As 11 faixas do álbum são as músicas que compõem o show Esquartejada. Ao longo do disco, a voz de Una canta histórias diversas, de uma poética que transita entre o jocoso e o agressivo, assim como as várias nuances que se situam entre um extremo e outro. Letras que versam sobre assuntos como o amor, a gordofobia ou um corpo trans compõem essa narrativa que se fragmenta em tantas outras para dar conta da visceralidade e da leveza que sua interpretação imprime. “O corpo está esquartejado porque ele está morto. Está limpo para acontecer algo. É como a carta da Morte no tarô, que é a carta da limpeza, da renovação”.
ANINHA... UNA
"Una é meu apelido desde criança. Por algum motivo, com o tempo, eu virei Aninha... Aninha Martins". E foi como Aninha Martins que ela começou sua trajetória na música, em 2007, na performática banda Sabiá Sensível. Entre alguns projetos musicais pelos quais passou – Malvados Azuis, Matheus Mota e Grupo Varal e DMingus e a Fantástica Kazoo Orquestra –, ela também enveredou por outras instâncias artísticas, como o teatro, o cinema e a dança. Participou de oito filmes, nos últimos três anos, além de já ter realizado incursões experimentais com o grupo Magiluth, o Coletivo Lugar Comum e o Lume Teatro. Atualmente, além de seu trabalho solo, Una integra o coletivo A Dita Curva.
Mas, de fato, a música é o seu habitat mais comum. E como Aninha Martins, sua voz já foi ouvida em eventos relevantes dentro e fora de Pernambuco: Rec-Beat, Festival de Inverno de Garanhuns, Psicodália, SIM São Paulo, entre outros. Também já dividiu o palco com a cantora Céu, em 2016, e participou do programa Conversa com Bial, da Rede Globo, no ano passado.
Porém, algo havia de errado. Uma certa incongruência entre a pessoa e a artista passou a incomodá-la. "Passei um tempo com medo de palco", revela. Em meio a alguns shows, ao processo de gravação do disco, crises afloraram e ela começou a repensar, por inúmeras vezes, o que representava como artista. “Foi muito difícil perceber que eu não estava conectada com o meu fazer cantora, que eu não conseguia fazer o que eu sempre fiz”.
Aninha Martins passa a assinar seus trabalhos como Una. Foto: Chico Ludermir/Divulgação
O “simples” fato de passar a adotar o nome Una foi um passo significativo nesse renascimento da artista. "Eu precisava de uma personagem para ser essa pessoa pública. Eu precisava dessa persona pra compreender melhor a minha atividade de cantora. Eu sofro um pouco com essa exposição que é ser cantora”, conta Aninha, que se diz, como boa escorpiana, uma pessoa que aprecia mais ficar quieta, no seu canto. O oposto de Una, que, no palco, parece libertar as feras mais indóceis que a habitam. “Então, Una é também minha criança. Aninha é que tem medo de palco, mas Una não. E eu tive que vestir essa personagem para conseguir fazer tudo o que eu faço”, conta.
DE PEDAÇO EM PEDAÇO
O que esperar de um disco chamado Esquartejada, assinado por uma cantora que é fã, com o mesmo entusiasmo, de heavy metal e brega funk? O álbum acabou herdando, na verdade, muito do que a música brasileira cantou nos anos 1970, 1980. Essa sonoridade se deve não apenas às inclinações musicais da própria Una – que vão, sim, muito além do metal e do brega funk –, mas, também, à soma de um trabalho de produção coletiva do disco e ao talento dos músicos que a acompanham. Rodrigo Padrão (guitarra), Hugo Coutinho (teclados), Aline Borba (flauta), Victor Giovani (baixo) e Iezu Kaeru (bateria) fazem parte da banda que toca no disco e que está com a intérprete desde sua estreia solo, em 2013. Esquartejada conta, ainda, com as participações de Almério (voz em Merda), João Tragtenberg (sanfona em Útero) e Julia Claudino (voz gutural em Goethe Machadiano).
Apesar de não assumir atitudes políticas no sentido “panfletário”, Una considera que “dentro de cada música (de Esquartejada) há uma micropolítica”, há uma voz que canta uma urgência a ser ouvida. Urgências essas escritas por um time de compositores cujos versos têm intimidade na voz de Una. Assinam as canções Hugo Coutinho, Germano Rabello, Anaíra Mahin, Iezu Kaeru, Vinícius Paes e Karla Linck, não por acaso, seus companheiros da banda Sabiá Sensível. A única exceção é a música Paola, de autoria de Goemon.
Cantora traz para a performance dos shows a sua experiência com outras artes, como o teatro. Foto: Divulgação
Da singeleza de Sempre uma música (Germano Rabello) à força de Queda punk (Vinícius Paes/Iezu Kaeru), Esquartejada é um disco de/em movimento. A experiência de ouvir as canções e compreendê-las em sua dimensão poética como um todo ganha mais sentido quando esse movimento tem sua extensão materializada no palco. A performance é ponto fundamental no trabalho de Una, que trouxe do teatro a forte presença cênica, explorada à exaustão pelo corpo que se entrega, de forma visceral, ao que ela canta.
"Música não pede licença. Ela chega e entra em você”, diz a cantora que interpreta a música alçada a hit antes mesmo de ser gravada. Faz ideia, composição de Hugo Coutinho, versa sobre amor, sim, mas, na verdade, sobre o que há de adverso nessa fala, na expressão desse amor. A música foi o single escolhido para abrir os caminhos do lançamento de Esquartejada e ganhou videoclipe, lançado no mês passado. Dirigido por Chico Ludermir, Faz ideia traz à cena a performer Flávia Pinheiro. Não há como passar imune à emoção que a canção traz.
O lado mais rocker de Una está escancarado em Queda punk (Vinícius Paes / Iezu Kaeru). A música foi feita em cima de um e-mail escrito por Iezu, em que ele relata um acidente sofrido enquanto tocava: ele caiu do palco. Outro destaque do disco é Merda (Vinícius Paes), canção em que Una divide os vocais com Almério, numa inversão dos gêneros que seriam biologicamente atribuídos a cada um. Nesta música, Almério é a mulher. Una, o homem, que esbraveja, revoltado: “Merda!/ Ela voltou pro marido!”. Após a música, um diálogo nonsense segue entre os dois personagens.
Goethe Machadiano (Karla Linck) traz o rebuscado linguajar inspirado em Machado de Assis, coroado com um vocal gutural de Julia Galdino, ao final da música. Um dos momentos mais sui generis do disco é a presença da canção Paola, composição do paulista Goemon, nome artístico de Rui Mifune, e figura obscura do cenário musical paulistano dos anos 1980, contemporâneo de nomes como Grupo Rumo, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé. A personagem da música, Paola, é uma travesti que clama pelo glamour perdido enquanto planeja sua ida a Paris, para se tornar “mulher biônica”.
Pedaço a pedaço, Una reúne em Esquartejada vários sentimentos, diversas poéticas, onde voz e corpo se complementam e se potencializam, em movimentos cênicos que vão além do disco e transbordam no palco (é preciso vê-la em ação). “Estou me preparando fisicamente e psicologicamente para esse disco nascer. Por mais que eu tenha trabalhado todos esses anos, a semente tá sendo plantada agora”, diz a cantora.
O disco Esquartejada já pode ser escutado na íntegra no spotify.
LEONARDO VILA NOVA, jornalista e músico.