De prato em prato, ampliou-se tanto o cardápio da gastronomia na TV, que abriu espaço até para o modelo e ator Rodrigo Hilbert, do Tempero de Família, também exibido pelo GNT. O hostess foi alvo de uma baita polêmica ao exibir, em março deste ano, a captura de um filhote de ovelha de seis meses e a sangria do animal pendurado de cabeça para baixo. “É assim que geralmente se mata um carneiro que vai para o supermercado, né? Não adianta a gente achar que a carne chega à nossa mesa sem ter que fazer isso. O animal tem que ser abatido”, disse no programa. Após críticas na imprensa e nas redes sociais, foi retirado do programa o trecho da morte do bicho.
Embora Rodrigo Hilbert tenha dado ao espectador a impressão de que o homem criou os programas de culinária imediatamente após ter descoberto o fogo, essa exibição de um ato rude proporcionou ao público a oportunidade de entender que o processo para a carne chegar até ao prato não começa no freezer do supermercado. De certa forma, a controvérsia foi oportuna para o discurso dos ativistas do vegetarianismo e veganismo.
Essa saraivada de programas gastronômicos não proporciona apenas a ocorrência de gestos maldigeridos pelo espectador e gafes, como Bela Gil oferecer um alimento que seu convidado detesta, mas, sobretudo, incentiva a valorização do ato de cozinhar. “Essa profusão significa que essa atividade humana foi reposicionada na escala de valores do grande público. Toda escala é uma hierarquia, e certamente tomou lugar de outro tipo de preferências. Sinaliza uma disputa acirrada por um mesmo público, e interessa à indústria alimentar em geral”, afirma o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor do livro Formação da culinária brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira (2014).
Assim como Dória, a jornalista e escritora especializada em gastronomia Luciana Mastrorosa é uma das pessoas aficionadas por alimentação a considerar que esses programas contribuem para o enaltecimento da cultura culinária. “Algumas décadas atrás, trabalhar na cozinha era considerado, erroneamente, um emprego menor. À medida que os chefs se transformaram em celebridades – primeiro no mundo, depois no Brasil –, houve uma valorização natural na carreira de cozinheiro, inclusive com a criação de cursos, especializações e todo um novo arsenal voltado para a formação desse profissional”, avalia, e pondera: “Esse glamour construído em torno da profissão de cozinheiro leva a muitas ilusões”.
MASTERCHEF
Talvez seja a busca por esse glamour que leve muitos candidatos a participarem do programa de maior audiência na área, no Brasil, o MasterChef. Transmitido pela Band desde 2014, levou a emissora, em 2015, à surpreendente liderança, com 10 pontos no Ibope, ultrapassando, inclusive, a Globo, que, por sua vez, assim como a Record e o SBT, também exibe competições gastronômicas. A TV de Sílvio Santos, por exemplo, apresentou, em setembro, a quarta temporada da versão nacional do programa que popularizou o neurastênico chef londrino Gordon Ramsay, Hell’s Kitchen: Cozinha Sob Pressão. A estreia conseguiu 8.4 pontos de audiência.
Criado em 1990, no Reino Unido, o MasterChef virou, a partir de 2005, uma franquia e passou a ser exibido em mais de 40 países e em diferentes versões, como o MasterChef Junior, com crianças competindo, e o Celebrity MasterChef, com famosos. Influenciado pelo sucesso do reality show, foi criado, em 2012, o Top Chef (exibido pela Sony), em que a disputa é entre profissionais e não amadores. O televisivo já foi produzido em nove países e ganhou adaptações, como Top chef: Masters, com chefs premiados, e Top Chef Justdesserts, com confeiteiros.
Ao contrário desses reality shows e dos programas de balcão, de caráter efêmero, iniciativas televisivas como Chef’s Table, sofisticada série de documentários da Netflix sobre renomados chefs internacionais, têm mais perenidade. Na primeira temporada, o destaque ficou com o cozinheiro Massimo Bottura, que comanda a Osteria Francescana, em Modena, Itália (em primeiro lugar na lista The World’s 50 Best Restaurants). A segunda, que estreou em maio deste ano, conta com o brasileiro Alex Atala. As duas próximas temporadas já estão confirmadas.
Outros programas que resistem mais ao tempo são os apresentados pelo chef nova-iorquino Anthony Bourdain. Realizados a partir de viagens, abordam a cultura de diversas cidades a partir do olhar perspicaz do cozinheiro, roteirista e autor de diversos livros sobre o tema. Em Ao ponto (2010), ele escreve sobre a experiência de se transformar em um apresentador de TV: “Fui sugado – não pela fama ou dinheiro (do qual havia bem pouco). Faz tempo que eu já havia consumido toda a cocaína que jamais quisera. Nenhum carro esportivo curaria minhas dores. Fui seduzido pelo mundo – e pela liberdade que a televisão me deu de viajar o quanto quisesse. Também fui entorpecido por um novo e excitante poder de manipular imagens e sons com o intuito de contar histórias, de fazer a audiência sentir o que eu queria que ela sentisse sobre os lugares em que estive. Estava cada vez mais orgulhoso de alguns dos episódios que eu e meus parceiros fizemos – e de como os estávamos fazendo. Comecei a apreciar o que editores de vídeo, técnicos de som e de pós-produção eram capazes. Fazer TV estava se tornando… divertido, e, em mais do que apenas alguns casos, realmente, criativamente satisfatório”.
Esse banquete de programas culinários, em que o espectador, se não aprende a cozinhar, habitua-se a comer com os olhos, certamente aponta um benéfico interesse maior da sociedade contemporânea pela alimentação. Para o sociólogo Carlos Alberto Dória, “A receita é como um mito em torno de um prato. Para fruir essa dimensão, não é obrigatório cozinhar. A diversão está em ver alguém fazer, ver o mito em ação”. Nem que seja o icônico “frango total flex” do Larica Total.