CONTINENTE Você sempre faz muitas revisões em suas obras, não? Que tipo de corte faz? Mario de Andrade disse que primeiro escrevia, no automatismo, depois cortava.
MILTON HATOUM É assim comigo também. No caso do Cinzas do Norte, cheguei a fazer 10 revisões. São cortes pontuais, de palavras excessivas, não cortes temáticos ou de personagens. Corto os disparates, as anacronias; coisas da linguagem mesmo. Prefiro deixar o texto fluir e depois limpar. Esse romance ficou maior que Cinzas, mas quero que fique menor. Acho que o único livro meu que saiu de primeira, mais rápido, foi Órfãos do Eldorado. Fazia tempo que eu tinha a ideia de escrever uma história sobre esse mito.
CONTINENTE O lugar mais sombrio é o primeiro romance seu que se passa fora de Manaus. Por algum motivo em especial? O cenário é só Paris?
MILTON HATOUM Sim, é um livro sobre exílio e paixão em Paris. Mas não é para evitar repetir Manaus ou algo parecido, e, sim, porque a história há muito tempo mexe comigo, pelas possibilidades que ela tem. É um romance narrado por uma francesa que morou no Rio e em Buenos Aires, tem um amante brasileiro e faz tradução de autores hispano-americanos. Também traduz os textos de um amigo cubano, então é um livro sobre Cuba também. Ela conta em paralelo as histórias desse amante e desse amigo.
CONTINENTE Em que época exatamente se passa? É um livro político?
MILTON HATOUM Não, é sobre a impossibilidade de misturar esses dois fogos, o fogo da política e o fogo da paixão... Começa em 1978 e vai até 12 anos depois. Ao mesmo tempo, é um romance com bastante realismo, no sentido de que trabalhei com um mapa de Paris, situei fatos históricos, incluí personagens verdadeiros como Alejo Carpentier (escritor e diplomata cubano) e Wifredo Lam (pintor cubano).
CONTINENTE Você foi preso numa passeata em 1968?
MILTON HATOUM Fui detido e depois solto. Eu só tinha 15 anos e morava em Brasília. Morar ali mudou minha vida, fez-me ir embora para a Europa. O romance traz muito dessa experiência que tive em Paris e Barcelona, dando aulas, fazendo traduções, convivendo com exilados brasileiros e cubanos.
CONTINENTE Como você vê essa geração, hoje em parte no poder?
MILTON HATOUM Era uma geração “missionária”, né? Acho que hoje ela se dividiu. Há os que estão desiludidos, mas sem perder a esperança de justiça; há os totalmente desiludidos, os céticos; há os que ainda são ativistas, que trabalham em ONGs, por exemplo, mas sem vínculos partidários; e há os que viraram casaca...
CONTINENTE E você?
MILTON HATOUM Estou no primeiro grupo. Acredito em transformações, mas acho que utopias só existem no horizonte das possibilidades. Não acredito em socialismo. Todos os sistemas são criticáveis, claro, e me irrita o que é injusto, desumano, brutal. Hoje, porém, vejo uma geração mais jovem que não se interessa pelo passado recente e acho triste.
CONTINENTE E o que pensa das revoltas no mundo árabe? Surpreenderam?
MILTON HATOUM Não muito, na verdade. Aquilo ia explodir a qualquer momento. O governo Mubarak foi terrível. Chegava a deportar opositores para serem torturados em outros países. Um amigo egípcio, que mora no Brasil, me disse que isso tudo estava prestes a acontecer, que só ia depender das Forças Armadas. Ele mantinha contato com seus amigos do Cairo pelo Facebook, pessoas de 20 a 45 anos que acompanham a TV Al Jazira e querem democracia. E os EUA vão ter de optar, agora, entre Israel e o petróleo...
CONTINENTE Há três livros seus em processo de adaptação para o cinema.
Como vê isso?
MILTON HATOUM Acho ótimo, e os diretores estão animados também. O Luiz Fernando Carvalho já está com o roteiro de Dois irmãos, escrito por Maria Camargo, que talvez participe dos outros. O diretor de Órfãos do Eldorado será Guilherme Coelho, o de Relato de um certo Oriente, Marcelo Gomes. São grandes profissionais. Veremos, mas adaptações demoram.
DANIEL PIZA, jornalista, colunista cultural de O Estado de S.Paulo e autor de diversos livros.