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O banquete dos programas de culinária

Televisivos de gastronomia são um dos maiores filões dos canais abertos e fechados, oferecendo ao público mais do que “apenas” receitas

TEXTO Débora Nascimento

01 de Novembro de 2016

Em 2009, programa

Em 2009, programa "Larica Total"ganhou APCA de Melhor Humorístico

foto divulgação

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

Um homem de meia idade, com careca avançada, barba por fazer, bigode, bermuda surrada, sandália havaiana velha e camisa florida aberta até a barriga chega em frente à câmera da TV e, com pesadíssimo sotaque carioca, anuncia: “Hoje, vamos fazer uma moqueca de ovo!”. Tem início mais um episódio do Larica Total, programa de “culinária de guerrilha”, realizado pelo Canal Brasil entre 2009 e 2012, com reprise até 2014. Atualmente, seus 75 episódios podem ser revistos na seção Now da Net, no site do canal ou no YouTube – neste, estão disponíveis alguns poucos trechos dessa divertida epopeia gastronômica. O sucesso do televisivo pode ser medido pela quantidade de internautas que pedem, em comentários nas redes sociais, a sua volta: ele não foi cancelado por falta de público, apoio ou verba, mas porque o apresentador Paulo Tiefenthaler cansou de viver o personagem do solteirão convicto que prepara gororobas com “o que tem pra hoje” em seu apartamento em Santa Teresa.

A realização do Larica Total, eleito Melhor Programa Humorístico de 2009 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), é uma prova inconteste do quão longe foi o interesse do espectador e dos canais de TV pelos programas de culinária. O menu na televisão (e nos serviços de streaming) é variadíssimo: tem programa de chef ensinando a cozinhar, de celebridade mostrando como cozinha, de gente competindo para ver quem cozinha mais rápido e melhor, de chef viajando para degustar “comeu-morreu” em lugares exóticos. Segundo o Ibope, no Brasil, são exibidos 67 televisivos desse tipo em 70 canais, entre TV aberta e fechada, como GNT, TLC, Fox Life, Sony, Discovery e Food Network (que tem canal ao vivo na web). Ao que parece, apostar nesse filão se tornou ingrediente crucial na receita para conquistar audiência.

O paradoxo desse fascínio pelos programas de gastronomia é que hoje as pessoas têm menos tempo para cozinhar do que em 1958, quando Ofélia Ramos Anunciato repassou suas primeiras receitas em um quadro no Revista feminina, da TV Tupi. O sucesso foi tanto, que, após uma década, a cozinheira foi contratada pela TV Bandeirantes, na qual comandou por 30 anos o Cozinha Maravilhosa da Ofélia.

Paralelamente, nos Estados Unidos, construía sua carreira Julia Child, carismática apresentadora de TV que trouxe para o seu país o conhecimento que obteve com a cozinha francesa, após viagem a Paris. Ambas, Julia e Ofélia, tornaram-se, durante muito tempo, referências em seus países para a criação de programas de culinária. Hoje, no entanto, são poucos os canais que investem no perfil de senhoras que cozinham sobre um balcão e tratam o público como se fosse formado apenas por “donas de casa”. No Brasil, esse estilo mantém-se com Palmirinha (Fox Life) e Ana Maria Braga (TV Globo).

O restante dos canais aposta em apresentadores com perfis diversificados. No entanto, uma característica se sobressai: geralmente, esses profissionais são mais jovens. Esse aspecto ganhou maior dimensão com o cute chef inglês Jamie Oliver, que se tornou um fenômeno quando surgiu na TV inglesa em 1996, aos 21 anos, com The Naked Chef – o título deu origem ao primeiro de seus 10 livros de receitas e depois a outros programas.

Com a popularidade em alta, Oliver aproveitou para começar uma campanha em prol da alimentação saudável, sendo um dos maiores incentivadores do consumo de alimentos orgânicos e de uma reforma no sistema de merenda nas escolas britânicas – antes baseado em produtos industrializados e fast-food, algo que se vê nas escolas públicas e particulares do Brasil.

A formidável repercussão do chef abriu espaço para apresentadores como Bela Gil. Ao contrário de Julia Child, que dizia “Com bastante manteiga, tudo é bom”, a filha de Gilberto Gil, formada em Nutrição na Hunter College (EUA), dedica-se com tanto empenho a pratos saudáveis em seu Bela Cozinha (GNT), no ar desde o início de 2014, que acabou virando alvo de piadas nas redes sociais.

Algumas de suas receitas, inclusive, tornaram-se memes clássicos, como a melancia grelhada com azeite e pimenta. “Acredito que um dos maiores inimigos da alimentação saudável é o marketing e estou constantemente remando contra essa maré de propagandas, tentando mostrar e glorificar o que realmente é bom para o nosso corpo e para o planeta”, defendeu, em entrevista ao site da Continente, em agosto do ano passado.

POLÊMICA NO AR
De prato em prato, ampliou-se tanto o cardápio da gastronomia na TV, que abriu espaço até para o modelo e ator Rodrigo Hilbert, do Tempero de Família, também exibido pelo GNT. O hostess foi alvo de uma baita polêmica ao exibir, em março deste ano, a captura de um filhote de ovelha de seis meses e a sangria do animal pendurado de cabeça para baixo. “É assim que geralmente se mata um carneiro que vai para o supermercado, né? Não adianta a gente achar que a carne chega à nossa mesa sem ter que fazer isso. O animal tem que ser abatido”, disse no programa. Após críticas na imprensa e nas redes sociais, foi retirado do programa o trecho da morte do bicho.

Embora Rodrigo Hilbert tenha dado ao espectador a impressão de que o homem criou os programas de culinária imediatamente após ter descoberto o fogo, essa exibição de um ato rude proporcionou ao público a oportunidade de entender que o processo para a carne chegar até ao prato não começa no freezer do supermercado. De certa forma, a controvérsia foi oportuna para o discurso dos ativistas do vegetarianismo e veganismo.

Essa saraivada de programas gastronômicos não proporciona apenas a ocorrência de gestos maldigeridos pelo espectador e gafes, como Bela Gil oferecer um alimento que seu convidado detesta, mas, sobretudo, incentiva a valorização do ato de cozinhar. “Essa profusão significa que essa atividade humana foi reposicionada na escala de valores do grande público. Toda escala é uma hierarquia, e certamente tomou lugar de outro tipo de preferências. Sinaliza uma disputa acirrada por um mesmo público, e interessa à indústria alimentar em geral”, afirma o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor do livro Formação da culinária brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira (2014).

Assim como Dória, a jornalista e escritora especializada em gastronomia Luciana Mastrorosa é uma das pessoas aficionadas por alimentação a considerar que esses programas contribuem para o enaltecimento da cultura culinária. “Algumas décadas atrás, trabalhar na cozinha era considerado, erroneamente, um emprego menor. À medida que os chefs se transformaram em celebridades – primeiro no mundo, depois no Brasil –, houve uma valorização natural na carreira de cozinheiro, inclusive com a criação de cursos, especializações e todo um novo arsenal voltado para a formação desse profissional”, avalia, e pondera: “Esse glamour construído em torno da profissão de cozinheiro leva a muitas ilusões”.

MASTERCHEF
Talvez seja a busca por esse glamour que leve muitos candidatos a participarem do programa de maior audiência na área, no Brasil, o MasterChef. Transmitido pela Band desde 2014, levou a emissora, em 2015, à surpreendente liderança, com 10 pontos no Ibope, ultrapassando, inclusive, a Globo, que, por sua vez, assim como a Record e o SBT, também exibe competições gastronômicas. A TV de Sílvio Santos, por exemplo, apresentou, em setembro, a quarta temporada da versão nacional do programa que popularizou o neurastênico chef londrino Gordon Ramsay, Hell’s Kitchen: Cozinha Sob Pressão. A estreia conseguiu 8.4 pontos de audiência.

Criado em 1990, no Reino Unido, o MasterChef virou, a partir de 2005, uma franquia e passou a ser exibido em mais de 40 países e em diferentes versões, como o MasterChef Junior, com crianças competindo, e o Celebrity MasterChef, com famosos. Influenciado pelo sucesso do reality show, foi criado, em 2012, o Top Chef (exibido pela Sony), em que a disputa é entre profissionais e não amadores. O televisivo já foi produzido em nove países e ganhou adaptações, como Top chef: Masters, com chefs premiados, e Top Chef Justdesserts, com confeiteiros.

Ao contrário desses reality shows e dos programas de balcão, de caráter efêmero, iniciativas televisivas como Chef’s Table, sofisticada série de documentários da Netflix sobre renomados chefs internacionais, têm mais perenidade. Na primeira temporada, o destaque ficou com o cozinheiro Massimo Bottura, que comanda a Osteria Francescana, em Modena, Itália (em primeiro lugar na lista The World’s 50 Best Restaurants). A segunda, que estreou em maio deste ano, conta com o brasileiro Alex Atala. As duas próximas temporadas já estão confirmadas.

Outros programas que resistem mais ao tempo são os apresentados pelo chef nova-iorquino Anthony Bourdain. Realizados a partir de viagens, abordam a cultura de diversas cidades a partir do olhar perspicaz do cozinheiro, roteirista e autor de diversos livros sobre o tema. Em Ao ponto (2010), ele escreve sobre a experiência de se transformar em um apresentador de TV: “Fui sugado – não pela fama ou dinheiro (do qual havia bem pouco). Faz tempo que eu já havia consumido toda a cocaína que jamais quisera. Nenhum carro esportivo curaria minhas dores. Fui seduzido pelo mundo – e pela liberdade que a televisão me deu de viajar o quanto quisesse. Também fui entorpecido por um novo e excitante poder de manipular imagens e sons com o intuito de contar histórias, de fazer a audiência sentir o que eu queria que ela sentisse sobre os lugares em que estive. Estava cada vez mais orgulhoso de alguns dos episódios que eu e meus parceiros fizemos – e de como os estávamos fazendo. Comecei a apreciar o que editores de vídeo, técnicos de som e de pós-produção eram capazes. Fazer TV estava se tornando… divertido, e, em mais do que apenas alguns casos, realmente, criativamente satisfatório”.

Esse banquete de programas culinários, em que o espectador, se não aprende a cozinhar, habitua-se a comer com os olhos, certamente aponta um benéfico interesse maior da sociedade contemporânea pela alimentação. Para o sociólogo Carlos Alberto Dória, “A receita é como um mito em torno de um prato. Para fruir essa dimensão, não é obrigatório cozinhar. A diversão está em ver alguém fazer, ver o mito em ação”. Nem que seja o icônico “frango total flex” do Larica Total.

 

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