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Lula Queiroga: Um novo e pequeno apocalipse a cada dia

Investindo na poesia lírica e crítica, compositor pernambucano lança quinto disco da carreira – que traz parcerias com músicos da nova geração da MPB

TEXTO Gabriela Alcântara

01 de Fevereiro de 2012

Lula Queiroga

Lula Queiroga

Foto Moacir Torres/Divulgação

Não é de hoje que somos apresentados a uma teoria que prevê o fim do mundo, seja por catástrofe natural ou grandes guerras. Teorias apocalípticas são comuns, estando presentes também nas artes. Na música, não seria diferente. Dono de algumas das melhores composições sobre o cotidiano, e nomeado pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como o melhor compositor do ano, Lula Queiroga traz em seu recente disco, Todo dia é o fim do mundo, lançado em dezembro de 2011, um novo olhar para o tema.

Longe das letras óbvias, o radar incansável de Lula prefere captar sinais que estão à nossa frente todos os dias, em relacionamentos que nascem ou morrem, nos noticiários ou subúrbios. Inquieto, o músico tem um pensamento que passeia pelos mais diversos lados de uma história, transformando o mundo que o cerca em poesia. Assim é o processo de composição de Lula, que afirma viver em eterno estado de alerta criativo. Nesse álbum, o compositor retrata o caos cotidiano com ousadia: as letras são, na sua maioria, críticas ou tristes, mas aliadas a melodias leves ou surpreendentemente animadas alcançam um equilíbrio poético.

A contradição e a poesia se mostram presentes já na primeira impressão: na capa, uma imagem colorida de uma moça segurando balões na garupa de uma bicicleta. Para Lula, esse é o retrato de como os trabalhadores vivem o sábado. Se o mundo acaba todas as segundas-feiras, que aos finais de semana alcancemos o paraíso. O disco começa com o romance nascente de Se não for amor eu cegue (Love), que surge abrindo os ouvidos sem pedir licença, e se instala na memória afetiva do ouvinte. Love traduz o início da paixão, que vem livre, lava a alma, escorrega pela veia e vai bater na pupila.

A facilidade com que Lula e sua banda – formada por Yuri Queiroga (guitarra), Lucky Luciano (baixo), Tostão Queiroga (bateria) e Thiago Hoover (guitarra) – conseguem costurar temas políticos e críticas sociais a elementos mais lúdicos fica clara na canção que segue, Os culpados, uma verdadeira crônica sobre a ocupação de carros blindados nos grandes centros. Ao comentar a composição, o músico afirma que “pela primeira vez, o blindado passa por cima de tudo e todos, descaradamente. E a população aplaude, chora, joga flores. Enquanto isso, ‘procura em vão os culpados’ pela violência”. O teor humano e político repete-se em outras faixas, como Voo cego, em que acompanhamos a busca desesperada do homem que perdeu tudo na enchente, o silêncio da lama tapando os ouvidos, enquanto ele tenta achar sua amada que foi levada pela força do rio.

Produzido pelo próprio Lula Queiroga e seu sobrinho Yuri Queiroga, através da Luni Produções, Todo dia é o fim do mundo é um trabalho tão instigante, que procurar faixas de destaque se torna uma tarefa difícil. A cada uma das 12 músicas, que vão do samba Unha e carne, do peso das guitarras de Yuri em Padrões de contato até a ciranda de Atlantis, o ouvinte é apresentado a um novo mundo, com cenários e personagens diferentes, mesmo que convivam tão perto um do outro, tal qual a “vida real”. E se em Dias assim (dedicada ao amigo Lula Côrtes, de quem Queiroga diz ter sofrido grande influência) dançamos alegres com o personagem que forra o chão com seus sonhos e vai decorando sua casa e alma para o encontro com um grande “amor imaginário que ocupa a casa inteira”, Dos anjos traz toda a melancolia de um romance entre um homem e um anjo caído.

Um ponto forte do álbum são as inúmeras parcerias, característica que sempre esteve presente na trajetória do músico, e que aqui conta com nomes como Isaar, Marcelo Jeneci, Marcelo Lobato e Marcos Lobato (do Rappa), entre outros. Luiza Possi entrou quando Todo dia... já estava sendo gravado e emprestou sua voz à triste Um do outro, e os gritos a Padrões de contato. Já os rapazes do Rappa afirmaram em uma entrevista que, após tocarem no disco e disponibilizarem o estúdio de sua banda para as faixas em que participam, saíram da gravação com a ideia de que precisavam renovar sua música.

MERGULHO
Outro traço marcante é o poder de imersão que Lula tem com seus projetos. Publicitário, produtor e cineasta, ele afirma que aprendeu com o estilista Ronaldo Fraga o valor do mergulho no próprio trabalho. “Tudo que eu olhava tinha o disco. O fim do mundo está rolando por aí, eu não falo de aquecimento global, e, sim, da agonia diária das rotinas, dos mendigos, da tristeza. Mergulhei de cabeça nisso.”

Patrocinado pelo Sistema de Incentivo à Cultura da Prefeitura do Recife, e gravado nos estúdios da Luni, o cuidado com a obra fica evidente desde as canções até a arte do disco, que valoriza a ideia geral do projeto. Com minimalismo e atenção ao que passaria despercebido aos olhos cansados e acostumados à violência “natural” dos grandes centros, Lula distancia-se dos vulcões e tsunamis, apresentando um trabalho que encontra identificação com vários públicos. Para ele, o fim do mundo anunciado nos telejornais diários é desnecessário e alarmista. Como diz a faixa-título: “Não tenha pressa, que o fim não é agora (...). Todo dia tem que respirar mais fundo”. 

GABRIELA ALCÂNTARA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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