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Instituições: Qual o lugar, hoje, desse gênero espontâneo?

Por falta de verbas, o Museu Internacional de Arte Naïf, cujo acervo possui mais de 6 mil obras de artistas nacionais e internacionais, fechou suas portas em definitivo

TEXTO GUSTAVO LEITÃO
FOTOS MARIANA QUINTÃO

01 de Setembro de 2011

Representação detalhista da paisagem carioca, por Lia Mittarakis, faz parte do acervo do Mian

Representação detalhista da paisagem carioca, por Lia Mittarakis, faz parte do acervo do Mian

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 129 | setembro 2011]

A má notícia chegou no dia 4 de abril,
na forma de uma placa afixada no portão do casarão antigo da Rua Cosme Velho, 561, no Rio de Janeiro. Referência brasileira no campo da arte popular, o Museu Internacional de Arte Naïf (Mian), centro cultural inaugurado em 1995, a 30 metros do burburinho turístico do bondinho do Corcovado, avisava aos frequentadores que não abriria mais. Não era exatamente uma surpresa. Em 2007, o espaço já havia fechado as portas pelo mesmo motivo: falta de recursos. Este ano, pouco antes do fechamento definitivo, tinha passado a abrir apenas para visitas agendadas por telefone. Do outro lado das grades trancadas, estão 6 mil obras naïfs nacionais e estrangeiras, o maior acervo do mundo. Com o vácuo, fica a pergunta: qual é o lugar, hoje, desse gênero espontâneo de arte que, no Brasil, ganhou representantes originalíssimos e reconhecidos como Heitor dos Prazeres?

A busca incansável do Mian por recursos parece reproduzir a mesma carência dos artistas primitivos ali representados. Mantido com a ajuda da prefeitura do Rio, por meio da Lei nº 2734, de 1998, o museu, sede da Fundação Lucien Finkelstein, recebeu a ajuda financeira da Secretaria Municipal de Cultura, entre 1999 e 2006. Desde 2005, os R$ 16 mil mensais começaram a rarear, até serem totalmente interrompidos em 2007. Sem ter como se manter, o espaço cerrou as portas. Até que, no ano seguinte, a Light, companhia de iluminação fluminense, propôs uma parceria. Comandou um estudo de viabilidade econômica e acabou não levando o projeto adiante. “Só reabriremos, quando efetivamente houver verba na nossa conta bancária. Não para ficar um ano, mas para continuarmos abertos por um longo prazo”, decreta a museóloga Jacqueline Finkelstein, diretora do centro.


Artista canônico do gênero, nascido em fins do século 19, o carioca Heitor dos
Prazeres foi também compositor. Imagem: Reprodução

Uma visita ao museu evidencia, ao mesmo tempo, a importância do acervo e as dificuldades de mantê-lo. Cercada de mangueiras centenárias, a casa do século 19, tombada pelo patrimônio histórico, serve como espaço expositivo, administração e reserva técnica. No salão principal, coalhado de obras e com poucas brechas livres de parede, está uma espécie de quem-é-quem da arte naïf nacional, incluindo nomes como P.P. Leal, Chico da Silva, Heitor dos Prazeres, Miranda e Cardosinho. Chama a atenção um painel multicolorido do Rio, assinado por Lia Mittarakis, com os principais pontos turísticos cariocas, como o Cristo Redentor e o Estádio do Maracanã, numa superfície de 4 m x 7 m, que atrai os olhos como um imã. No topo da sala, um quadro contínuo ocupa todas as paredes, seguindo até pelas arestas. É Brasil, 500 anos, de Aparecida Azevedo, com seus impressionantes 1,4 m x 24 m.

Em outros cantos, estão obras menores com cenas religiosas, panfletos políticos, festas populares e bailados. Quase sempre dominados por multidões, com um pano de fundo de cores intensas e perspectiva distorcida. A semelhança estilística das obras, produzidas em várias regiões do país por artistas geralmente modestos, em aparente isolamento criativo, é o que mais impressiona.

INSTALAÇÕES
Também chama a atenção a falta de equipamentos para o controle de temperatura no salão, comuns em museus do gênero. Ou de ventiladores. As luzes são do tipo fluorescente, mais econômicas, porém nem de longe as mais adequadas às obras de arte. Não há projeto de sinalização. “A casa nunca pôde passar por uma adequação para virar um museu. Nunca tivemos verba. Até os adornos da fachada estão caindo”, afirma Jacqueline, que já tentou, sem sucesso, buscar recursos com a Lei Rouanet e, agora, aguarda um fundo de auxílio de uma fundação na Holanda para as obras mais emergenciais. Dos 11 funcionários do museu, sobrou apenas o vigia.


Seres fantásticos e mitológicos habitam as telas do artista acriano Chico da Silva.
Imagem: Reprodução

No andar de baixo, encontra-se a reserva técnica – parcialmente interditada depois de uma enchente há dois anos –, em que ficam guardados quadros sem a climatização ou estantes adequadas. Arborizado, o Cosme Velho, bairro da Zona Sul onde fica o museu, é conhecido pelo clima ameno. Porém, a temperatura de 25ºC e a umidade relativa do ar de cerca de 50% são favoráveis à reprodução de microorganismos nocivos às telas. “Já estamos enfrentando problemas de deterioração em alguns quadros”, diz Jacqueline. Dessas, 150 a 200 já requerem trabalho de restauração.

COLECIONADORES
A diretora é filha do criador do museu, Lucien Finkelstein, um francês que dedicou a vida a propagar a arte popular. Joalheiro, ele chegou ao Rio em 1948, disposto a ficar por algumas semanas. Logo se apaixonou por uma prima e por um quadro do músico e pintor autodidata Heitor dos Prazeres, considerado o pioneiro dos naïfs nacionais – conseguiu comprar a obra por um preço irrisório. A coleção reunida pelo ourives até sua morte, em 2008, com exemplares de cerca de 130 artistas, é celebrada mundialmente. Tanto que, em 2007, quando o Mian sucumbiu à escassez de recursos pela primeira vez, a notícia foi parar no Le Monde. “É realmente uma pena, pois o acervo que Lucien Finkelstein conseguiu reunir, com centenas de artistas brasileiros e estrangeiros e milhares de obras, deveria ter recebido um efetivo apoio dos órgãos públicos. O Brasil perde muito com isso, dado o desinteresse não só pelos museus, mas pela cultura brasileira, de um modo geral”, lamenta o curador Antônio do Nascimento.

Como geralmente não têm acesso aos museus e galerias, muitos desses artistas precisam ser descobertos para ganharem visibilidade maior. Isso ajuda a explicar por que o fundador do Mian e outros colecionadores conseguiram reunir grandes acervos, comprados aos poucos em suas peregrinações pelo país. José Rodrigues de Miranda (1907-1985), o Miranda, trabalhava como faxineiro de uma escola no Recife, quando teve seus primeiros quadros comprados por Finkelstein. Chico da Silva (1910-1985), pintor de dragões e criaturas fantásticas, foi tirado do anonimato pelo suíço Jean Pierre Chabloz. Depois, chegou a ganhar menção honrosa na Bienal de Veneza. Pedro Paulo Leal (1894-1967), ou PPL, autor do engajado A matança dos mendigos do Rio Guandu, foi celebrizado pelomarchand romeno Jean Boghici, dono de uma galeria no Rio. Intelectuais também ajudaram a chamar a atenção para essa produção, a partir dos anos 1950. Gente como o escritor Rubem Braga, que, em 1953, escreveu sobre Cardosinho, Heitor dos Prazeres e José Antônio da Silva em Três pintores primitivistas.


A museóloga Jacqueline Finkelstein herdou, do pai, o Mian.
Foto: Mariana Quintão

Com poucos centros culturais especializados, o destino dessas obras é quase sempre a casa dos colecionadores ou algumas parcas galerias dedicadas aos naïfs, como a Jacques Ardies, aberta em 1979, em São Paulo, que põe à venda obras de nomes como Zé Cordeiro (1942) e Dila (1939). Antes da fama, artistas costumam expor seus quadros em feiras ao ar livre, espalhadas pelo país. Em raras ocasiões, elas participam de leilões badalados. O último deles foi em 2009, um ano após a morte de Lucien Finkelstein, quando alguns quadros de sua coleção particular foram postos à venda pela marchande Soraia Cals, no Rio. Há ainda exposições esparsas. A mais importante delas (e uma das poucas com continuidade) é a Bienal de Naïfs do Brasil, criada por Nascimento em 1986, no Sesc de Piracicaba (SP), e comandada pelo curador, de 1992 a 2002. Atualmente, a curadoria é trocada a cada edição.

CLASSIFICAÇÕES
A inexistência de parâmetros é, ao mesmo tempo, o chamariz e a armadilha da arte popular. Como não dá para excluir ninguém do rótulo com base em critérios técnicos, os curadores, compradores e espectadores têm que saber se resguardar do vale-tudo artístico. Para o curador Paulo Klein, o conceito da arte naïf tem que ser atualizado, sob pena de se perder. Ele cita o fechamento do Mian como decorrência da falta de diálogo dessa produção com outros movimentos artísticos. “Ao longo dos anos, sempre existiu preconceito contra a arte popular e os segmentos mais ingênuos. Talvez a própria não atualização do conceito tenha prejudicado a sua manutenção e, consequentemente, a do museu”, afirma.

Em 2002, Klein deu contornos bem palpáveis a esse discurso na exposição Pop Brasil: A arte popular e o popular na arte, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. A mostra causou frisson logo no título, que evocava a pop art. A ideia era partir da experiência de Mario de Andrade, que, entre 1927 e 1938, percorreu o país para pesquisar a cultura popular e suas fronteiras com o erudito. No CCBB, nomes consagrados do naïf como Cardosinho, Paulo Peciro Leal e José Antônio da Silva dividiam espaço (e afinidades artísticas) com Rubens Gerchman, Cildo Meireles e Samico. “Procurei desconstruir o termo, que também não precisa ficar restrito à pintura. Há exemplos magníficos na fotografia, como aquelas pintadas no Ceará; em objetos, como as bonecas de pano”, enumera o curador. 

GUSTAVO LEITÃO, jornalista, editor assistente do Filme B, portal de mercado de cinema.
MARIANA QUINTÃO, fotógrafa.

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