Depoimento

O voo derradeiro de Tereza

Os últimos tempos da artista olindense pelo olhar do seu amigo, parceiro de projetos e autor de sua biografia

TEXTO Bruno Albertim

05 de Agosto de 2020

Tereza ao lado de Bruno Albertim em episódio do programa apresentado pelo jornalista

Tereza ao lado de Bruno Albertim em episódio do programa apresentado pelo jornalista

Foto Frame do programa 'Frigideira'

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“Eu não sou o ninho. Sou sempre o voo.” Tatuada em algum músculo interno de mim desde que a ouvi pela primeira vez, a frase parece ter feito morada mais presente no meu pouco juízo dos últimos dias. Entre os silêncios de uma semana que perde seus vermelhos, a oração, vez por outra, se acende com a lembrança da voz já meio trêmula, nunca sem firmeza ou doçura, da Tereza Costa Rêgo dos últimos meses.

Ariano a entendia especialmente como barroca e brasileira. Para Raimundo Carreiro, Tereza provava: "Não se constrói uma obra de arte com plumas e lantejoulas, mas com dor e sangue. Uma obra maiúscula, tensa e bela". Marcus Lontra informava: "Tereza desnuda a nossa história, fala-nos de um país real, lança nosso olhar à ira dos chacais e ao encantamento dos anjos".

De tantos – e não foram poucos – os que tentaram desenhá-la em palavras, ninguém soube tão bem como ela se definir. Sem soberba ou humildade patológicas – isso fica para aqueles que não entendem os hormônios do mundo –, Tereza sabia de seu tamanho.

Tereza foi o voo. Muitos voos. Revoadas, vejo agora, capazes de levar o ninho sob as asas.

Nascida Terezinha Barros Costa Rêgo num distante ano de 1929, de um século XX que se fazia sob as botas de um patriarcado açucareiro cuja trajetória se confunde com a da construção do Nordeste como região, a menina que também se fazia mulher precisou quebrar muitas lógicas.

Disso, sabemos. Sobre isso, espero ter trazido algumas luzes quando ela me permitiu estabelecer uma rotina mais ou menos disciplinada de conversas para escrever o livro que seria seu primeiro grande perfil biográfico. Disso, sabemos: Terezinha saiu da casa senhorial em que não podia sorrir para além dos portões de ferro – mulher não ri em público, aprendeu muito cedo –, onde vivia como descendente do conde que dá nome à principal avenida do centro do Recife, a Boa Vista.

Saiu para casar. Menos pelo encontro de um amor que ela ainda não sabia existir, mais para assumir alguma autonomia. Teria uma casa para chamar de sua. Teria ordens para dar em vez de receber, e sorrisos para distribuir onde quisesse.

Saiu de um casamento mais de talheres combinados com louças, sorrisos decorando joias, para o amor como projeto de vida. Conheceu os ódios de um Recife patriarcal para o qual mulher não podia atravessar de saias os portais da casa. Conheceu as angústias de um exílio num apartamento minúsculo de uma Paris lacrimosa onde um caixote de feira era o móvel de destaque na sala. O exílio dos cheiros e das gentes da terra. O exílio das filhas.

Os telefonemas clandestinos na madrugada. Os dias trancada datilografando os textos ditados pelo companheiro Diógenes Arruda, que deixara a capacidade de articulação dos dedos numa das sessões de tortura da ditadura Médici, que mandaram embora o casal a uma Paris trancada de saudades de um futuro que não sabiam se chegaria. Um exílio sem dedos. Os fatos da história hoje gravados em livros diante dos olhos, conheceu o século XX por dentro.

O futuro chegaria. Na esteira da volta ao Brasil, anistia em pleno curso, Diógenes morreria fuzilado por um infarto numa via pública de São Paulo. Não puderam comemorar a volta de tantos, como eles, deixando para trás o estrangeiro forçado. Até seus últimos dias, Tereza repetia a frase de batismo tardio. Diante do amor de defunto, inerte aos chamados, articulou as palavras para se batizar outra vez. Uma vez definitiva: "Agora chega, não serei mais a bisneta do Conde da Boa Vista. Não serei mais a ex-mulher do juiz. Não mais a companheira do dirigente político. Agora serei eu. Tereza Costa Rêgo. Uma mulher e sua pintura".

E voou outra vez. Escolheu Olinda como pouso e ninho.


A partida, acrílico e colagem sobre madeira, 2,20 × 0,8 m (1981). Imagem: Reprodução

***

Renascida na casa uterina da rua que ela, mais que ninguém, deu sentido por se chamar Amparo, ela voltava a Pernambuco viúva e madura, 40 e tantos anos, duas filhas e um neto à espera, os cheiros de pitanga e o cio dos gatos no telhado à espera, novos arrebatamentos à espera, ela se faria a grande artista que se fez. Mais que o grande nome-mulher da arte moderna feita a partir de Pernambuco, uma artista que o país ainda não conhece, ou a não entende como merece.

Naquela casa, ela me contou muito de sua vida. Ainda que não lembrasse o que tivesse feito no dia anterior, manteve como patrimônio pessoal a memória muito lúcida dos fatos determinantes de sua personalidade. Isso, claro, me ajudou muito na tarefa de reconstruí-los. E também se revelou o caminho para algumas armadilhas.

Algumas vezes, nossa intimidade mais atrapalhava que ajudava. “Não me pergunte sobre isso, você sabe que falar isso me machuca, me faz voltar a um passado que sangra”, ela dizia. Me expulsava de sua casa e ficava mesmo alguns dias sem querer voltar a falar comigo.

A memória, sabemos, é ficção pessoal. Feita do que de fato foi vivido e de como, pra nosso conforto e sobrevivência, escolhemos entender o vivido. Ela sempre me dizia: “Diógenes morreu assim que pisou no Brasil”. Eu a corrigia: “Não, Tereza, a gente sabe que ele sofreu o infarto três meses depois de ter chegado”. No dia em que haveria a primeira manifestação pública com os que voltavam do exílio, em São Paulo, com a anistia. Ela insistia: “Eu sei. Vim antes para arrumar as coisas, trazer os livros. Mas não há quem me convença. Aquilo foi tão brutal que, para mim, ele terá sempre morrido no dia em que chegou”.

No último domingo, um domingo de sol tépido em que alguns comemoravam o Dia das Avós e outros saudavam Nanã Boroquê, a mais velha dos orixás que ela, católica por família e convenção, consultara no desespero de reencontrar o companheiro Diógenes sequestrado sem aviso de paradeiro por quase um ano pela ditadura, Tereza fez um outro voo. O último voo da Tereza que conhecemos.

Tereza voou sem querer voar.

Se dizia muito feliz em ser uma artista de Olinda. Assim, com calma e contemplação, se definia: “Eu não vejo Olinda, eu aliso Olinda”. Certa feita, recusou um convite da prestigiosa Pinacoteca de São Paulo para expor sua obra em retrospectiva. Agradeceu. Por alguma razão, não quis sair de Olinda. Noutra, Jô Soares lhe telefonava com um convite para uma entrevista na TV. Sorriu um sorriso largo, disse que não perdia um programa do apresentador. Mas preferia que ele viesse a Olinda tomar um vinho com ela.

O chamado circuito das artes nem sempre é tão esperto quanto supomos. E não foi por outra razão que não a ditadura do abstracionismo imposto pela hegemonia estética do Rio de Janeiro ou de São Paulo, focados no concretismo, que Tereza não se tornou ainda uma artista plenamente nacional. Esteve, desde menina, fiel ao figurativismo tórrido que marca, não sem sotaque, a arte moderna brasileira feita em Pernambuco.

A mulher-artista rompeu muitas lógicas. Ainda que possa parecer cessão à frase fácil de efeito, Tereza soube subverter o tempo. Aos 80 anos, executou o Apocalipse de Tereza, um mural de impressionantes 12 x 2 metros sobre nossos genocídios históricos e cotidianos cravados ao longo de uma grande serpente. “Pintar é um ofício como qualquer outro. Tem dias que pinto até não mais conseguir, e me deito para passar as dores do corpo até passar e poder pintar de novo”, dizia.


Primeiro nu, óleo e acrílico sobre madeira, 1,20 x 0,80 (1983). Imagem: Reprodução


Cio dos gatos na Rua do Amparo, acrílico sobre eucatex, 5 x 3 m (1984).
Imagem: Reprodução

Não aceitava de porta aberta o acúmulo dos anos sobre um corpo alheio ao destino de todos os corpos. Aos 86 anos, naquele que seria sua “Guernica”, juntou forças para pintar um novo mural. Sobre o episódio mítico das pescadoras que teriam vencido um exército de barbudos holandeses no litoral de Pernambuco, debruçou imaginação, tintas e saliva para imprimir as cenas num quadro-parede de mais de oito metros, a obra Tejucupapo. Sua pintura se dava com o corpo. Seu corpo não aceitava seu destino.

Tereza voou ainda sem querer voar.

Por alguma razão, nos últimos anos tinha o desejo de ver sua obra ganhar o Brasil. Sonhava em ver Tejucupapo abrigado na coleção de um grande museu nacional. “O de Brasília, quem sabe, uma cidade ainda meio estranha para mim.” Queria se comunicar com seu país. E se ver espalhada na sua cidade. Saber de Sete luas de sangue, a série que a amiga e crítica Rhada Abramo dizia ser um dos conjuntos mais corajosamente épicos da arte brasileira, reunida num museu do Recife, ao acesso de seu povo.

Queria viajar pelo país com sua obra. Isolada para cuidados médicos na casa da filha Tereza desde que fraturara uma vértebra no começo deste ano, que já parece uma outra era, nos telefonávamos vez ou outra. Para falar bobagens, rir sem propósito, e saber se “a exposição” aconteceria.

Já programada para acontecer em maio de 2020, no museu Cais do Sertão, diante do mar do  Bairro do Recife, Tereza deveria ter visto a grande retrospectiva de trajetória de uma vida em quase uma centena de grandes obras. Mas veio o vírus morar no próximo abraço. A exposição ficaria para o ano seguinte.

Castigada algumas vezes pelos roteiros da vida, jamais suportou vitimismos. “Prefiro o algoz à vítima”, dizia com seu sorriso de canto de boca onde morava o mistério. Ainda que não saibamos plenamente entender suas dimensões, não se pode dizer que passará a história como gênio de reconhecimento tardio.

Tereza e seu painel Tecujupapo, 8 x 2 metros (2015). Imagem: Divulgação

Sorriu o riso que não pôde sorrir quando menina quando viu as ruas do Recife decorada com a cenografia de Joana Lira em alusão à sua obra. Nenhuma pessoa deve ter ficado tão feliz quando soube ser a homenageada do Carnaval do Recife. Estava cheia de afagos internos ao ver sua obra revista numa grande panorâmica no Museu do Estado quando da comemoração de seus 80 anos – embora sempre se queixasse de uma exposição tão complexa e dispendiosa ter ficado por pouco mais de um mês em cartaz, somente. Oficiais e espontâneas, recebia as homenagens como quem ganha flores. Colocadas num canto especial da sala, jamais no centro.

***

Não pôde ver seu último desejo realizado. Uma pressa que, agora mais compreendida do que nunca, a neta Joana que herdou seu nome usado no exílio, entendia. “Precisamos correr, pode ser a última grande exposição de minha avó.”

No final do ano passado, teve a alegria de expor outra vez. Íntima do mercado, a galerista Lúcia Santos, da Amparo 60, queria quebrar, de alguma forma, as gavetas frágeis das classificações. Convidou para expor na sua galeria, que o mercado, sempre o mercado, entende como trincheira da arte contemporânea, a artista que não apenas viu a arte se tornar moderna no começo do século passado, como a essa arte deu novos caminhos.

Para a tarefa, fui escalado como curador. Uni à poética de Tereza as narrativas das jovens artistas Juliana Lapa e Clara Moreira na Amparo 60. E Tereza, excitada como quem trela, e respeitosa como quem dança uma dança no terreiro alheio, nos indagava: “Mas como, se eu sou uma artista do século passado?”.

“Você sempre será mais contemporânea do que a gente possa pensar, Tereza”, as meninas respondiam. E uma cortina de risadas cúmplices diante de uns copos de vinho deixava secundária toda a paisagem ao redor.

Quando me ligava, não deixava de comentar com a alegria moleque de quem havia roubado fruta do vizinho: “Foi a melhor doidice que fiz nos últimos tempos”.


As artistas Juliana Lapa, Tereza e Clara Moreira em foto de divulgação da exposição Antes do cio (2019). Imagem: Juliana Lapa/Divulgação

Mais do que a exposição, a doidice era o ensaio fotográfico idealizado por Juliana para as imagens de apresentação da coletiva. Andando com alguma dificuldade no terreno irregular protegido por mangueiras gigantescas, Tereza incendiava os olhos, uma bruxa de vermelho, no meio da fumaça rubra, a cada vez que aquelas mulheres de décadas mais jovens dançavam ao seu redor. Ofereciam a nudez dos seios como totens à pintora que, em sua obra, desnudou populações inteiras de fêmeas: a nudez pessoal e, ao mesmo tempo, de gerações anteriores e sucessivas.

Na sexta, dia 24, nos telefonamos.

“Não aguento mais ficar aqui presa. Ninguém precisa saber. Vou tomar um táxi escondida e chego aí para tomar um vinho. Ninguém precisa saber.”

“Deixe de ser doida!!, não vamos quebrar essa quarentena. Mas tudo indica que, em breve, mais perto que pensamos, tomaremos esse vinho!”, disse a ela.

E rimos antes que ela se despedisse como sempre se despedia:

“Tá bom. Feliz ano novo!”

No dia seguinte, acordo com o telefonema da filha Maria Tereza.

Nos últimos meses, algo não raro em sua idade, a mãe vinha sofrendo pequenos derrames. Sem maiores consequências. O da madrugada anterior, contudo, tinha proporções inesperadas.

Na segunda-feira seguinte, a família e pouquíssimos amigos ouviam as palavras de seu amigo confidente, o Frei Rinaldo Pereira:

“Tereza me perguntava sempre se o céu existia mesmo, porque achava que estava indo para lá... E dizia que não saberia pintar o sagrado de frente... Pouca gente sabe da Tereza como mulher de fé. Ela dizia ter horror às beatas, mas que tinha sempre um crucifixo na bolsa. Não como um amuleto, mas como uma Presença”.

Ele nos informava:

“Como grande artista que foi, Tereza nos aproximou do sagrado.”

Driblou o tempo como pôde. Com ele, estava pactuada até o último dia. Foi preciso que a morte, o fato por ela nunca temido, lhe tirasse o vigor que o tempo cronológico não lhe furtou.

Foi ela quem vestiu, muitos anos atrás, o corpo de Ana Luíza Brennand. Antes que mandasse cobrir o esquife, cobriu-lhe com flores e um batom vermelho. Atendeu ao último desejo da sobrinha quase filha. Foi ela quem vestiu o corpo da amiga artista e quase irmã Maria Carmem, mais recentemente, para que ela pudesse fazer a viagem derradeira.

Tereza não teve medo da vida. Dizia não temer: “Só não vou agora, ainda quero ficar mais um tempo aperreando vocês um pouquinho”.

Tão mundana que foi, Tereza é, e talvez concordasse, uma parte agora mais próxima daquele sagrado abrigado em sua bolsa.

--------------------------------------------------------------------------
EXTRA: 
Ouça o nosso podcast em homenagem a
Tereza Costa Rêgo, do dia 5/8/2020
--------------------------------------------------------------------------

BRUNO ALBERTIM é autor de Tereza Costa Rêgo – Uma mulher em três tempos (Cepe Editora, 2018).

Publicidade

veja também

Gambiarra: por uma ruína que abrigue a palavra amor

A construção de um verbete

‘Agora’: quando o abismo se apresenta