You got to do what you should
One life
With each other
Sisters, brothers
One life
But we’re not the same
We get to carry each other
Carry each other…
(U2, One)
Em 19 de outubro de 2017, quando o show da banda irlandesa U2 no estádio do Morumbi, em São Paulo, aproximava-se das duas horas de duração, o vocalista Bono Vox dirigiu-se a 80 mil pessoas para agradecer “às mulheres, aos homens e ao povo brasileiro”: “Na luta contra o HIV e a Aids, este país mostrou ao mundo o que fazer: como tratar as pessoas com dignidade. Vocês, brasileiros, conseguiram que os medicamentos que todo mundo dizia que eram muito caros para as vidas comuns se tornassem disponíveis para toda a população. Ainda não vivemos em um mundo livre da Aids, mas viveremos um dia. E sem a sua liderança, teria sido uma história diferente. Médicos, estudantes, ativistas LGBT, todos lutando para ajudar os pobres e as populações mais vulneráveis… Somos mais fortes quando trabalhamos como um só”.
Assim, enquanto o guitarrista The Edge começava a dedilhar os acordes iniciais de One, os fãs mais velhos recordavam que, quando a canção fora tocada nas duas apresentações que o quarteto fizera naquele mesmo estádio, em janeiro de 1998, o gigantesco telão da Popmart Tour exibia animações com desenhos do artista visual norte-americano Keith Haring. “Um amor, um sangue, uma vida, você tem que fazer o que deve/ Uma vida com cada um, irmãs, irmãos/ Uma vida, mas não somos os mesmos, temos que carregar uns aos outros, carregar uns aos outros”, diz a letra escrita por Bono para o álbum Achtung baby, de 1991, versos que poderiam espelhar os grafismos de Haring, nos quais figuras se escoram e se interconectam em corpos cercados por corações.
One, a música, surgiu no mesmo ano do falecimento do britânico Freddie Mercury, vocalista do Queen. Em fevereiro de 1990, Keith morrera, cinco meses antes do cantor e compositor brasileiro Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza. “Um amor, um sangue, uma vida” – a tríade enfeixa, não por acaso, as mortes dos três artistas, ocorridas por complicações relacionadas à síndrome da imunodeficiência adquiridas – em inglês, “acquired immunodeficiency syndrome” ou Aids. Em 2017, completam-se 35 anos dessa denominação, criada pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças/CDC, de Atlanta, nos Estados Unidos, em resposta ao primeiro epíteto usado para descrever a devastadora enfermidade, que até hoje já matou quarenta milhões de pessoas em todo planeta: “gay-related immuno deficiency” ou Grid.
Dois mil e dezessete marca, também, os 35 anos do primeiro registro oficial de um caso de Aids no Brasil, em São Paulo. “O câncer gay”, como a doença vinha sendo rotulada desde que os primeiros casos foram reportados em São Francisco e em Nova York, em 1981, chegara ao maior país da América Latina. Há quase quatro décadas, portanto, a Aids faz parte do imaginário coletivo – brasileiro, continental, mundial. Não espanta que, em um concerto de rock, o tema apareça, assim como em livros, filmes, seriados, telenovelas, músicas, obras de arte e outros produtos de consumo cultural. É impossível perceber a vida contemporânea sem reconhecer, nela, a presença da moléstia incurável transmitida via sexo e sangue – por transfusões sanguíneas, durante a gestação ou parto e por compartilhamento de seringas entre usuários de drogas. “Meu prazer agora é risco de vida, meu sex and drugs não tem nenhum rock ‘n’roll/Eu vou pagar a conta do analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou”, cantava Cazuza em Ideologia, composta em 1987.
“Ideologia, eu quero uma pra viver” é o refrão do carro-chefe do último disco dele. Quando o ex-vocalista do Barão Vermelho morreu, no Rio de Janeiro, Daniel Fernandes ainda nem sabia ler. O goiano nascera em 1984, um ano depois de os cientistas Françoise Barré-Sinoussi e Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, de Paris, isolarem, pela primeira vez, o retrovírus que haviam descoberto e batizado como LAV, que em 1985 seria nomeado o vírus da imunodeficiência humana, de sigla HIV a partir da designação em inglês (em 2008, os pesquisadores franceses receberiam o Nobel de Medicina pelo feito). Hoje, Daniel é o autor/editor/apresentador do canal Prosa positiva, um dos vários espaços na plataforma YouTube para divulgar informações e o cotidiano de quem vive com HIV. E essa é a sua ideologia para viver.
O goiano Daniel Fernandes administra o canal Prosa Positiva, que divulga o cotidiano com HIV. Foto: Alcione Ferreira
“Descobri o HIV em 1º de agosto de 2011. Provavelmente, já tenho o vírus no meu organismo desde 2007”, conta Daniel, que usou suas aulas de atuação em TV e cinema para gravar os vídeos. “Pensei na possibilidade de criar um canal. Falar sobre o quê? Foi conversando com minha mãe sobre a falta de informação de muitas pessoas em relação ao vírus HIV, preconceitos e outras dificuldades, que cogitei a possibilidade de um canal sobre a minha vivência. Ela achou o máximo e era exatamente o apoio de que precisava. Comecei pelo Facebook, anunciando minha sorologia. Resultados positivos! Com nervosismo em alta, em 1º de agosto de 2016, cinco anos depois do diagnóstico, coloquei no ar o primeiro vídeo do canal”, acrescenta.
A data é simbólica e o Prosa positiva, direto, coloquial e educativo. “Quis trazer minha vivência, convidar profissionais de diversas áreas para abordarmos o tema e, claro, falar da experiência de outras pessoas que vivem com o vírus. A ideia não é romantizar o HIV, mas, sim, apresentar que é possível ter uma vida pós-diagnóstico. Vivo uma vida normal”, explica o youtuber, que reside na capital pernambucana, enquanto sua mãe, Edelza, a protagonista do vídeo publicado em junho deste ano, intitulado Meu filho tem HIV!, segue morando em Goiás. Ele passa boa parte do dia respondendo a mensagens que invadem seu perfil nas redes sociais: “É gratificante saber que, de algum modo, venho ajudando pessoas de diversos lugares”.
Ativismo e consciência da necessidade de se falar abertamente sobre o assunto levam Daniel a minar o estigma que não se dissocia da vida com HIV. Em todas as esferas de uma existência balizada pelo vírus, talvez sobretudo na de um jovem gay como ele, “preconceitos sempre existirão”, como sintetiza. “Mas acredito que, para muitos, é necessário vencer seu próprio preconceito, combater o medo e ter orgulho do que se é. Me espelho muito no movimento negro e no movimento gay. Diariamente, vamos superando obstáculos. Diariamente, é uma luta para ser vencida”, resume.
O mesmo pensamento de “guerra” perpassa a leitura de How to survive a plague, no qual o jornalista e cineasta norte-americano David France narra “os bastidores da história de como cidadãos e a ciência domaram a Aids”, de acordo com o subtítulo da edição de novembro de 2016 da Alfred A. Knopf. O livro, vencedor do prêmio Baillie Gifford em não-ficção na Inglaterra e inédito no Brasil, nasceu do documentário homônimo de 2012. Ambas as obras, literária e audiovisual, recontam as vidas extraordinárias de cidadãos comuns que, confrontados com a perspectiva inexorável de perecer ante um mal para o qual ainda não existia tratamento, agigantaram-se. Organizados em entidades como a Act Up (acrônimo para a frase “Aids coalition to unleash power”, algo como “coalização da Aids para desencadear poder”) ou TAG (Treatment + Action Group ou grupo de tratamento e ação), estudaram, produziram conhecimento, provocaram a indústria farmacêutica e o governo em busca de testes clínicos para drogas, enfrentaram políticos reacionários e a polícia, foram presos e difundiram a mensagem de que não era possível silenciar ante o que acontecia.
“Silence = death” era a frase estampada, um triângulo rosa sobre fundo preto, nas camisetas criadas pela Act Up. Silêncio equivalia à morte. Demorou vários anos até que Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos entre 1981 e 1989, pronunciasse em público, pela primeira vez, a palavra “Aids”. Na leitura de How to survive a plague, descobre-se, por exemplo, que, em 1987, quando cerca de 20 mil americanos já haviam morrido em decorrência das infecções oportunistas que caracterizam a doença, Reagan assim se expressava: “Quando se fala em prevenção da Aids, a medicina e a moralidade não ensinam as mesmas lições?”.
Nos anos 1980, surge nos EUA uma aguerrida militância. Na foto, o caixão de um ativista em Washington. Foto: Rick Gerharter/cortesia da Penguin Random House
David escreve em primeira pessoa, tendo chegado a Nova York em 1982, “para me juntar ao que os médicos classificavam de sistema de amplificação da doença”. E, ao longo de mais de 500 páginas, fala também de sua experiência pessoal – ele perdeu um companheiro e diversos amigos durante os “anos da peste”. “Não sou um memorialista, mas me dei conta de que era testemunha de algo extremo e de que o que eu estava produzindo era o relato de uma testemunha, por mais que fosse também pesquisa histórica e jornalismo. Senti que era importante deixar o leitor saber quem era a testemunha. Foi uma decisão difícil e também uma jornada difícil, que me levou a interrogar minhas próprias memórias e emoções e revisitá-las de um modo que eu havia logrado êxito em evitar ao longo de tantos anos”, revela à Continente.
Seu relato sobre os que hoje sofrem do que ele chama de “Aids survivor syndrome” traduz o que o título da sua obra evoca – como sobreviver a uma peste? “As pessoas que atravessaram os anos da peste têm questões psicológicas. Compartilham uma espécie de síndrome pós-trauma. Quando entraram no ativismo, não tinham vida para além daquela batalha constante e diária. E nem expectativa de futuro. Ninguém achava que ia viver muito. E, de repente, a ideia de que havia um futuro era confusa e desorientadora”, situa o escritor e cineasta. O advento do AZT, em 1987, e a combinação dessa droga com outras substâncias para formar o “coquetel” e, em seguida, a terapia antirretroviral consolidada a partir de 1996, redefiniu a vida das PWA descritas no livro – “people with Aids” ou pessoas com Aids.
Contudo, “a guerra continua em todo o planeta”, pontua David France. “Todos os infectados têm uma luta recorrente não apenas contra o vírus, mas por aceitação e sobrevivência em vários níveis. Há uma guerra política, cultural e social diária. Sabemos que o estigma é severo e isolador e que, em várias partes do mundo, há leis que criminalizam as pessoas que vivem com o HIV. Isso as afasta do cuidado médico e do tratamento e assim crescem as chances de espalhar o vírus. Falta vontade política para romper o estigma e encorajar as pessoas a se testar. Foi graças ao ativismo de muitos que, hoje, o tratamento está disponível, mas ainda existem milhões de pessoas sem acesso à medicação, em especial nos países subdesenvolvidos. Tem gente morrendo do mesmo jeito horrendo que as pessoas morriam nos anos 1980”, lastima.
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Foi no final dos anos 1980 que Susan Sontag escreveu Aids e suas metáforas, a partir de uma releitura de Doença como metáfora, que havia publicado em 1979 partindo do seu próprio repertório como paciente de câncer. Ensaísta, escritora, crítica e também ativista, Susan pensava a Aids como “uma doença que representa uma censura à vida e à esperança” e “um constructo clínico”. “A peste é a principal metáfora a partir da qual a epidemia da Aids é compreendida. Do latim pestis, flagelo, calamidade. (…) A Aids banaliza o câncer”, ponderava em Aids e suas metáforas, editado no Brasil pela Companhia das Letras, atualmente disponível apenas como e-book. “Com o resultado positivo do exame do HIV (…), torna-se possível criar uma nova classe de párias vitalícios, os futuros doentes. (…) E leva muitos a uma espécie de morte social que precede a morte física”, vaticinava Susan, que viria a morrer, vítima de leucemia, em 2004.
A noção de “morte social” e “morte física” integrou a formação acadêmica da infectologista Vera Magalhães. Graduada em Medicina pela UFPE, ela fez residência em clínica médica e escolheu incluir um opcional no Instituto Emílio Ribas, em São Paulo, numa época em que não existia residência em infectologia em Pernambuco. “Era 1986 e, quando retornei, senti uma diferença grande em relação ao tratamento. Diversos infectologistas não queriam atender o paciente com Aids. Enquanto isso, eu era plantonista do Hospital Oswaldo Cruz e atendia pessoas jovens, saudáveis, belas, que adoeciam em estado dramático. Naquela época, a maioria era de homossexuais masculinos. O fato de ser uma doença sexualmente transmissível e mortal causava repulsa, não apenas na sociedade, mas também nos profissionais de saúde”, recorda.
David France (acima) é autor do documentário e posterior livro-reportagem How to survive a plague, sobre a luta anti-Aids nos EUA. Fotos: Divulgação
“No Brasil, no início dos anos 1980, a epidemia atingia principalmente indivíduos homossexuais e bissexuais masculinos, brancos, de classe média ou alta e habitantes das grandes metrópoles”, radiografa o Manual de HIV/Aids, escrito pelos médicos Marcia Rachid (entre outros atributos, membro do Comitê Técnico Assessor para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos, Departamento de DST/Aids/Hepatites Virais do Ministério da Saúde) e Mauro Schechter (professor titular de Infectologia da UFRJ). Em sua décima edição, o tomo, publicado pela Thieme Revinter, prossegue na contextualização: “Progressivamente, homens heterossexuais, mulheres e crianças de todas as classes sociais foram sendo atingidos. (…) No início da epidemia, sangue e hemoderivados eram responsáveis por parcela significativa da transmissão do HIV”.
Ou seja, embora não tenha demorado para se estabelecerem todas as possibilidades de contágio, o estereótipo do paciente de Aids e o eventual repúdio e ostracismo que ele causava haviam se inserido no zeitgeist. Muitas vezes, os pacientes, já acomodados em áreas específicas dos hospitais, definhavam sem qualquer suporte familiar. “Todos nós, médicos e a equipe de enfermagem, entrávamos de máscaras, gorros, capotes e luvas. Parecíamos uns extraterrestres. Tive um paciente, um artista plástico muito novo, que tentou se matar no hospital. Um outro homossexual, também bastante jovem, estava acometido de diversas infecções oportunistas e em estado grave. Chamávamos os familiares, explicávamos que ele estava morrendo de Aids e o pai, com o filho à beira da morte, falou: ‘Esse é o dia mais feliz da minha vida’. Muito maior do que a Aids sempre foi o preconceito”, diz Vera.
O enigma do vírus capaz de causar uma infindável sequência de mazelas em pessoas outrora enérgicas – tuberculose, retinite por citomegalovírus, toxoplasmose, pneumocistose – de uma certa forma permeou o percurso profissional da médica: Vera fez doutorado em Doenças Infecciosas pela Unifesp, foi uma das primeiras a atuar na enfermaria exclusiva para Aids, aberta em 1987 no oitavo andar do Hospital das Clínicas, vinculada à UFPE, e foi professora-titular de Infectologia daquela instituição entre 2003 e 2017 – onde, já aposentada, continua a orientar trabalhos na pós-graduação. “Nos primeiros anos de epidemia, o impacto do HIV no organismo era devastador, tornando a história da doença terrível. O HIV é um retrovírus que, com a atuação da enzima transcriptase reversa, transforma seu RNA em DNA, código genético necessário para se multiplicar. O problema maior é que seu direcionamento de ação é no sistema imunológico. Ao entrar nos linfócitos T4, ataca a molécula CD4, o maestro da resposta imunológica do organismo, e causa uma imunodeficiência celular e, depois, global. Não poderia atacar uma célula mais importante. O CD-4 é essencial para a imunologia”, ensina.
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De impacto e devastação o artista visual mineiro Paulo Lima Buenoz entende. E não pouco. Sua obra reflete a convivência de 28 anos com o HIV. Corpocobaia e a delicadeza grave da vida, videoinstalação montada pela primeira vez em 2005, agrega fotografias em cores e em preto e branco que remontam ao período em que ele participou de um teste para medicação antirretroviral em Buffalo, no estado de Nova York. “Sou da geração que atingiu um período difícil, quando receber o diagnóstico era uma sentença de morte. A arte era o jeito de poder dar sentido e uma certa ordem para a complexidade do corpo. E de continuar vivendo. Em 1993, eu estava deslocado do meu lugar, do meu país, das minhas relações. A tensão entre pertencer e não pertencer era forte. Decidi participar como cobaia de um estudo científico para aprovação de remédio e fotografei todas as etapas. Era a sobrevivência no sentido mais real, sem saber se o que eu estava recebendo era remédio ou placebo. Através da arte, quis dar um sentido àquela experiência”, apregoa.
“O que mantém um corpo vivo?” era a interrogação que perpassava a práxis e obras de Paulo, que buscavam, ao mesmo tempo, questionar e responder à pergunta sob a perspectiva da vida com HIV. Na instalação Perda, um conjunto de objetos – par de sapatos tingidos de vermelho, mala, duas taças de vinho a abrigar uma maçã e algumas pílulas, dois travesseiros e uma fotografia de dorso masculino – evocava ausência. Em Dis-placement, havia um armário onde estavam os potes dos remédios que ele tomara durante um ano; em Dis-ease, outra instalação montada no The Burchfield-Penney Art Center, em Buffalo, em 1997, paredes de veludo e um piso de brita emanavam a sensação de o “terreno nunca mais é tranquilo”. “Falar de doença e instabilidade era um jeito de dar conta do que eu estava vivendo e de fazer política. Um certo ativismo político”, rememora o artista, que tem obras nas coleções dos Museu de Arte Moderna/MAM e do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, do Itaú Cultural e do Museu de Arte Contemporânea do Ceará – MAC/CE.
Obra Dis-placement, do artista visual mineiro Paulo Lima Buenoz (acima), reflete sua convivência de 28 anos com o HIV. Fotos: João Paulo Machado/Divulgação e acervo do artista
Professor de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia (MG), Paulo reconhece que, atualmente, sua soropositividade brota de modo distinto na produção artística. Mas nunca deixará de aparecer. “Sempre vai surgir no microuniverso das pequenas sobrevivências do corpo. Até porque tenho 62 anos, convivi com tudo isso quando se falava ainda em ‘peste gay’, e posso dizer que, no macro, a vida é mais fácil, pois existe o tratamento. Mas a microexistência ainda é bastante difícil. As relações de trabalho e de afeto são, para mim, os lugares mais complicados. O estigma, nesse sentido, é igualzinho. Ou você acha que, se for para falar de doenças crônicas, é a mesma coisa contar para seu empregador ou para quem estiver interessado afetivamente que você tem diabetes ou que tem Aids?”, indaga.
A arte foi um dos campos para onde convergiram indagações e inquietações de artistas que não escondiam a infecção por HIV e suas consequências, ou buscavam ampliar a visibilidade da jornada de quem sucumbia diante da Aids. “O trabalho de Paulo Lima Buenoz articulava o tratamento à poética e abria publicamente a questão privada de estar tomando remédios, expondo-se diante de um mundo que não tinha condições de lidar com a doença”, observa o pesquisador e curador do MAC/CE Bitu Cassundé.
O mesmo desdobramento entre o público e o privado se percebia, com mais ênfase, em artistas da América do Norte. Do Canadá, o trio General Idea – AA Bronson, Felix Partz e Jorge Zontal – se apoderou de uma imagem já disseminada, o logotipo colorido Love, criado por Robert Indiana, para inventar a pintura Aids. Uma simples troca de letras e o coletivo incitava a sociedade a forjar os elos, inevitáveis, entre doença e amor. A ideia, tal como o microorganismo causador da infecção, multiplicou-se com rapidez: da obra inicial, pensada para um evento da amfAR – American Foudation for Aids Research, nasceu a campanha IMAGEVIRUS, que consistia em reproduzir, em pôsteres e cartazes ao redor do planeta, o logo Aids com suas cores estridentes e sedutoras, que decerto não passavam incólumes onde quer que fossem expostas. Partz e Zontal faleceram em 1994, em decorrência da Aids. Ainda hoje suas concepções visuais provocam impacto, como se vê no Museu de Arte de São Paulo/MASP, onde um dos painéis do General Ideia se encontra na mostra Histórias da sexualidade, aberta à visitação até fevereiro de 2018.
Outros artistas/ativistas embaralhavam as fronteiras entre o que se passava dentro e fora de suas casas, seus corpos, suas vidas. “Nos Estados Unidos, vários artistas foram militantes e bateram de frente com o governo e com os laboratórios, enfrentando as políticas e o preconceito contra uma sexualidade que era colocada em jogo. Esse ativismo migrava para o processo poético. A questão privada versus pública foi desdobrada nos trabalhos de Nan Goldin, Felix Gonzales-Torres, David Wojnarowicz, Peter Hujar e Keith Haring, que iam para a rua, eram combatentes e potencializavam suas questões pessoais em plataformas públicas extremamente potentes. Mesmo hoje, ainda é bonito ver o processo de transformação do que era de ordem íntima em uma questão coletiva e política, para sensibilizar, educar e fazer com que as pessoas refletissem”, expõe Bitu. Keith Haring, por exemplo, era membro do Act Up, para o qual produziu diversos desenhos, sempre sob a égide da frase “Silence = death”. Ele e os outros artistas citados por Bitu, com exceção de Nan Goldin, faleceram entre 1987 e 1997.
No Brasil, na mesma época, José Leonilson operava em uma frequência diferente da modulada pelos norte-americanos. “Naquele período, as pessoas adoeciam e isso ficava visível. Não era possível negar. Seus trabalhos iriam atingir uma dimensão poética mais introspectiva e a doença migra de uma forma sofisticada e sutil para a produção, ao contrário da agudez extrema dos EUA”, compara o curador cearense. Mestre em Artes pela UFMG com a dissertação Leonilson – A natureza do sentir (2011), Bitu Cassundé lembra que seu conterrâneo chegou a tomar AZT e, assim, incorporou o desgaste do corpo com a medicação à arte: “Se, antes, havia os quadros em grandes dimensões, depois, ele deixa a pintura, já que as tintas lhe causavam um processo alérgico, e entra com força no bordado, pontuando, com sensibilidade e sofisticação, uma poética mais silenciosa”.
Margarida (1992), desenho em tinta de caneta da série O perigoso, foi feito por Leonilson durante internação hospitalar. Imagem: Rubens Chiri/Projeto Leonilson
Na série O perigoso, Leonilson constrói, em sete pequenos desenhos concebidos durante uma internação hospitalar, uma delicada radiografia da condição de viver com HIV. “Um deles traz uma gota do seu sangue contaminado, pintada com nanquim; em outros, pequenas imagens do processo de tratamento sob o nome de flores – Margarida, Lisiantros, Copos de leite”, explana Bitu. O perigoso é de 1992, uma espécie de “canto do cisne”: em 1993, aos 36 anos, Leonilson partiu.
“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, escreveu Renato Russo em Pais e filhos, carro-chefe de As quatro estações, “porque se você parar para pensar, na verdade não há”. Em 1989, quando o quarto disco do Legião Urbana foi lançado, o líder da banda de Brasília descobriu que era soropositivo. Sete anos depois, faleceu. Para Renato, Leonilson, Cazuza, Keith, David, Peter, Felix e Freddie, de fato, não havia amanhã. Entretanto, suas vidas, suas obras a problematizar e amplificar a homossexualidade, ratificando o direito a ser e amar quem se quisesse, e mesmo suas mortes ajudaram a moldar a visão de mundo de uma geração. Ter crescido com a constatação da letalidade da Aids e da doença como um “castigo” é um dos combustíveis do projeto VHS HIV, dos cineastas Fábio Leal e Gustavo Vinagre.
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Fábio Leal, pernambucano, e Gustavo Vinagre, paulistano, são amigos, gays, dividem a mesma idade – 31 – e as lembranças de uma adolescência cercada de referências à Aids: a capa de uma revista semanal com a imagem de Cazuza corroído pelas visíveis manifestações da Aids – essa edição de abril de 1989 é, ainda, um caso clássico do péssimo jornalismo que pode ser praticado no Brasil; o filme Filadélfia (1993), em que Tom Hanks interpreta um advogado que é demitido da sua empresa após apresentar claros sinais de infecção por HIV; e as mortes de atores como Rock Hudson (1985), Lauro Corona (1989), Thales Pan Chacon (1997), do escritor Caio Fernando Abreu (1996), dos irmãos Henfil (1988) e Betinho de Souza (1997) e do cineasta Leon Hirszman (1987).
“A ideia para VHS HIV veio quando comecei a me relacionar com um soropositivo. Quando ele me contou, vi como eu era ignorante em relação ao assunto. Mesmo sendo privilegiado por ter acesso às informações, não sabia de nada, e olhe que eu tinha crescido com um medo absurdo de contrair HIV”, confessa Fábio.
O documentário, uma realização da Sancho e Punta (SP) e da Ponte Produções (PE), vem sendo filmado com recursos provenientes do edital do audiovisual do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura/Funcultura. “Vamos fazer um longa com dinheiro de curta”, avisa o diretor pernambucano: “Pensamos em um filme dividido em duas partes, começando com imagens nossas, de arquivo, falando de nós, das nossas mães, de como descobrimos o que eram sexo, Aids e morte ao mesmo tempo. Em seguida, queremos falar dos amigos próximos com HIV e, a partir desses relatos, dos médicos, de outras pessoas soropositivas e das políticas públicas”.
Para fins de inscrição em um edital, uma pequena apresentação de VHS HIV foi montada, com preciosidades exibidas, nos anos 1980, pelas emissoras de televisão brasileiras. Em um dos excertos compilados por Fábio e Gustavo, a cantora Alcione, que se autointitula “rainha dos gays do Brasil”, é questionada por um repórter sobre “o” Aids: “O Norte, o Nordeste, essa área que eu sou acostumada a percorrer, ali não vejo falar “do” Aids. Acho que nem existem casos, se tiver, são tão poucos (…). Agora, a mulher brasileira é considerada a mais limpa do mundo: ela se depila, toma banho todos os dias. Os nossos gays são iguais. O nosso gay é limpíssimo, é muito higiênico. Então, a culpa não é dele, é do gay estrangeiro”. Desinformação e xenofobia combinam-se em uma equação catastrófica, reproduzida no mundo inteiro nos anos mais letais da Aids. Em 1987, por exemplo, os Estados Unidos decretaram que qualquer pessoa HIV positiva não poderia entrar no país. A legislação só foi banida em 2010, sob a presidência de Barack Obama.
A cisão da narrativa de VHS HIV em dois momentos reforçará outro aspecto relevante: a transição do VHS para digital reverbera a própria mudança na apresentação física da doença ou mesmo a ausência de sintomas evidentes. “As imagens de arquivo dos anos 1980, de revistas, telejornais e dramaturgia, estão em VHS, sujeitas a fungos e ações do tempo, assim como os corpos doentes daquela época, assolados pela magreza, por aquelas manchas da pele, pela toxoplasmose. Hoje em dia, o digital é cristalino e tudo está numa nuvem, assim como o vírus é quase uma virtualidade. As pessoas estão perfeitas, possuem a informação de que têm o vírus, não se vê doença alguma nos seus corpos, se estiverem em tratamento não transmitem o vírus. Mas, ainda assim, nós, como sociedade, não damos as condições para que elas escolham contar ou não contar que vivem com HIV. É muito estigma”, argumenta Fábio.
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