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Coadjuvantes na hierarquia da criminalidade

TEXTO Ana Paula Portella

01 de Março de 2012

A maioria das presidiárias brasileiras envolveu-se no tráfico de drogas e, nele, ficou subordinada aos homens

A maioria das presidiárias brasileiras envolveu-se no tráfico de drogas e, nele, ficou subordinada aos homens

Foto Marlene Bergamo/Folhapress

[conteúdo vinculado à reportagem de "História"| ed. 135 | março 2012]

Aos 102 anos, em fevereiro de 2012,
morreu Dona Mocinha, a última irmã viva de Lampião. Apesar de retratada pela imprensa com o típico chapéu do cangaço, fazendo crer que seria ela também uma cangaceira, o que se sabe é que, por ser muito jovem à época, Dona Mocinha não chegou a participar do bando de Lampião. Mas a sua imagem com o adorno traz à memória outras mulheres, especialmente Maria Bonita e Dadá, as figuras emblemáticas da presença feminina no cangaço.

O cangaço é um fenômeno que permanece ambíguo em nosso imaginário. Bandidos, heróis, justiceiros, aventureiros são epítetos que se misturam para compor a imagem desses homens e mulheres que marcaram a história do Nordeste na primeira metade do século 20. Independentemente de qual dessas imagens prevaleça e do julgamento que se faça a esse respeito, não se deve esquecer de que esses grupos constituíram um modo de vida alternativo aos rígidos padrões morais da sociedade da época.

Em um vídeo sobre a sua vida (A musa do cangaço, de José Umberto Dias Brasil), Dadá, companheira de Corisco, descreve o cotidiano desses grupos e, em seu relato, é perceptível o encantamento pela forma como as atividades diárias eram divididas entre homens e mulheres e, principalmente, pelo respeito com que as mulheres eram tratadas pelos homens. Seu depoimento é curioso e importante por muitas razões, embora se deva ponderar sobre a nossa tendência natural de embelezamento do passado como uma forma de apaziguamento pessoal e de justificação perante o público. Mas, aqui, isso é irrelevante.

Dadá foi levada ao cangaço como parte de uma vingança de Corisco contra seu pai, que supostamente teria denunciado à polícia um integrante do bando do cangaceiro. O rapto, um ato de violência cometido por homens armados, porém, não foi suficiente para produzir em Dadá sentimentos negativos com relação ao raptor. Pelo contrário, em sua fala, ela apaga toda a conotação violenta do episódio, reveste-a de características românticas, enfatizando os aspectos positivos de sua vida no bando, na qual o que sobressai é o carinho e o respeito que Corisco lhe tinha. Como líder do grupo, eleexigia dos demais que mantivessem igual postura com relação a Dadá.

Ela não fala sobre a vida que levava antes do cangaço, mas não é difícil imaginar como vivia uma jovem solteira no interior de um Nordeste extremamente pobre e isolado do litoral e de outras regiões do país. É farta a literatura sobre esse contexto, não preciso recorrer a ela, bastando lembrar que cabia à mulher os cuidados com a casa e com a família, acumulados com o trabalho agrícola na roça familiar. Sua mobilidade limitava-se ao perímetro doméstico e familiar e seu destino era seguir os passos da mãe, o que, com exceção do sexo, representava a repetição de sua vida na família de origem.

Ao contrário do que se tentou fazer crer às mulheres durante séculos, esse não é e nunca foi um destino muito atraente ou desejável, por isso é compreensível que, diante de outras possibilidades, as mulheres dele abram mão. E não foram poucas as que fizeram isso ao longo da história e em todos os continentes. Trata-se, na verdade, de um movimento de autonomia em direção à construção de possibilidades de vida mais satisfatórias. Pergunto-me se, sem o rapto, Dadá conseguiria fugir por vontade própria ou encontrar outros caminhos para a própria vida. Essa é a pergunta que deve ser feita diante da presença de mulheres em grupos que desenvolvem atividades criminosas. Que possibilidades são oferecidas a elas para que escolham ou construam seus modos de vida?

Entrar no mundo do crime é uma decisão que produz surpresa, quando o indivíduo em questão é uma mulher. Apesar das muitas representações das mulheres como seres desviantes e perigosos, quando se trata de delito, o que se sobressai são as imagens de cuidadoras, afetuosas, responsáveis pela manutenção dos vínculos familiares, que contrastam com a ideia detrangressão, especialmente a violenta. Daí o espanto.

É verdade que tem aumentado a participação delas nesse universo, o que se atesta pelo crescimento do número de presidiárias e também pelos estudos que analisam a atuação de grupos criminosos em áreas periféricas de grandes cidades brasileiras. Apesar disso, elas ainda representam uma parcela muito pequena nesse contexto e, assim como nas atividades lícitas, concentram-se nos postos de menor poder e com menor capacidade de geração de recursos financeiros. O tráfico de drogas é o negócio que mais as atrai, mas também se registra a sua participação em roubos e assaltos, geralmente atuando como iscas, distraindo a vítima antes do ataque. De forma minoritária, encontram-se mulheres que controlam o varejo de drogas em algumas áreas e que utilizam armas de fogo.

De modo semelhante às cangaceiras, muitas vezes, a entrada das mulheres no crime é decorrente do envolvimento amoroso com um homem, que lhes garante proteção e abre caminhos dentro do grupo. Outra particularidade de sua situação – pouquíssimo explorada em documentos sobre o assunto – são as experiências e os conflitos decorrentes da vida sexual, reprodutiva e familiar. Os raros estudos sobre esse tema sugerem que as mulheres que se envolvem com a criminalidade são muito jovens, iniciaram a vida sexual antes dos 15 anos e logo se depararam com a primeira gravidez, enfrentando os dilemas e possibilidades de interromper a gravidez ou de ter filhos, geralmente em relações afetivas tumultuadas com os rapazes e sem qualquer apoio por parte da família ou de instituições governamentais. Para algumas, esses novos acontecimentos se dão em contextos extremamente precários de violência doméstica, do uso de drogas, da exploração sexual e da vida na rua.

É aí que se estabelece o início de uma trajetória que antecipa para a adolescência questões e situações da vida adulta, levando-as ao abandono dos estudos e dificultando o desenvolvimento de aptidões profissionais para a inserção no mundo do trabalho. Antes dos 20 anos, portanto, suas alternativas de vida já são bastante limitadas. O vínculo com um parceiro que detém certo poder na comunidade lhes oferece o sustento, a proteção e, em alguns casos, uma atividade com alguma rentabilidade.

É compreensível o espanto das pessoas diante dessas escolhas, especialmente quando se comparam os limites vividos pelas mulheres há 80 anos às possibilidades oferecidas e aos direitos garantidos às meninas, hoje. O que parece escapar, aqui, é a noção de que as escolhas não se dão no vazio, mas dependem dos contextos em que vivem os sujeitos. Infelizmente, as circunstâncias de vida de algumas jovens brasileiras ainda sofrem as restrições da pobreza, da violência doméstica e da ausência de suporte para o controle efetivo da vida reprodutiva. Desse modo, a entrada na criminalidade pode se constituir como via de saída e alternativa a uma condição de vida pouco promissora – o que aproxima essas meninas das jovens mulheres que se juntaram ao cangaço e nos faz ver que, em certos aspectos da vida social e das relações de gênero, ainda há muito a ser feito. 

ANA PAULA PORTELLA, doutoranda em Sociologia na UFPE e pesquisadora na área de criminalidade e segurança.

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