LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA
Meu pai se chamava Décio de Souza Valença e estudava Direito, como eu também estudei, na Universidade Federal de Pernambuco. Na época em que ele era estudante, existia a teoria de um criminalista italiano chamado Cesare Lombroso, que dizia que um assassino já nasce assassino e dá para identificá-lo só de olhar o físico dele. Meu pai não concordava com essa teoria. Nesse período, em 1938, Lampião estava no auge no cangaço. Um dia, papai foi assistir a uma aula e começou-se a discutir a teoria do Lombroso. No meio, surgiu um cara correndo com um telegrama que dizia que Lampião tinha morrido em Sergipe. As pessoas se entusiasmaram. Alugaram uma “sopa” (pequeno ônibus), saíram de Pernambuco, passaram por Alagoas e chegaram à Fazenda Angicos. Lá viram que todos os corpos dos cangaceiros estavam sem pescoço, então não podiam saber a cara deles para ver se a teoria do Lombroso fazia sentido. No local da batalha, existiam vários objetos perdidos, entre eles um chapéu. Papai pegou o chapéu, um amigo dele pegou um brochinho com uma galinha e um galo de ouro, que devia ser de uma cangaceira, e assim foi. Eu me acostumei, na infância, a ouvir essa história. Pois bem, um dia, no carnaval em São Bento do Una, invadiram minha casa. Não eram cangaceiros, mas um bando de bêbados que queriam levar meu pai a um bloco. Rasgaram a roupa dele, e ele saiu fantasiado de camisa cortada. Fiquei com medo de ser um sequestro, era pequeno. Então, saí pra rua e vi meu pai passar no bloco, também bêbado! A farra se estendeu, foram bater lá em casa e viram aquele chapéu de cangaceiro. E começou a discussão: se Lampião era herói ou bandido. Um dos caras do bloco pegou o chapéu, cortou as abas e pendurou no dedo. Chegou na sala e disse que era para ninguém mais discutir aquilo.
IMAGINÁRIO
Eu morava numa cidade de 5 mil habitantes, com salas de cinema e grupos de teatro que hoje não existem mais. Tinha uma feira, com sanfoneiros, tocadores de viola, rabeca... No alto-falante do Cinema Rex, tocava o Luiz Gonzaga. Tinha os loucos de feira, um tipo de figura que eu coloquei no filme, encarnado pelo Helder Vasconcelos. E tinha um soldado bravo que fazia medo nos meninos, a gente fugia dele. Uma vez, ele deu uma carreira na gente e acabei me escondendo no cemitério! Todo esse imaginário da minha infância eu introjetei. Depois me mudei para o Recife. Quando meu pai morreu, em 1999, voltei a São Bento do Una e ficava pensando em todos esses acontecimentos. Fui para a fazenda dele e me deparei com uma roupa de Lampião. Eu tinha feito uma participação especial na TV Manchete fazendo o Lampião e peguei a roupa de pagamento, já que não tinha cachê! Foi ali que comecei a escrever e fiz um livro chamado Inacreditáveis histórias verdadeiras, que está perdido em algum HD. No meio das escritas, comecei a fazer alguma coisa parecida com um cordel, mas não sabia o que era.
EM BUSCA DO CINEMA
Um dia, fui ao teatro e encontrei o Walter Carvalho (diretor de fotografia). Ele perguntou se eu estava escrevendo muita música, então mostrei a ele algumas coisas que eu tinha escrito e que pareciam cordel. Ele olhou e disse: “Isso aqui é cinema. Vamos fazer um filme”. Propôs que eu dirigisse com ele. Comecei a ir atrás de editais, junto com o Tuinho Schwartz (produtor de A luneta do tempo), e pedi a alguns conhecidos meus, que participavam das seleções, que nenhum deles interferisse no projeto só por me conhecer. E aí eu me lasquei! Não fui aprovado em nada. Então, o Walter foi fazer Budapeste (2009) e deixou o projeto. Também conheci o Andrucha Waddington, me aproximei dele, ele se entusiasmou, mas, de repente, e com toda razão, ele foi fazer Casa de areia (2005). Aí eu me enterrei na casa de areia do Andrucha e fui vitimado pela peste, quando o outro foi pra Budapeste. E decidi: vou aprender essa porra sozinho!
O ROTEIRO
Depois de estudar muito, com conhecimento rudimentar sobre a linguagem do cinema, comecei a escrever um roteiro, do jeitinho que tinha de ser. Voltei à fazenda do meu pai, vesti a roupa de Lampião que tinha guardado lá, fui para um lajeado e entrei em delírios totais, declamando tudo aquilo que depois ia entrar no filme. Fiquei num delírio tão grande, que, daquele dia em diante, passei a contar o roteiro para milhares de pessoas! Enchi o saco de muita gente.
ESTILO
Os cortes nas cenas, do jeito que aparecem no filme, eram uma questão de estilo. Faço cinema de autor, do jeito que eu quero. Na minha música, tem uma parte minha que vem do Nordeste profundo, está tudo na minha cabeça, bem próximo de Luiz Gonzaga. Já ouvi falar que, na produção de algumas novelas, os caras mandam o elenco assistir a tal série antes, para depois fazer parecido. Isso é entretenimento! Na minha cabeça, eu sou mais pela cultura.
INFLUÊNCIAS
A obra de Ariano Suassuna deve estar presente em A luneta do tempo, na mesma proporção que Luiz Gonzaga está presente na minha música. Ariano veio de uma região similar à minha, li muito da obra dele, mas nunca conversamos. As histórias que Ariano conta tinham muitas coisas em comum com a minha cidade, a minha infância. Quando o filme chega nos anos 1950, tem a influência do meu hábito de ouvir rádio. E aí estão lá o Cauby Peixoto e o Nelson Gonçalves, que eu mesmo canto com a voz deles e dá para ouvir no radinho dos personagens. No filme, existe o mito de Lampião e tudo que gira em torno dele. Segundo Manoel Messias, economista e sociólogo, Lampião era um pré-revolucionário, como o Che Guevara, apesar de ter sido mais bruto.
MARCELO MIRANDA, jornalista, professor e crítico de cinema em Belo Horizonte.