Ensaio

Tecnologias, mediações, colaborações e performances

TEXTO Filipe Calegario

01 de Dezembro de 2020

Ilustração Marcos de Lima

[conteúdo na íntegra | ed. 240 | dezembro de 2020]

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Era o 63º dia de isolamento. Entro na sala e não entendo muito bem onde estou. Paredes beges, luz chapada, sem nuances, sem cores. O piso, daqueles que imitam madeira. Na minha frente, vejo duas portas. Movimento o olhar tentando absorver algum ponto que tenha passado despercebido. Ando para frente e passo pela porta da esquerda. Nada muda. Viro à direita, atravesso a sala e saio pela outra porta. Me sinto em um labirinto.

Entre portas e paredes, encontro um letreiro de boas-vindas. Vou em sua direção e passo por uma porta transparente que aparenta ser de vidro. Logo estou em um grande salão com vários pôsteres pendurados. Me desloco a um deles e, de repente, à direita, escuto um burburinho. Não estou sozinho! Sigo o som. De longe, vejo alguns sólidos geométricos andando pelo corredor.

À medida que me aproximo, as vozes ficam mais intensas e as imagens, mais claras. São cubos que se aglomeram em rodas de conversa. Na parte superior, uma forma maior representando a cabeça e, na parte inferior, um paralelepípedo menor como o corpo. Na cabeça, a imagem da webcam de quem falava. No final das contas, eram pessoas conectadas a um ambiente virtual chamado Yorb, participando do vernissage de uma exposição online.


Yorb 2020 é um ambiente tridimensional com detalhes baseados nos primeiros jogos em 3D, dos anos 1990. Imagem: Reprodução

Depois de algum tempo de distanciamento, me senti eufórico de estar naquele lugar. Diferentemente das salas virtuais de videoconferência, várias pessoas podiam falar ao mesmo tempo sem atrapalhar umas às outras. Era só se afastar um pouco da fonte sonora, que o som diminuía. Agrupamentos se formavam espontaneamente e sem roteiro definido. Ao contrário das pequenas janelas estáticas das salas de reunião do Zoom ou do Google Meet, eu podia me mover pelo espaço, explorar os pôsteres, entrar e sair das conversas. Dado o contexto da quarentena, me senti intensamente tocado pela experiência. Estava, então, em um lugar com várias pessoas.

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Essa pandemia veio balançar as estruturas de muitos setores. Caminhos foram fechados e outros precisam ser explorados para serem abertos. É nesses momentos de crise que várias narrativas se adaptam e se rearranjam. O distanciamento social fez nossa comunicação se afunilar a fones, microfones, câmeras, telas, teclados e mouses. A tecnologia digital, em muitas situações, tornou-se o único meio de troca entre as pessoas.

Dos muitos impactos nos contextos artísticos, o que mais me causou reflexão foi como o artista se conecta com o seu público, se os locais de contato, de transferência, de sinergia seguem fechados? O que existe de alternativa ao palco da música, do teatro, da performance e às galerias? Como explorar novos caminhos ao paradigma palco-plateia e fazer com que o público se sinta parte ativa do processo artístico?

Talvez nada substituirá o calor, os aplausos, os risos, a troca humana completa da presença física. Mas vejo que o mais interessante nessas situações não é buscar por substituições e, sim, explorar as possibilidades que surgem de um espaço de restrições e do uso de ferramentas e plataformas alternativas. Das limitações podem surgir oportunidades de refletir sobre os velhos hábitos e transformar as visões estabelecidas.

Quero refletir sobre caminhos alternativos e experimentais para o uso de tecnologias digitais em performances artísticas e colaborações criativas. Momentos de privações podem evidenciar oportunidades para o surgimento de formas de criação e expressão. Na busca por alternativas à conexão com o público, durante a pandemia, vários artistas se viram na necessidade de encontrar novos formatos de performances e maneiras de colaborar.

Como uma resposta imediata, cantores e bandas optaram pelas lives, adotando o modelo de patrocínio e doação para produzirem seus shows e fazerem a transmissão ao vivo por canais como Youtube. Apesar de importantes para manter a relação com o público, aos poucos o formato foi se exaurindo e perdendo o engajamento.

Em momentos incertos como esses, é essencial tentar, experimentar e não estancar. Acredito que foi com esse sentimento que muitos artistas encararam as lives. Porém, o formato do show não mudou, foi apenas transportado para esse modelo. E, pela característica do meio, a participação do público é efêmera, já que o único canal de interação entre os participantes é um chat. Não existe a noção de presença dos integrantes da plateia, apenas o apresentador aparece e é escutado. O público não se vê público e o artista não sente o retorno das pessoas. Torna-se, assim, uma via de mão única.

Uma opção para fazer shows mais intimistas, permitindo uma interação um pouco mais próxima com o público, é usar salas de videoconferência como Zoom e Google Meet. Nesses ambientes, se mais de uma pessoa fala por vez, a comunicação fica um caos. É aquela frase que faz parte de toda call: “Desliguem seus microfones quando não estiverem falando”. A metáfora de interação é de sala de reunião e, é claro, nesse contexto, pode até ser produtivo. Porém, isso corta possibilidades de conversas espontâneas e paralelas. Para shows, espetáculos, exposições e festas online, esse formato inibe a troca de ideias sem ter um roteiro definido com pessoas que você encontra no ambiente.

Como alternativa ao modelo das salas online de reunião, existem ferramentas que permitem balancear o som pela proximidade e, assim, a formação de grupos de conversa distintos no mesmo ambiente.

A primeira opção que testei foi a Online Town (agora Gather Town). Uma solução extremamente simples, em que a pessoa é representada por um pequeno personagem pixelado que pode andar em um ambiente 2D. Quanto mais perto se está de outro personagem, mais alto é o seu volume e mais nítida é a imagem da câmera da pessoa. À medida que o personagem se distancia, o som diminui e a câmera perde a opacidade, até desaparecer.

No Gather Town, a pessoa é representada por personagem pixelado que se move em ambiente 2D. Imagem: Reprodução

Tais características da plataforma já permitem que todo mundo esteja no mesmo ambiente e possa se agrupar por proximidade, dado o interesse em comum de uma conversa específica. O ponto negativo do Online Town é que a experiência é um tanto esquizofrênica. O meu personagem está no ambiente, mas a minha câmera aparece embaixo da tela. Do ponto de vista de interface gráfica, há uma dissociação entre o personagem móvel e a câmera posicionada de forma estática distante do personagem.

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Conheci o Yorb por Daniel Shiffman, em seu canal do Youtube, The Coding Train. Daniel é professor do ITP-NYU, Programa de Pós-graduação em Telecomunicação Interativa da Universidade de Nova York.

Geralmente, no final do semestre, é organizada uma exposição com a demonstração dos projetos dos alunos do ITP. Por causa da Covid-19, os organizadores resolveram fazer um evento online e, como plataforma, os residentes do programa de pós-graduação desenvolveram o Yorb 2020. O sistema foi inspirado em um programa de televisão interativo produzido em Nova York entre 1992 e 1995, no qual os telespectadores telefonavam para uma central e alteravam alguns elementos do estúdio que transmitia as imagens ao vivo.

O Yorb 2020 é um ambiente tridimensional muito enxuto e simples, com detalhes baseados na estética dos primeiros jogos 3D lançados para computador na década de 1990. É acessado por um link e funciona diretamente em um navegador.

Existem diversas plataformas baseadas em espaços 3D, nas quais a pessoa controla um personagem, podendo explorar e interagir com o ambiente e com outros personagens. Alguns exemplos são: o Second Life, que existe desde 2003; e o ambiente open source, criado pela fundação Mozilla, chamado Mozilla Hubs. Além desses, alguns jogos como o popular Minecraft servem de plataforma para interações entre as pessoas. No contexto de performances artísticas, um experimento que me chamou atenção foi o show Astronomical, que o rapper Travis Scott fez no mundo virtual do Fortnite, jogo de batalha multijogador.

Porém, existe uma diferença sutil, mas poderosa, entre esses sistemas e o Yorb. Quando os personagens de tais plataformas não são, intencionalmente, uma figura completamente diferente da pessoa, podem até ser representações semelhantes à sua aparência real, mas são aproximações. É justamente o fato de ser um personagem, um avatar (uma representação virtual). Não é a pessoa, não tem a sua imagem, a sua identidade. Porém, quando o sistema coloca a câmera com uma imagem real da pessoa como a cabeça de um personagem no ambiente virtual, a situação se transforma. O personagem ganha identidade baseada na realidade. Existe, então, uma maior proximidade da sensação de presença para as outras pessoas.

O Yorb propicia um espaço de encontros, é uma plataforma que amplia as possibilidades de interação online entre as pessoas. Vejo que, nesse caminho, o seu uso em performances artísticas depende da experimentação e, consequentemente, do entendimento dos potenciais e dos limites da tecnologia.


O rapper Travis Scott realizou o show Astronomical no mundo virtual do jogo de
batalha Fortnite. Imagem: Reprodução


Foi nesse contexto que o grupo Estesia, formado pelo cantor Carlos Filho, o iluminador cênico Cleison Ramos e os produtores musicais Miguel Mendes e TomBC, mergulhou em um experimento interativo com o seu público dentro do Yorb.

O Estesia já trabalhava experiências híbridas de som e luz amparadas por tecnologias digitais em palcos físicos e, com a pandemia, se viu distante da energia cativante das performances. Dessa forma, enxergaram no Yorb uma possibilidade de trazer o público para perto e emular, nem que fosse na mínima parte, a sensação de uma apresentação ao vivo. Seria uma tentativa de provocar uma comunhão entre artista e público no mesmo espaço. E uma marca registrada de suas apresentações sempre foi, justamente, trazer o questionamento sobre as barreiras invisíveis entre palco e plateia no contexto musical. Por exemplo, antes da pandemia, durante alguns de seus espetáculos, o público podia disparar sons e participar da construção musical da performance através dos seus celulares.

No Yorb, o experimento virtual começou com uma exploração do ambiente pelos convidados. As pessoas que entravam eram recepcionadas pela equipe de produção, que indicava os locais de apresentação. Várias rodas de conversas se formaram e, espontaneamente, cada integrante do Estesia fez uma performance individual com canções tocadas no violão, músicas no sintetizador, poemas com iluminação e beats dançantes. A integração foi leve e intimista, o que fez com que algumas pessoas também se sentissem à vontade para participar da performance, cantando suas composições próprias ou interpretando covers.

Um dos ápices da interação foi durante a execução das músicas com os fortes beats inspirados no funk e brega funk. No Yorb, quando se aperta a barra de espaço, o avatar pula. Só bastou um grito de “tira o pé do chão” para todo mundo se sentir pulando junto naquele ambiente virtual. As muitas formas geométricas com as cabeças de webcam se moviam para cima e para baixo. Um gesto tão simples, mas uma verdadeira catarse. Um sentimento de festa, de troca, de energia compartilhada. Cada pessoa em sua casa, mas unida por aquela experiência imersiva.

Plataformas como Yorb são interessantes por considerar a presença online, mas vejo que elas apenas cobrem parte do problema. As pessoas têm, de fato, uma experiência enriquecida de contato com as outras no mesmo ambiente. Porém, se duas pessoas tentam tocar ao mesmo tempo, por conta do atraso da rede, as partes ficam dessincronizadas, atrapalham a interação musical e a colaboração se torna complicada.

Durante o experimento, o Estesia tentou algumas alternativas musicais para permitir uma certa sincronia entre os integrantes. Um exemplo foi o uso de sons contínuos com longas durações, evitando a marcação destacada de ataques percussivos. Dessa forma, os atrasos não ficavam tão evidentes. É um recurso interessante, mas restrito a determinados contextos estéticos.

Existem ferramentas específicas que tentam minimizar os atrasos fazendo uma conexão ponta a ponta entre dois colaboradores. Uma delas é a Jacktrip, desenvolvida pelo Centro de Pesquisa em Computação Aplicada à Música e Acústica (CCRMA) da Universidade de Stanford. Fluxos de áudio em alta qualidade de um computador são transmitidos pela internet diretamente a outro computador. Como não existem servidores intermediários, a latência é reduzida, permitindo interações um pouco mais responsivas entre colaboradores remotos.

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Um exemplo de projeto que durante a pandemia tem explorado esteticamente as características impostas pela colaboração remota é a performance telemática CON- - -TACT, parte do festival In Kepler’s Gardens do Ars Electronica. Por dois meses, o performer e inventor João Tragtenberg, que mora em Florianópolis, colaborou com o músico Mitoş Micleuşanu e a performer Saint Machine, que estavam em Bucareste, na Romênia, na concepção e produção da obra como parte da residência artística CINETic UNATC.


Performance telemática CON---TACT explora esteticamente os limites da colaboração remota. Imagem: Reprodução

Mesmo separados por uma distância de 11.000 quilômetros, os artistas exploraram o contato, a interferência e a improvisação por uma conexão entre gestos, sons, imagens e luzes. Em seu corpo, João usou o Giromin, um instrumento vestível que traduz a movimentação do seu tronco e dos seus membros em mensagens digitais, capazes de controlar tanto os elementos sonoros e luminosos locais, em seu estúdio, quanto os remotos, na Romênia. Foi muito interessante perceber, durante a performance, as luzes aumentando de intensidade com os gestos de João e, com um atraso, ver as luzes se acendendo também em Bucareste. Uma ligação semântica, uma mediação remota.

Apesar de acharmos corriqueira e simples a ação de abrir um navegador, digitar um endereço e carregar um site, existe uma complexa teia de ligações físicas que permite essa transparente conexão virtual. Cabos submarinos cruzam os oceanos, ligando continentes, transmitindo pulsos luminosos e elétricos que são convertidos em números e processados por diversos computadores espalhados pelo mundo. João, Mitoş e Saint Machine quiseram evidenciar o espaço da internet considerando os longos atrasos e as eventuais falhas da rede como elementos centrais da improvisação.

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Vejo na sobreposição experimental entre expressões artísticas e tecnologias digitais um terreno fértil para exploração. Não apenas as tecnologias direcionando e ampliando os caminhos artísticos, mas também a arte demandando avanços tecnológicos ainda não existentes.

Porém, apesar de fértil, é um terreno árduo de se caminhar. Existem certos níveis de detalhes técnicos que impedem a fácil apropriação artística das tecnologias digitais. Plataformas, bibliotecas, extensões, plug-ins, linguagens de programação, sensores, atuadores, microcontroladores são palavras que geralmente distanciam em vez de aproximar alguns artistas.

No contexto de performances cênicas de dança e teatro, o estudo de Ricardo Scholz, em seu  na UFPE, mostra que existem barreiras técnicas que afastam alguns artistas de experimentações com tecnologias digitais. Já considerando o contexto musical, no projeto Probatio, discuto e apresento caminhos para diminuir o tempo e o esforço de músicos, artistas e designers na experimentação com sensores digitais para criação de novas interfaces musicais. Acredito que a concepção e a construção de ferramentas voltadas para criatividade e experimentação devam ter uma preocupação didática de abrir caminhos de exploração, e não afugentar.

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Fico muito encantado com a interseção entre diferentes áreas, entre diferentes formas de ver o mundo. Acredito que é o lugar onde aparecem as ideias mais potentes e criativas. Não é um lugar fácil, principalmente pela distância imposta pela divisão do conhecimento que herdamos do mecanicismo cartesiano e da especialização do pensamento industrial. Essas mentalidades acabaram influenciando a forma como estudamos, como ensinamos, como criamos e como nos expressamos. O protecionismo e a exaltação desses muros dificultam os cruzamentos dos quais podem florescer novas e valiosas ideias.

Evidentemente, a divisão e a especialização não são de todo ruins, já que, sem elas, não conseguiríamos processar a complexidade do conhecimento que foi construído nos últimos séculos. Porém, do ponto de vista criativo, experimental e exploratório, a construção de barreiras entre as áreas limita a combinação de ideias, aprisiona nossas visões e restringe a proposição de novas perspectivas.

Acredito que as conexões e combinações aparecem naturalmente em ambientes permissivos à interação de pessoas de diferentes áreas, vivências e experiências. Destaco aqui algumas iniciativas das quais faço parte e que têm como objetivo serem locais de interseção, colisão de ideias e fricção criativa.

Juntamente com Geber Ramalho e Giordano Cabral, coordeno o Mustic, grupo de pesquisa, experimentação e inovação em arte, tecnologia e criatividade do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco. Artistas, músicos, designers, cientistas, engenheiros, alunos da graduação, mestrado e doutorado concebem e desenvolvem projetos na interseção de computação, música, dança, artes cênicas, artes visuais, performances artísticas, arquitetura e educação.

Além disso, participo de OCCA, Olinda Creative Community Action, uma comunidade que floresce sob a sombra de uma cajazeira em uma bela casa no Sítio Histórico de Olinda e une pessoas de diferentes perfis e interesses na construção de projetos interdisciplinares em economia criativa e inovação.

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É preciso diminuir as barreiras entre as áreas técnicas e artísticas para permitir o contato, o diálogo, a troca e o surgimento de novas perspectivas e ideias. Acredito na emergência de linguagens, gêneros e formas de expressão quando os artistas se apropriam intimamente das tecnologias digitais e se expressam com elas.

Não se trata de um discurso rasteiro da inevitabilidade tecnológica, que assume que todos os problemas da nossa existência deverão ser resolvidos com as tecnologias de ponta, e aqueles que não o fizerem sucumbirão às traças do velho e do antiquado. Muito menos, de que os computadores irão tomar os empregos de todos os artistas que existem no planeta Terra. É uma abordagem mais leve de entender que existem potenciais ainda inexplorados no uso de técnicas digitais nas artes e que, assim como a fotografia e o cinema, podem abrir possibilidades expressivas que só florescem com a exploração e a experimentação.

FILIPE CALEGARIO, professor adjunto do Centro de Informática (CIn) da Universidade Federal de Pernambuco. Tem foco de pesquisa em criatividade computacional, ferramentas para criatividade e novas interfaces para expressão musical. Coordena o Mustic, grupo de arte, tecnologia e criatividade do CIn. É fundador do Batebit Artesania Digital, grupo que experimenta novos instrumentos musicais digitais. É membro de OCCA, comunidade para ações criativas em Olinda.

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