se fabricam luas. Ali ficávamos olhando ao mar e percebendo nossas entranhas...
– Então quer dizer que o clarão que cegava os navegantes eram luas? – insistiu um dos alunos sentados no fundo da sala.

Todos que ali estavam como testemunhas esperaram, ansiosamente, a resposta da liderança. Outras duas perguntas foram feitas sobre os impactos da hidroelétrica no território tradicional e sobre o cultivo de mandiocas. As respostas das duas últimas foram dadas em poucas palavras. Com uma saudação ancestral, agradeceu o convite. Questionada, na porta do auditório, sobre a resposta que cegava navegantes, Karuatëü contrapôs: 

– Existem respostas que competem cegamente à dúvida.

PEDRO BOMBA é poeta e artista nascido em Aracaju (SE).

 

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