TRADUÇÃO EDUARDO CESAR MAIA
28 de Novembro de 2019
Protesto na Embaixada dos EUA, na Cidade do México, no dia 15 de novembro, contra a deposição de Evo Morales da Bolívia
Foto Cristian Leyva/NurPhoto/AFP
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Nas últimas semanas, nossa América vem atravessando uma onda de rebeliões populares e de instabilidade política, econômica e social. Às crises no Peru, Haiti e Equador, somaram-se o levante no Chile e os protestos da direita boliviana que não aceitou o triunfo eleitoral de Evo Morales, fato que levou, no dia 10 de novembro, a um golpe de Estado cívico-policial-militar que chocou toda a região. Poucos dias antes das eleições na Argentina, Bolsonaro ameaçou excluir seu principal sócio no Mercosul se Alberto Fernández vencesse o pleito, como terminou de fato acontecendo no dia 27 de outubro. No Brasil, o partido político que levou o ex-militar ao poder sofre uma profunda crise interna, enquanto cresce a incerteza política após a libertação de Lula. O continente sul-americano está convulsionado.
O fracasso das políticas neoliberais promovidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a fragilidade dos governos de direita e o protagonismo do povo, que recupera a memória histórica das rebeliões populares que mudaram o mapa político há 20 anos, mostram que a hegemonia neoconservadora não era robusta. É preciso olhar mais para as ruas e os movimentos populares, e não tanto para a “alta política” (ou não somente para ela), a fim de entender a correlação de forças.
Nesse contexto, a derrota de Macri – que mergulhou a Argentina em uma profunda crise econômica e social –, e a chegada de Fernández à Casa Rosada podem implicar em um reequilíbrio político no âmbito regional. Já como presidente eleito, ele escolheu o México para sua primeira excursão internacional e, na segunda-feira 4 de novembro, foi recebido por Andrés Manuel López Obrador, junto a quem promove um eixo progressista em torno do . Que impacto terá na América Latina a surpreendente virada política que acaba de ocorrer na Argentina? Como a região vai processar a crescente ingerência dos militares e a volta dos golpes de estado, como o que acaba de acontecer na Bolívia?
O GOLPISMO DO SÉCULO XXI
A imagem de Jeanine Áñez, uma presidente autoproclamada por um congresso sem quórum, recebendo os atributos presidenciais por parte dos militares que derrocaram o mandatário constitucional, é clara: o que ocorreu na Bolívia foi um golpe. Um golpe classista, racista, patriarcal e colonial que não só destituiu Evo Morales, mas desestabiliza e põe em perigo toda a América Latina.
Mais do que nos determos em questões institucionais, legais, e numa conjuntura que muda o tempo todo, num processo ainda não encerrado – cresce a resistência popular –, devemos tentar entender o que há por trás. Estamos num momento crucial do processo de transição hegemônica, com um declínio norte-americano, mas sem que se vislumbre ainda, com claridade, como será a nova ordem global. A América Latina e o Caribe, no atual cenário de disputa geopolítica, geoeconômica e geoestratégica entre Estados Unidos, China, União Europeia e Rússia, compõem uma região fundamental para a pretensão norte-americana de seguir conservando sua primazia.
Por que Donald Trump, como admitiu no comunicado da Casa Branca da segunda-feira 11 de novembro, estava tão interessado na derrocada do governo boliviano? Nunca vão perdoar Evo pela nacionalização dos hidrocarbonetos, por sua contribuição na construção de uma integração regional alternativa, por sua mobilização, junto a Hugo Chávez, contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) em Mar del Plata, em novembro de 2005, por ser o primeiro presidente de origem camponesa e sindical, e por ter expulso da Bolívia o , a CIA, a e até o embaixador de Estados Unidos, quando interferiu em assuntos internos.
Evo estava certo quando denunciou que os EUA estavam por trás de sua derrubada. O agora ex-conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, reivindicou há seis meses a , quando endossou a tentativa de golpe de Juan Guaidó na Venezuela. Em dezembro do ano passado, sugeriu a existência de uma troika da tirania integrada pelos governos bolivarianos. Para Washington, é estratégico derrotar Evo, sufocar a revolução cubana através do bloqueio, promover uma guerra civil na Venezuela e recorrer a Daniel Ortega na Nicarágua. Conseguiram que seus aliados tirassem o PT do poder no Brasil. Agora tentarão avançar para desmantelar o novo eixo progressista Argentina-México e destronar qualquer um que questione a proeminência política, econômica, militar, cultural, diplomática e ideológica em seu quintal.
O CONTEXTO ARGENTINO
Na terça 12 de novembro, Alberto Fernández respondeu com palavras duras ao governo dos Estados Unidos, que horas antes havia aplaudido a ação dos militares que “sugeriram” a renúncia de Evo Morales: “Não estou de acordo com o que o Departamento de Estado dos Estados Unidos disse. Aqui não há exército vitorioso e não é verdade que a democracia tenha sido garantida. Pelo contrário, ela foi atacada. Em minha opinião, os Estados Unidos retrocederam décadas e voltaram ao pior dos anos de 1970, quando apoiaram intervenções militares contra governos eleitos democraticamente”. O presidente eleito da Argentina planeja uma política exterior diametralmente oposta à de Mauricio Macri, o qual está prestes a abandonar a Casa Rosada.
Macri é o primeiro presidente argentino a tentar e não conseguir sua reeleição. No dia 27 de outubro, perdeu no primeiro turno, em meio a uma profunda recessão econômica – em 2018, o Produto Interno Bruto argentino caiu 3,5% (e este ano cairá pelo menos mais três pontos), a pobreza terminará em 40% e a inflação em 60%, além de aumentar o desemprego, a miséria, a queda do consumo e da atividade industrial). Contudo, o triunfo de Alberto Fernández não somente expõe a catástrofe econômica e social causada pelo acordo com o FMI – por 57 milhões de dólares, o mais alto da história –, mas também os péssimos resultados obtidos pela forma com que se estabeleceu a inserção internacional da Argentina.
O presidente eleito na última eleição argentina, Alberto Fernández, posa ao lado das ativistas pró-aborto. Foto: Esteban Collazo/Alberto Fernandez Press Office/AFP
A política exterior da Alianza Cambiemos (coalização política de direita criada em 2015 e renomeada este ano de Juntos por el Cambio) – contra tudo o que o marketing da Casa Rosada buscava mostrar com o slogan reeditado “Voltamos ao mundo” – evidencia uma série de fracassos, mesmo em seus objetivos explícitos. Macri não conseguiu aumentar as exportações (não nos transformamos no “supermercado do mundo”) nem atrair capitais que não fossem meramente especulativos (a “chuva de investimentos” foi, na verdade, um longo período de seca). Após pagar o que demandavam os “fundos abutres” em 2016, houve uma escalada de endividamento, até que a corrida de 2018 obrigou a recorrer ao FMI, que outorgou o maior empréstimo de toda a história. Foi o primeiro presidente a provocar o default de sua própria dívida. Levando em conta os vencimentos dos próximos quatro anos e as sérias dificuldades para renegociar, após os mais de 180 bilhões de dólares tomados em empréstimo nos últimos três anos, o futuro argentino parece bastante obscuro. Hoje, a dívida pública ascende a quase 95% do PIB.
Macri, além disso, serviu à estratégia política da Casa Branca de fragmentar o máximo possível a região, seja ignorando a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) – nunca participou em suas cúpulas de líderes, seja destruindo a Unasur (União de Nações Sul-Americanas) – a Argentina se retirou quando a Bolívia assumiu a presidência temporariamente, ou ainda transformando o Mercosul numa mera plataforma para a abertura comercial – cuja “conquista” máxima, o recém-anunciado acordo com a União Europeia, tampouco prosperará, após o veto recente no parlamento austríaco.
Macri endossou a política de Trump de perseguição à Venezuela – votou a favor de ativar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) contra Caracas; reforçou iniciativas alinhadas com Washington – como o ou o ; e foi útil ao reposicionamento da Organização dos Estados Americanos (OEA) como foro privilegiado, em detrimento das instâncias latino-americanas. Agora, negou-se a qualificar o que ocorreu na Bolívia como golpe de Estado, apesar das fortes críticas de quase todos os matizes políticos da Argentina, inclusive da União Cívica Radical (UCR), o centenário partido que é, aliás, seu sócio principal na Cambiemos.
Nas Nações Unidas, a Argentina aprofundou o alinhamento com os Estados Unidos. Em 2016, o governo de Macri coincidiu em 52% das votações com o de Obama, de forma similar ao Chile e ao Brasil (56%). Já em 2017, quando o chanceler Jorge Faurie substituiu Susana Malcorra, em 59% das vezes se alinhou a Trump, diferentemente de Santiago e Brasília, que caíram a 44%. Mais alinhados com Washington do que nossos vizinhos.
Sem brilho também foi sua última participação na Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro passado. Mesmo antes de viajar, já recebeu críticas, após a rejeição da ONU à reforma migratória que Macri promoveu por decreto em janeiro de 2017, afirmando que “não cumpre com os requisitos básicos da Convenção de Genebra”.
Em seu último discurso em Nova York, Macri não sugeriu a necessidade de uma saída pacífica para a crise venezuelana, que respeitasse os princípios de não-intervenção e de autodeterminação dos povos. Pelo contrário, alinhou-se aos Estados Unidos na reunião de chanceleres de países do Tiar, ao compartilhar a estratégia de asfixiar Caracas boicotando as negociações entre o chavismo e parte da oposição. Tampouco denunciou o desastre ambiental na Amazônia, para proteger seu sócio Bolsonaro, nem a crise humanitária que sofrem os imigrantes latino-americanos nos Estados Unidos, acossados por Trump. Insistiu em endurecer os ataques contra o Irã, em linha com os falcões de Washington.
ESTRATÉGIAS NORTE-AMERICANAS
O avanço das direitas na região, que se aprofundou após o triunfo eleitoral de Mauricio Macri em 2015, serviu ao objetivo dos Estados Unidos de derrotar qualquer projeto alternativo de coordenação e cooperação política fora do comando de Washington.
A Unasur serviu, em 2008, para frear a secessão promovida pela camada rica da população que se levantou contra Evo Morales na Bolívia, e, em 2010, para evitar que uma rebelião policial terminasse com o governo de Correa no Equador. Serviu ainda para encontrar uma solução pacífica ao conflito entre Colômbia e Venezuela. Em outras palavras: a Unasur atuou para dirimir os conflitos regionais sem a onipresença dos Estados Unidos através da OEA, cuja sede, não por coincidência, se encontra em Washington, a poucos metros da Casa Branca.
A gravidade da destruição desse organismo, decidida em 2018, quando a Bolívia assumiu a presidência pro tempore, é compreensível finalmente a partir dos acontecimentos que chocaram a região nestas semanas. Nossa América atravessa uma onda de rebeliões populares e de instabilidade política, econômica e social. Washington foi hábil: operou junto a seus aliados locais para paralisar a Celac e dinamitar a Unasur; promoveu, através de seus aliados-vassalos, a Aliança do Pacífico, durante o governo Obama; fez o mesmo com o Grupo de Lima para fustigar a Venezuela (do qual Alberto Fernández prometeu sair, apesar das pressões contínuas dos enviados do Departamento de Estado); e, finalmente, fomentou o Prosur, lançado por Piñera este ano e cujo futuro, após estas semanas, é claramente sombrio.
Por trás dessas iniciativas, o objetivo dos Estados Unidos é reposicionar a OEA, qualificada nos anos de 1960, por Fidel e por Che Guevara, como um “ministério de colônias” dos Estados Unidos. Seu atual secretário-geral, Luis Almagro, ocupa-se de atacar a Venezuela há anos. Recentemente, a pedido do governo dos Estados Unidos e de seus aliados, convocou uma reunião, não para repudiar o golpe cívico-policial-militar na Bolívia, mas para acusar Evo de ser responsável por um “autogolpe”. Nunca o cinismo ficou tão exposto.
A América Latina enfrenta grandes perigos na atualidade, no momento em que o declínio relativo dos EUA se traduz, paradoxalmente, como disse Evo Morales, “numa maior agressividade imperial”, com alguns elementos novos. No lugar das invasões militares diretas, como as que sofreram o Afeganistão e o Iraque em 2002 e 2003, os casos da Síria e Ucrânia mostram o funcionamento de novas estratégias e táticas, como as denominadas “guerras híbridas”.
Através de grupos paramilitares, guerra psicológica, corporações midiáticas, processos judiciais, pressões diplomáticas, penetrando nas forças de segurança e de defesa, manipulando organizações e movimentos sociais mediante uma rede de ONGs bem-financiadas, com golpes de mercado ou manipulando os processos eleitorais, os Estados Unidos seguem perseguindo os objetivos do século XX: controlar os territórios e suas populações para se apropriar de seus recursos e de seus mercados.
GRUPO DE PUEBLA
O triunfo de Fernández, na Argentina, deu impulso ao Grupo de Puebla, que reuniu, em julho, mais de 30 líderes regionais com a ideia de promover uma série de agendas progressistas que tenham a ver com os problemas de distribuição de renda, o respeito à soberania de cada país e a resolução pacífica dos conflitos. Nos dias 8, 9 e 10 de novembro, realizou-se o segundo encontro desse grupo em Buenos Aires, que passou rapidamente de festejar a libertação de Lula a condenar o golpe na Bolívia. Na quarta, 13, Evo e Álvaro García Linera, asilados no México, anunciaram sua incorporação a este foro, no qual também participam outros ex-mandatários derrocados ou perseguidos, como Dilma, Lula, Correa ou Lugo.
Em um momento de ofensiva dos Estados Unidos, é importante que se estabeleça uma voz autônoma na região, que se recuperem princípios básicos no sistema interamericano, como o de não intervenção nos assuntos internos dos países, de solução pacífica das diferenças e de autodeterminação dos povos. A América Latina deve seguir sendo uma “zona de paz”.
Neste cenário, o Grupo de Puebla deve exercer um papel fundamental. Fernández falou nas horas posteriores ao golpe com os presidentes do México, do Peru e do Paraguai para negociar o asilo político de Evo Morales e evitar um magnicídio. Do México, Evo declarou: “O golpe de Estado foi uma conspiração política e econômica dos EUA. Condenamos à decisão de Trump de reconhecer o governo de fato, e autoproclamado pela direita com a cumplicidade da polícia e forças armadas”. Também afirmou que a OEA “não está a serviço dos povos latino-americanos, está a serviço do império norte-americano. Dever-se-ia mudar o nome e colocar Organização de Estados do Norte, e não da América.”
Vendo o papel de Luis Almagro na OEA – argumentou que Evo havia realizado um “autogolpe” – entende-se por que os aliados de Trump trabalharam para destruir a Unasur, que outrora permitiu que se resolvesse pacificamente, sem a onipresença norte-americana, conflitos na Bolívia, no Equador, na Venezuela e na Colômbia, que atualmente também enfrenta sua crise. Macri, Temer, Duque (Colômbia), Piñera e Lenin Moreno (Equador) foram cúmplices desse dano irreparável, ao se retirar da Unasur em 2018 e, agora, ao se negar a condenar o golpe cívico-policial-militar na Bolívia.
O continente está convulsionado e em disputa. Os Estados Unidos pretendem sustentar seu domínio, inclusive por meio de golpes. Os povos resistem. A integração latino-americana autônoma é mais necessária do que nunca. Uma grande incógnita é como se processará a relação entre Argentina e Brasil, levando em conta a péssima relação entre Bolsonaro e Fernández. O primeiro se envolveu na campanha eleitoral da Argentina, apoiando Macri e pedindo que não votassem no kirchnerismo. O agora eleito presidente argentino visitou Lula na prisão e participou da campanha internacional pela sua libertação. O presidente brasileiro não irá à posse de Fernández no dia 10 de dezembro, quando se espera a presença de Lula. Além de serem sócios comerciais estratégicos, é importante acompanhar de perto a evolução do vínculo Brasília-Buenos Aires. Enquanto isso, o futuro presidente da Argentina tenta recuperar uma perspectiva de coordenação e integração política latino-americana, abandonada por Brasília desde a concreção do golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, há três anos.
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Extra:
Vá além lendo entrevista com o autor deste artigo AQUI.
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LEANDRO MORGENFELD é doutor em História na Argentina. Professor da Universidade de Buenos Aires (UBA). Investigador do Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas) e cocoordenador do GT Clacso Estudos sobre os Estados Unidos. Autor de Bienvenido Mr. President – De Trump a Roosevelt: las visitas de presidentes estadounidenses a la Argentina (Buenos Aires: Ed. Octubre). Dirige el sitio www.vecinosenconflicto.com.
EDUARDO CESAR MAIA, crítico literário, mestre em Filosofia, doutor em Teoria da Literatura e professor da UFPE.
*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.