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"Experienciar a alta gastronomia é algo que arrefecerá"

Professor da Faap, Silvio Pasarelli fala sobre os aspectos que envolvem o experienciar o que chega à mesa

TEXTO Eduardo Sena

01 de Dezembro de 2015

Silvio Pasarelli

Silvio Pasarelli

Foto Fernando Silveira - Faap/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 180 | dez 2016]

Experiência.
 O termo, que vem do latim experientia (“prova”, “ensaio”, “tentativa”), é tão antigo quanto nosso idioma — segundo o Vocabulário do português medieval, do lexicógrafo Antônio Geraldo da Cunha. É bem verdade que nunca esteve em desuso, mas costumava ser mais utilizado para designar o trabalho científico ou o que você acumula após algum tempo fazendo a mesma coisa. Porém, no contemporâneo, experiência assumiu a função de representar um conjunto de valores abstratos que compõem e qualificam algo. No universo alimentício, sobretudo no que rege a dita alta gastronomia, ganhou mais força ainda, uma vez que parece agregar sensações típicas do que é entendido como luxo. “As pessoas que recorrem à alta gastronomia para fazer uma refeição não querem apenas saciar a fome. Estão pagando para experienciar sensações, serem levadas a algum lugar, sentirem algo diferente”, pontua Silvio Pasarelli, diretor do MBA Gestão de Luxo da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo, com quem conversamos sobre os novos aspectos da alta gastronomia.

CONTINENTE A palavra experiência agora é utilizada para descrever um conjunto de valores abstratos. Por que, na alta gastronomia, experienciar é um valor?
SILVIO PASARELLI No mundo de hoje, valorizam-se as sensações. Estamos vivendo um momento de volta do culto ao hedonismo, corrente filosófica que bebia na fonte da experiência do prazer. E o prazer não é abstrato, é concreto, ele depende da realização. É um ato ligado ao fazer. Como consequência, se vivemos um novo hedonismo, teremos a valorização do fazer, do experenciar. E não seria diferente com a alimentação. Estar conectado com os prazeres que a comida pode oferecer é um dos símbolos da modernidade.

CONTINENTE O pesquisador cultural canadense Will Straw sustenta que “comida é a nova música”, no sentido de que as experiências presenciais (no caso, um show, indo além do disco) são importantes na formação de um repertório cultural. Você concorda?
SILVIO PASARELLI Música sempre esteve como um fator essencial à corte, leia-se à elite. E em todos os momentos da história. Onde funcionou monarquia ou império, a figura do músico sempre pertenceu ao poder. E, sim, pode-se dizer que o ato de comer vai ganhando uma importância social cada vez maior, sobretudo nas metrópoles, onde os encontros sociais se dão boa parte em torno da mesa. O programa do paulistano, por exemplo, é sair para jantar. Sair para comer é entretenimento, um acessório que consagra os valores culturais e sociais em que estão envolvidos.

CONTINENTE Vivenciar a gastronomia (ir aos restaurantes mainstream, saber quem são os principais chefs, estar por dentro das potencialidades de novos ingredientes) é um valor cultural importante na sociedade brasileira?
SILVIO PASARELLI Por enquanto, é um novo modismo, uma expressão de comportamento coletivo, imitativo até. No fundo, por trás disso tudo está a ideia de pertencimento. É como se não dominar a alta gastronomia me trouxesse desvantagens no conviver social. Para ser parte da norma culta, de forma racionalizada, eu preciso de repertório. Preciso de pertencimento. É necessário dominar conteúdos para ser entendido em certos círculos sociais. E o que está em voga é a comida, e se for feita por um chef famoso, trouxer uma tendência, for representativa dentro de alguma lógica cultural local, mais ainda.

CONTINENTE Você trata esse fenômeno como efêmero?
SILVIO PASARELLI Sim! Vai passar! É o inexorável círculo da dialética de Hegel. Estamos no momento de síntese da febre gastronômica, e os que estão tentando dominar esse discurso semiótico mais profundamente e sentem efetivamente prazer, estes, permanecerão. Porém, os imitadores, que não fazem parte legitimamente, lenta e gradualmente vão se dissolver. Experienciar a alta gastronomia é um valor que arrefecerá.

CONTINENTE Você fala que, no contemporâneo, experiência é uma celebração da imaterialidade. O que uma receita gastronômica, tão material, pode trazer de imaterial?
SILVIO PASARELLI Eu já ouvi uma discussão, inclusive num restaurante, entre supostos especialistas em gastronomia que tratavam os cozinheiros e os apreciadores de comida em dois grupos: o das receitas e o dos novos caminhos. Há uma área da gastronomia que é lógica, o livro da receita, mas há a parte do ir além. Conheço chefs de cozinha que vão pela manhã ao restaurante e não sabem nem o que vão servir. Cozinha é um ato de inspiração artística também. E esse é o segundo grupo, os experimentais, que vão levar à mesa coisas que não são quantificáveis enquanto matéria. Um cheiro diferente, um perfume, uma situação de tato. A imaterialidade da comida está na sinestesia.

CONTINENTE O mundo da moda trata as suas tendências com os conceitos de desaguamento e borbulhamento. A primeira, quando a moda sai das passarelas e ganha as ruas; a segunda, quando ela sai das ruas e ganha as passarelas – mais popular, portanto. Como você percebe essa situação na alta gastronomia?
SILVIO PASARELLI Há um borbulhamento. Há coisas percebidas como de menor valia, de domínio popular, mas que são reapresentadas pelos cozinheiros. Existe uma linguiça portuguesa feita de pão, alho e porco, a alheira, bastante popular em Portugal. Quando é frita, é esteticamente horrorosa, rasga, ficam os pedaços dos recheios expostos… Um horror. Mas o sabor é maravilhoso. Certa vez, comi num restaurante um pedaço de alheira servido em uma linda massa folhada. E aí percebi que a essência da linguiça é o gosto, e a essência do prato estava no recheio. Ou seja, houve o borbulhamento, mas coube a estetização para tornar o ingrediente cosmopolita. Os pratos precisam ter uma relação estética com o comensal, isso é característico da alta gastronomia.

CONTINENTE Experienciar é buscar algum status? De que tipo?
SILVIO PASARELLI É aquela dicotomia: não há nada mais prático do que uma boa teoria. Afinal, para construir uma teoria é preciso experimentar várias vezes. O teórico veio da prática, e o mundo é dela. Experenciar é buscar algo que tenha um valor, material ou simbólico, dentro do que fazemos no cotidiano.

CONTINENTE Como você percebe o brasileiro cada vez mais se descolando do eurocentrismo e se rendendo a um Brasil comestível?
SILVIO PASARELLI Isso é um subproduto da percepção nacional da importância do país. O brasileiro tinha vergonha de ser brasileiro. Gregório de Matos falava da síndrome do mazombo, do não pertencimento. E o valor cultural brasileiro, de fato, remetia à Europa. A partir dos anos 1980, também aos EUA, por conta da influência do cinema americano. Mas, ali, no começo dos anos 1990, já com a democracia gritando, fomos percebendo que podemos construir algo novo. Mais recentemente, o que víamos com ar blasé, agora damos valor. Mas foi preciso o estrangeiro valorizar o Brasil para nos tornarmos cientes de nossa capacidade. Começamos a nos surpreender e a nos tornar mais generosos com os atrativos culturais do nosso país: literatura, cinema, artes plásticas, música e, claro, comida. Hoje, o brasileiro médio está mais ufanista, tem orgulho de redescobrir o Brasil. A cozinha brasileira, que é maravilhosa, agradece.

CONTINENTE Então o brasileiro já tem outro entendimento do que é o luxo à mesa?
SILVIO PASARELLI Sim, e não só no ingrediente. Ele já não se importa se a louça do restaurante é de boa procedência. Esse novo modelo de alta gastronomia desenvolvida pelos chefes, em que até uma lata de sardinha pode ser uma louça, contribui para isso. A experiência do ineditismo, do inusitado. Talvez, chique seja ser surpreendido. A experiência gastronômica em tudo o que a cerca está em alta. Há quem faça jantares em que os clientes são vendados. A mesa passou a ser um espaço valorizado. Luxo para o brasileiro é quando a sua refeição repara as perdas da vida cotidiana. 

EDUARDO SENA, jornalista, pesquisador gastronômico e analista de comunicação empresarial.

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