“A tecnologia pode promover direitos ou a redução deles”
Advogado, professor, pesquisador e apresentador de TV que atua na relação entre os novos meios, seus usos e leis analisa aspectos sociais e políticos que envolvem direito, educação e tecnologia
TEXTO Débora Nascimento
02 de Outubro de 2020
Ronaldo Lemos idealizou o Marco Civil da Internet e vem colaborando com a criação de diversas leis
Foto Jorge Bispo/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 238 | setembro de 2020]
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“Até agora, ou você tem eleições ou você tem resistência. Temos que repensar o significado da democracia. Isso significa engajar as pessoas naquilo que sabem, em suas experiências, seus interesses e naquilo com que se importam, em vez de confiar em um voto que selecionará um indivíduo para lhe representar em todos os tópicos. Ao invés disso, criar caminhos para que você mesmo possa agregar valor à sociedade”. Essa observação foi feita por Stefaan Verhulst, diretor de pesquisa e desenvolvimento do Laboratório de Governança da Universidade de Nova York (GovLab), em 2017, ao advogado Ronaldo Lemos, apresentador do programa televisivo Expresso Futuro. Ao empregar um “você” genérico na frase, Verhulst, talvez sem perceber, usou uma metalinguagem, pois, na realidade, seu interlocutor encaixava-se perfeitamente nesse exemplo. Já há algum tempo, Ronaldo Lemos vem usando sua expertise para criar caminhos que agregam valores à nossa sociedade e contribui para a construção de uma nova face para a democracia.
Dez anos antes dessa entrevista no Expresso Futuro, Ronaldo Lemos escrevia um longo artigo para a Folha de S.Paulo intitulado Internet brasileira precisa de marco regulatório civil, em que criticava diversos pontos de um projeto de lei de crimes digitais então em tramitação no Congresso Nacional, apelidado de “AI-5 Digital”, e concluía: “O Brasil está seguindo a via inversa: está criando, primeiro, punições criminais, sem antes regulamentar técnica e civilmente a Internet”. Desse artigo, surgiu a ideia do Marco Civil da Internet, que chegou ao Congresso Nacional em 2011, e – após o escândalo da espionagem da National Security Agency (NSA) sobre o governo federal brasileiro, revelada por Edward Snowden – foi sancionado pelo poder legislativo e por Dilma Rousseff em 2014, com princípios, garantias, direitos e deveres para os usuários da rede, como também diretrizes para a atuação do Estado.
Reconhecido mundialmente por sua inovação na forma e no conteúdo, o MCI influenciou a criação de legislações semelhantes na Itália e França e recebeu elogios até do cientista da computação britânico Tim Berners-Lee, criador da World Wide Web (www). O advogado brasileiro foi um dos principais autores dessa lei, que teve elaboração colaborativa através da própria internet, entre 2009 e 2010, recebendo sugestões de qualquer pessoa. Porém, o Marco Civil da Internet é apenas um dos projetos que incorporam o extenso currículo de Ronaldo Lemos, pioneiro no país no que se refere ao Direito aplicado à tecnologia, mídia e propriedade intelectual.
Nascido em 1976, em Araguari, no Triângulo Mineiro, Ronaldo mudou-se para Uberlândia, aos 16 anos. Pensava em cursar Cinema, mas, em 1994, acabou optando por estudar Direito na Universidade de São Paulo. Em meados dos anos 1990, despertou para as possibilidades jurídicas em torno da internet, então iniciante no Brasil ou, como se diz nas redes sociais, “quando era tudo mato”. Então, em 2001, decidiu fazer mestrado em Harvard. Na época, a conceituada universidade norte-americana era a única instituição de ensino com centro de pesquisa voltado para a convergência das áreas de Informática e Direito. Na volta ao Brasil, organizou, em parceria com Harvard, um seminário sobre o assunto e fundou e coordenou, até 2013, o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro.
Depois de ter sido pesquisador visitante da Universidade de Princeton (EUA) e da Universidade de Oxford (Inglaterra), assumiu, em 2013, o cargo de professor de Direito da Informática da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, em 2017, de professor visitante da Universidade Columbia (EUA). Fundou também o Instituto de Tecnologia & Sociedade (ITS), instituição que, dentre outras atividades, contribuiu para a elaboração do MCI, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e para o lançamento do aplicativo Mudamos, plataforma de participação democrática, com o objetivo de recolher assinaturas para projetos de lei de iniciativa popular.
O advogado também reforçou importantes iniciativas, como o Creative Commons, o Conselho Nacional de Combate à Pirataria, o Conselho de Comunicação Social do Senado Federal, que tem por atribuição elaborar estudos, pareceres e recomendações a respeito de temas voltados à comunicação, mídia e liberdade de expressão. Por todo esse histórico, foi nomeado, em 2015, um dos Young Global Leaders (Jovens Líderes Globais), do Fórum Econômico Mundial.
Nesta entrevista à Continente, realizada por e-mail, Ronaldo Lemos – que, neste ano, tornou-se um dos 20 membros do primeiro Conselho de Supervisão do Facebook (Facebook Oversight Board) – fala sobre as fake news, deep web, o imbróglio do 5G, a relação do Brasil com a China, país que visitou no ano passado para abordar, em seu programa de TV, as melhores inovações tecnológicas. Nesta conversa, avalia também o impacto da tecnologia nos processos políticos: “A tecnologia dita padrões, regras e modos de vida com impacto enorme na vida das pessoas. Nesse sentido, pode ser usada tanto para promover direitos ou a redução deles”.
CONTINENTE Você, que foi um dos autores do Marco Civil da Internet, acredita que existe um risco real de retrocesso nos avanços que já tivemos nessa área?
RONALDO LEMOS Com certeza, há riscos permanentes. Veja o exemplo do Marco Civil. Quando ele foi aprovado em 2014, cheguei a achar por alguns dias que a missão estava cumprida, que o Brasil tinha uma lei forte que garantiria a liberdade de expressão, a neutralidade da rede, a privacidade e assim por diante. Ledo engano. A missão nunca termina. Há risco de retrocesso o tempo todo.
CONTINENTE No que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais avança em comparação ao Marco Civil da Internet?
RONALDO LEMOS A LGPD complementa o Marco Civil e coloca o Brasil no rol dos mais de 100 países que adotam o regime europeu de proteção de dados. É um avanço.
CONTINENTE Por que o Governo Federal tentou postergar a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) para maio de 2021, através de medida provisória?
RONALDO LEMOS O Governo Federal e o Congresso Nacional hesitaram em fazer a LGPD entrar em vigor durante a pandemia. Essa hesitação foi muito ruim e frustrou várias expectativas. As empresas, por exemplo, esperaram que a LGDP inicialmente entrasse em vigor na data correta. Depois de vários sinais, disseram que seria só em 2021. E, de repente, voltou para este ano. Essa falta de previsibilidade traz custos enormes, para além daqueles que a lei já traz em si.
CONTINENTE Há algumas leis que tramitam hoje no Congresso que ameaçam a nossa liberdade na internet?
RONALDO LEMOS Há centenas, o tempo todo. Entre 1995 e 2014, o Brasil praticamente não legislou sobre a internet. De 2014 para cá, há uma inflação de projetos de lei para tratar da internet, muitos deles estapafúrdios. Vários congressistas perceberam que legislar pela internet pode trazer atenção. E há também casos bem-intencionados e outros mal-intencionados.
CONTINENTE Qual é a sua avaliação sobre o Projeto de Lei das Fake News
RONALDO LEMOS Importante que aconteça, mas equivocado na maior parte do texto. Precisamos de uma lei minimalista, que siga o dinheiro, ou seja, puna quem financia de forma oculta e através da prática de ilícitas campanhas informacionais.
CONTINENTE A campanha de Obama foi uma pioneira no uso bem-sucedido das redes sociais para atrair os eleitores. Agora, 12 anos depois, a utilização desse recurso se tornou mais agressiva, com o uso de novas tecnologias, como as deep fakes, por exemplo. Como combater essa manipulação juridicamente?
RONALDO LEMOS O Brasil está discutindo o projeto de lei para combater as fake news, o que acho positivo. Há pontos ruins no projeto, mas certamente é uma área em que precisa avançar. Minha visão é de que é preciso combater quem financia as fake news, ou seja, fazer um follow the money, seguir o dinheiro e de onde ele vem.
CONTINENTE A tecnologia é mais aliada da democracia ou do autoritarismo
RONALDO LEMOS Nem a um nem a outro. No entanto, isso não significa que a tecnologia seja neutra, ao contrário. A tecnologia no mundo de hoje é uma forma de governança. Ela dita padrões, regras e modos de vida com impacto enorme na vida das pessoas. Nesse sentido, pode ser usada tanto para promover a democracia, quanto o autoritarismo.
CONTINENTE A Apple removeu aplicativos de sua App Store na China e um aplicativo que ajudou manifestantes de Hong Kong a rastrear movimentos policiais. Ativistas de direitos humanos pediram à empresa que cortasse relações com fornecedores que utilizariam trabalho forçado dos uigures em fábricas chinesas. Na sua opinião, como essas multinacionais deveriam se comportar em países com situações políticas ambíguas?
RONALDO LEMOS Há cada vez mais um movimento que demanda das empresas de tecnologia responsabilidade com relação às suas decisões. Esse movimento está se tornando uma demanda dos próprios usuários. Assim como há cinco anos o tema da privacidade era pouco falado, mas hoje está disseminado como demanda dos usuários, várias demandas novas estão surgindo.
CONTINENTE A campanha Stop Hate for Profit (Pare de lucrar com o ódio), lançada em julho por grupos de defesa dos direitos civis dos Estados Unidos, pediu aos anunciantes que pressionassem o Facebook a tomar medidas mais rígidas contra o conteúdo de ódio e de racismo em suas plataformas, retirando publicidade no mês de julho. Houve adesão de várias empresas. Na sua avaliação, iniciativas como essas parecem surtir mais efeito que as leis?
RONALDO LEMOS Não. A Lei será sempre mais eficaz, mas precisa ser uma lei boa e bem-redigida.
Campanha Stop Hate for Profit pressionou o Facebook
a tomar medidas mais duras contra o conteúdo de ódio e de racismo.
Imagem: Divulgação
CONTINENTE Diante de tanto preconceito, discurso de ódio, intolerância, violência, evidencia-se um descompasso entre o avanço da tecnologia e o da humanidade. O que poderia contribuir para alinhar ambas?
RONALDO LEMOS Esse descompasso acontece principalmente porque insistimos em crer que há apenas um tipo de “tecnologia”, sendo que na realidade há vários. Se percebemos esse descompasso entre tecnologia e humanidade, é porque estamos usando a tecnologia errada. Acredito muito em autonomia tecnológica. Na possibilidade de que cada grupo ou comunidade pode desenvolver suas próprias formas de tecnologia.
CONTINENTE O WhatsApp é uma terra sem lei, um ponto cego na internet. Como regulamentar essa rede social, para que não seja um veículo de propagação de fake news, discurso de ódio e ameaças às instituições democráticas?
RONALDO LEMOS O WhatsApp é também um refúgio para uma internet cada vez mais baseada em vigilância, onde a privacidade é a exceção. O WhatsApp adotou criptografia de ponta a ponta e é uma das poucas aplicações na internet que garantem privacidade nas comunicações. É bom que seja assim. Isso não elide ter de lidar com os problemas que surgem a partir daí, mas não acho boa ideia interferir na criptografia que protege a privacidade.
CONTINENTE Em 2018, o Facebook anunciou que a consultoria Cambridge Analytica colheu irregularmente dados de 80 milhões de pessoas, 70 milhões delas americanas. Investigações sobre a fraude seguem nos Estados Unidos e na Europa. Você acredita que essa investigação vai levar a alguma mudança na atuação desse tipo de empresa ou a um possível julgamento?
RONALDO LEMOS Já levou a várias mudanças. Por exemplo, a Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil, que é a primeira legislação abrangente do país para proteger a privacidade, tem relação direta com o escândalo Cambridge Analytica. Da mesma forma, o Marco Civil foi também impulsionado pelas revelações do caso Snowden. Acho fundamental os países reagirem institucionalmente aos desafios da tecnologia.
CONTINENTE Depois do escândalo, a Cambridge Analytica entrou em falência. Mas isso não significou necessariamente o fim do disparo em massa de conteúdo de direita ou da extrema-direita. As redes sociais podem, mais uma vez, ser o canal para uma nova vitória de Donald Trump?
RONALDO LEMOS As redes sociais são hoje um canal central para qualquer campanha política. Tamanha é sua importância na vida contemporânea, que sua centralidade terá relevância para qualquer processo político.
CONTINENTE Em dezembro de 2014, houve o roubo e a divulgação de informações, incluindo filmes e dados pessoais de funcionários dos estúdios da Sony. Em julho de 2020, hackers conseguiram invadir algumas das contas mais influentes do Twitter e arrecadaram milhões em criptomoeda. Qual é a real proteção digital e jurídica que nós, usuários, temos para nos proteger de um ataque como esse?
RONALDO LEMOS Muito pequena. A invasão do Twitter escancarou o problema da identidade na internet. Muita gente usa o Twitter como referência para saber quem é a pessoa do outro lado da rede. Se não é possível confiar nessa referência, como estabelecer identidade na rede? Esse problema é chave.
CONTINENTE Neste ano, aproximadamente 1,2 milhão de eleitores puderam votar no conselho de supervisores do condado de King, no estado de Washington, por meio de seus smartphones. Diante da situação de pandemia, o voto digital não seria a solução para países como o Brasil? Há, no país, viabilidade técnica e jurídica para isso?
RONALDO LEMOS Para haver voto digital é primeiro preciso ter identidade digital. Venho trabalhando há anos para isso. Mas a situação no Brasil ainda é distante dessa realidade. As identidades no Brasil são caóticas, com CPF, RG, Carteira de Trabalho, Título de Eleitor etc. Isso tudo precisa mudar para termos o voto eletrônico e também melhores serviços públicos digitais.
CONTINENTE A tecnologia mostrou sua importância fundamental durante a pandemia. Ela será essencial para ajudar a monitorar a saúde coletiva no futuro?
RONALDO LEMOS Sem dúvidas. Mas me preocupo também com depositarmos fichas demais na tecnologia. O que combate pandemias e doenças não é a tecnologia, mas um sistema de saúde pública robusto. A tecnologia pode ajudar, mas não é central.
CONTINENTE Você acredita que o home office, os atendimentos e ensino remotos, os acordos judiciais online e o e-commerce serão modalidades que se estabelecerão no pós-pandemia ou o conservadorismo das empresas, instituições e dos brasileiros será mais forte?
RONALDO LEMOS Home office é hoje indicador de desigualdade. No Brasil, só pouco mais de 8 milhões de pessoas, ou 10% da força de trabalho ativa, podem fazer home office. Isso é muito pouco. A realidade dos brasileiros é muito distante do home office. Seria muito bom que houvesse infraestrutura para todos, que permitisse essa modalidade de trabalho. Mas no Brasil o problema é mais profundo.
CONTINENTE O estudo Connected Smart Cities deste ano elegeu São Paulo como a cidade mais inteligente do país. A edição de 2020 do relatório colocou a capital paulista em primeiro lugar em categorias como tecnologia, inovação, mobilidade e acessibilidade. Você, que visitou várias cidades chinesas, poderia explicar qual a importância de uma cidade ser inteligente?
RONALDO LEMOS É importante uma cidade ser inteligente para responder aos anseios dos seus cidadãos. A cidade inteligente é a cidade responsiva, que detecta e responde em termos de serviços e administração pública às demandas das pessoas que vivem nela. Nesse sentido, gosto mais da ideia de cidadãos inteligentes do que só de cidades inteligentes.
Ronaldo Lemos na China, durante as gravações para o programa Expresso Futuro. Foto: Bruno Prada/Divulgação
CONTINENTE Como você avalia a presença do Brasil no que se refere à tecnologia aplicada em diversas áreas, como mobilidade, comércio, educação, medicina? Como estamos em termos de inovação?
RONALDO LEMOS Muito mal. O Brasil é um grande consumidor de tecnologias, mas é um péssimo produtor e criador de inovação e tecnologia. Na minha visão, a missão que o país tem para o desenvolvimento pode ser resumida em uma frase: precisamos aprender a transformar conhecimento em produtos, serviços e valor econômico. Hoje, vivemos mais da natureza do que de ideias.
CONTINENTE A partir do dia 16 de novembro, os brasileiros com contas em bancos poderão fazer transferências e pagamentos através do Pix. Criado pelo Banco Central, o novo sistema vai possibilitar o envio e recebimento de dinheiro instantaneamente. A chegada do Pix vai nos aproximar da dinâmica das movimentações financeiras e comerciais que acontecem na China?
RONALDO LEMOS Sim, o Pix é revolucionário. Ele pode, na minha opinião, revolucionar não só os meios de pagamento, mas também as identidades digitais no Brasil, a relação entre cidadãos e o poder público e também as assinaturas eletrônicas. O Banco Central acertou no que viu, mas acertou também em muitas coisas que não viu. O Pix pode entrar para a lista de exemplos internacionais de inovação bem-feita liderada pelo Estado.
CONTINENTE Quais as consequências do alinhamento do Brasil aos Estados Unidos em detrimento da relação com a China?
RONALDO LEMOS O Brasil precisa agir com prudência nas relações internacionais e não se alinhar automaticamente. Em um mundo que está se tornando novamente bipolar, o Brasil tem de manter laços de cooperação com todas as potências.
CONTINENTE Quais parcerias, em termos de tecnologia, você acredita que o Brasil poderia fazer com o país asiático?
RONALDO LEMOS O Brasil hoje faz parte do seleto grupo de países que possui superávit comercial com a China. A maioria dos países tem déficit. Poderia aproveitar essa posição para promover transferência tecnológica.
CONTINENTE A China tem um poderoso e autossuficiente mercado interno. O Tik Tok foi uma das poucas empresas que ultrapassaram os limites do país. Se a China decidir expandir seus horizontes em termos de informática, quais seriam os efeitos em outros países?
RONALDO LEMOS Acho improvável a trajetória do Tik Tok ser repetida com frequência. A competição interna na China é tão grande, que se aventurar no mercado internacional é visto como uma distração. Além disso, o país está cada vez mais apostando em atender ao seu mercado interno, buscando autossuficiência.
CONTINENTE Qual é a sua opinião sobre a internet censurada na China
RONALDO LEMOS Muito ruim, mas minha experiência no país é de que, apesar da censura, há uma vitalidade enorme no debate político chinês, inclusive online.
CONTINENTE Você, que fez a série de programas sobre as inovações tecnológicas na China para o canal Futura, poderia nos dizer quais lições o Brasil poderia aprender com o país asiático?
RONALDO LEMOS A China se desenvolveu porque apostou fortemente em educação e infraestrutura de qualidade para todos, além de planejamento. Hoje, os 10% piores alunos da China correspondem aos 10% melhores alunos do Brasil, de acordo com os resultados do exame PISA. O mesmo vale para o Vietnã, onde também os 10% piores são iguais aos 10% melhores do Brasil. O que isso diz sobre o futuro do nosso país é muito ruim.
CONTINENTE No dia 3 de setembro, o presidente da República afirmou que cabe exclusivamente a ele tomar uma decisão sobre o 5G no Brasil e que não haverá “ninguém dando palpite”. Ele se referiu às políticas de segurança dos fornecedores de rede, à possibilidade de barrar equipamentos da Huawei e de outras fabricantes chinesas. O 5G virou alvo de uma disputa política. Há o risco de o país ficar de fora dessa tecnologia? E quais seriam as consequências disso?
RONALDO LEMOS O Brasil já ficou de fora do 5G. Outros países já estão em pleno processo de implementação dessa tecnologia, inclusive na Europa e nos Estados Unidos. Já aqui, estamos atrasados. Só vai colher os benefícios integrais do 5G quem tiver logo a tecnologia. A razão é que só quem tem o 5G instalado conseguirá desenvolver aplicações para o 5G. Se o Brasil demora, como é o caso, quando a tecnologia chegar, irá comprar aplicações de 5G que já estão prontas em outros países, em vez de ter desenvolvido as suas.
CONTINENTE A Lei Geral das Telecomunicações estabelece a Anatel como órgão regulador de telecomunicações. Porém, o presidente da Anatel, Leonardo Euler de Morais, delegou a decisão sobre o uso de tecnologia chinesa para o Gabinete de Segurança Institucional. O argumento é de que o receio de violações cibernéticas extrapola a atuação da agência. Isso procede?
RONALDO LEMOS Cibersegurança é um tema central e deve estar no topo das prioridades de qualquer construção tecnológica de larga escala. O que o Brasil deveria fazer é criar padrões de cibersegurança muito elevados e aplicar esses padrões para toda e qualquer entidade que queira fornecer infraestrutura para o país.
CONTINENTE Assim como acontecia há algumas décadas com relação à energia elétrica, o uso da internet hoje é um indicador de desenvolvimento econômico e social. Nesta pandemia, o ensino remoto nas escolas e universidades públicas ressaltou uma realidade: muitos alunos não possuem computador ou acesso à internet. Na sua avaliação, em que medida a desigualdade tecnológica está ampliando a desigualdade social no país?
RONALDO LEMOS Enormemente. Quem está conectado tem muito mais chances de desenvolvimento pessoal do que quem não está. Além de todas as dívidas que o país tem com sua população mais pobre, está também a dívida da conectividade.
CONTINENTE A educação brasileira vem perdendo há décadas a oportunidade de ensinar aos jovens como ler e entender os gêneros jornalísticos e suas funções. Na sua avaliação, o país está perdendo novamente o bonde da história, agora com relação à presença crítica dos jovens na internet?
RONALDO LEMOS Sim, a melhor forma de prever o futuro é olhar para a educação atual de um país. O estado da educação atual indica o que acontecerá dali a 15 ou 20 anos. O estado atual da educação no Brasil é péssimo, apesar de alguns avanços importantes. Um avanço importante é a criação da base curricular comum, que, no mínimo, permite metrificar o aprendizado no país. Mas ainda estamos longe do ideal.
CONTINENTE Você, que é pioneiro no Brasil na atuação do Direito aplicado em tecnologia, mídia e propriedade intelectual, como avalia a situação dessa área em termos de formação, mercado e quantidade de profissionais?
RONALDO LEMOS Há uma escassez de profissionais nessa área. No nosso Instituto de Tecnologia e Sociedade, o ITS, lançamos há pouco uma pós-graduação em Direito Digital, aberta para profissionais de quaisquer áreas e não só do Direito. Fiquei muito impressionado com a procura. Há uma demanda enorme por capacitação nessa área e pouca oferta.
CONTINENTE Quais são os prós e contras do uso da automação no Direito?
RONALDO LEMOS Vejo muitos prós e alguns contra. Por exemplo, o judiciário brasileiro tem avançado no uso de inteligência artificial e dados abertos. Isso fomenta muito a inovação. No entanto, é preciso criar parâmetros de avaliação permanente dessas iniciativas para evitar vieses, distorções éticas, câmaras de eco e assim por diante.
CONTINENTE Se ainda temos muitos problemas no mundo virtual visível, o invisível, incluindo a deep web, ainda é mais difícil de ser alvo da área jurídica?
RONALDO LEMOS Sim, a deep web traz muitos problemas, mas também refúgio para situações em que não é possível discutir certos temas publicamente.
CONTINENTE O governo federal defende a contratação de serviços privados para o armazenamento de dados de 140 órgãos e entidades. No entanto, funcionários do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e da Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev) criticam a iniciativa. Você concorda que o armazenamento desses dados esteja no setor privado? Há riscos, como apontam os críticos?
RONALDO LEMOS Demorou. Se o governo fizer uma política bem-feita de trabalhar com a iniciativa privada em tecnologia, com padrões bemdefinidos, auditabilidade e decisões estratégicas para fortalecer o ecossistema local, pode ser um grande avanço. O exemplo do Pix pode servir de modelo. O Banco Central fez praticamente tudo certo: inovação aberta, baseada em padrões e tecnologias fundacionais, com governança sofisticada e assim por diante. Esse mesmo modelo pode se aplicar para uma transição que vá muito além do modelo do Serpro e Dataprev. Nesse modelo, há espaço para o Serpro e para o Dataprev, até para se tornarem forças de geração de inovação
CONTINENTE Alegando direito à privacidade, a Câmara Municipal de Portland (EUA) proibiu o uso de reconhecimento facial por entidades públicas ou privadas. Outras cidades, como Boston, San Francisco e Oakland já haviam aprovado leis restritivas em instituições públicas. Segundo estudo realizado pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST), dos Estados Unidos, a tecnologia é deficiente ao ser aplicada em negros e asiáticos. Qual a sua opinião sobre essa ferramenta? Ela pode nos trazer problemas no futuro?
RONALDO LEMOS Depende da forma como é utilizada. O reconhecimento facial pode ser implementado de forma correta ou incorreta. Novamente, as tecnologias não são neutras. A tecnologia no mundo de hoje é uma forma de governança. Ela dita padrões, regras e modos de vida com impacto enorme na vida das pessoas. Nesse sentido, pode ser usada tanto para promover direitos ou a redução deles.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.
Extras:
Episódio do Expresso Futuro, do Canal Futura, sobre "democracia e tecnologia" com Ronaldo Lemos: