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Um homem conectado com sua região

Leia trechos do livro ‘Brasileirismos e conexões com Gilberto Freyre’, do antropólogo Raul Lody, publicado pela Cepe Editora

TEXTO Raul Lody

05 de Maio de 2020

O sociólogo Gilberto Freyre

O sociólogo Gilberto Freyre

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 233 | maio de 2020]

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Sou um Gilbertiano

Estar no Recife sempre foi uma rica experiência, e mais ainda quando visitava Gilberto Freyre no seu gabinete da Presidência do Conselho do então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, onde o encontrava, geralmente, no período da tarde.

O gabinete era totalmente forrado com um carpete roxo, cor preferida de Gilberto, e que de certa maneira combinava com o seu anel de ametista (lilás).

Conhecer Gilberto, certamente, foi iniciar uma profunda imersão no Brasil; principalmente no Nordeste, em Pernambuco e no Recife.

Há em Gilberto uma concepção afetiva com a sua região, o Nordeste; e sempre as conexões entre cultura e ecologia orientaram o criador da tropicologia: o homem situado no trópico. E, assim, em 1937, pela primeira vez em língua portuguesa foi publicada a palavra ecologia, no seu livro Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil.

Germinal é Nordeste como é Casa-grande & senzala, em profundo diálogo que valoriza e, ao mesmo tempo, expõe em profunda crítica o homem e a região. Então, ler Nordeste e Casa-grande &  senzala, e poder comentar com o autor, Gilberto, fortaleceu, ampliou e certamente emocionou, fazendo com que o meu olhar, após cada conversa, fosse reconstruído. Tudo fluía como um depoimento ilustrado na capacidade descritiva, diria iconográfica, de Gilberto.

Fui descobrindo, então, que Gilberto fez, ou melhor, faz como ninguém um cotejamento sociológico e antropológico entre estética e caráter. Creio que nesse verdadeiro processo de sedução há um sentido vigoroso de esteta, de historiador, de cronista; de viajante da sua própria vida, em torno da família, de ancestrais, de engenhos, de casas-grandes, de senzalas, de capelas, de festas de santos, de cozinhas; de receitas de doces.

Como mesmo dizia Gilberto: “Sou de Apipucos e sou do mundo”. E, assim, formalizava e deslocava seus conceitos entre o que é local e o que é universal. Ainda, o seu tempo, que é tríbio — passado, presente e futuro —, fazia com que cada conversa fosse integrada, nova, já vista, e por vir.

Assim, sempre atual é Casa-grande & senzala, e há possibilidade de rever e de reescrever conceitualmente teias tão complexas por serem recorrentes ao tempo tríbio e a uma curiosidade de menino, como se diz no Recife, com certa trela. Com esse tempero as conversas fluíam, e eu sempre, ao me despedir, já estava ansioso por outra conversa.

Entre tantas conversas e visitas, o conhaque de pitanga. Bebida criada por Gilberto para poder, assim, celebrar de maneira personalizada na sua casa de Apipucos, afetivamente, Santo Antônio de Apipucos.

Ao tomar o meu primeiro conhaque de pitanga, servido cerimonialmente por dona Madalena, mulher de Gilberto, senti-me membro de uma quase confraria, pois o conhaque selava um pacto de afeto. Inesquecível foi este sábado, do qual me lembro detalhadamente, contando ainda com a presença de Fernando, filho de Gilberto.

Nesse processo de chegada, e de fortalecimento de laços profissionais e afetivos, pude ampliar o meu conhecimento, visitando de maneira profunda a casa de Apipucos, instalada em pedaço de Mata Atlântica e próxima a um braço do Rio Capibaribe. Os jardins quase florestais, ao gosto de Gilberto; um misto de plantas ornamentais e pomares confirmavam o espírito da tropicologia, tudo cheirava a Brasil.


Raul Lody e Gilberto Freyre em 1982. Foto: Divulgação

Ainda sobre a casa: os azulejos portugueses que contavam a história de Nossa Senhora, a mobília densa e sólida de madeiras nacionais; pinturas, desenhos, gravuras, em abundância; cristaleiras, porcelanas orientais, prataria; santos da devoção, em destaque Santo Antônio; e a magnífica biblioteca que dominava todos os espaços do andar térreo.  Assim, constatei o acervo precioso de livros, revistas, originais, que se integram à vasta criação de Gilberto. Preferencialmente, nós que lemos e gostamos da obra e a valorizamos também como antecipações históricas e antropológicas.

Nesses últimos 10 anos, 1977–1987, pude acompanhar mais de perto o mestre e, a cada visita, a cada conversa, surpreendia-me com a sua mocidade e a sua alma transgressora, fértil e até chocante para os padrões mais avançados da nossa sociedade. Assim é Gilberto Freyre, sempre conjugado no presente do indicativo.

— É Gilberto, sempre Gilberto.

Em 1980, próximo ao Carnaval, fui visitá-lo em seu escritório, na agora Fundação Joaquim Nabuco. E lá, sentado, circundado por telas de Vicente do Rêgo Monteiro e Cícero Dias, e inundado de papéis e livros, estava Gilberto. Vendo-me, abriu-se em amplo abraço.

Muito interessado na minha visita, perguntou-me sobre os meus planos para o Carnaval. Relatei-os rapidamente para não interromper o precioso tempo de Gilberto, porém o brilho dos seus olhos transpirava numa adolescência decisiva como os passos do frevo, do furor do mela-mela, da doçura dos blocos de pau e corda das ruas do Recife, e confidenciou-me: “Adoro me vestir de palhaço no Carnaval”. Então, declarei a Gilberto que a minha fantasia era de marinheiro, e nos meus planos para o Carnaval estavam o Galo da Madrugada e os antigos maracatus de baque virado, Elefante e Leão Coroado.

Saí do escritório mais carnavalesco que antes e revi nas festas das ruas do Recife o viço que Gilberto havia transmitido pelo que vivenciou, conheceu e interpretou sobre o Carnaval e outras festas.

Festas de santo, aliás, tema dominante em Casa-grande & senzala; nessa mistura de santos da casa, de santos da capela, santos das procissões, e no formato de procissão, também se expressa o mais tradicional Carnaval do Recife.

Falando do Recife, sempre a paixão de Gilberto por sua cidade irradiava-se numa posse determinada, sendo até egoísta, pois, pelo que se percebia, ele sempre passava uma imagem “o Recife é meu”.

Se havia alguma coisa que contrariasse mais Gilberto era se dizer “de Recife” ou “em Recife”. Pois era o Recife cidade masculina, conforme ele afirmava sempre, em um ensinamento permanente de invocar corretamente a sua cidade.

Gilberto, um homem dos detalhes e das macroformas, somente nesta relação genial pôde ler com tanta sagacidade a vida brasileira, especialmente do seu Nordeste.

Assim, Brasileirismos & conexões em Gilberto Freyre, com 25 artigos, quer relacionar os grandes temas da farta e rica literatura de Gilberto Freyre nas ciências humanas com o meu olhar antropológico, das minhas muitas experiências sensíveis, que tive no cotidiano, na festa, na fé, na comida, e nas múltiplas relações sociais.

Os artigos abordam as matrizes étnicas na multiculturalidade brasileira por meio de etnografias que recuperam questões históricas, patrimoniais e contemporâneas. Por tudo isso, o livro é realmente uma série de conexões já amadurecidas na obra de Gilberto e, também, recupera o precioso tempo que pude conviver com ele.

É, sem dúvida, uma homenagem para Gilberto.

BANQUETE DE SÍMBOLOS

Caju: uma fruta da Mata Atlântica

(...) Thevét, dos primeiros cronistas quem se ocupa com exatidão do caju (...).

Vários são os complexos característicos da moderna cultura brasileira de origem pura ou nitidamente ameríndia: o da rede, o da mandioca, o do banho de rio, o do caju (...).

(Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala)

Ecologia, meio ambiente e valorização das espécies nativas transitam na obra de Gilberto e mostram as profundas relações entre a natureza, a sociedade e a cultura. No seu livro Nordeste, Gilberto afirma um compromisso com a Mata Atlântica. E traz a cana-de-açúcar, uma espécie exótica, contudo fundadora de uma civilização, a civilização do açúcar.

A plantation da cana espalha e unifica essa espécie como uma verdadeira monocultura, mais que a mandioca, o caju, a goiaba, o abacaxi, o jenipapo e tantas outras espécies nativas, que dão comer ao braço que faz açúcar.

Com esse olhar que interpreta povos, culturas e civilizações, há um foco dominante para o que é da terra, desta terra rica em biodiversidade, e de tantos elementos que formam a identidade do Nordeste.

O cajueiro pertence à família das Anacardiaceae, integrando em torno de 500 espécies conhecidas, entre elas a Anarcadium occidentale L., segundo Southey a árvore mais útil da América. Nativo do Brasil, mais do Nordeste, foi levado para a África, para a Índia e América Central. O nome Tupi seguiu com o ciclo de navegação dos portugueses, estando no Oriente e no Ocidente. Muitos dizem que o caju é a fruta mais brasileira de todas.

O Brasil ainda revela seus imaginários de um paraíso tropical, certamente em virtude das chamadas belezas naturais, reunindo diversos ecossistemas, incluindo-se amplo litoral, montanhas, florestas, vales, áreas alagadas como o pantanal, o cerrado, bacias hidrográficas magníficas como a da Amazônia, rios quase continentais como o São Francisco, enfim cenários privilegiados de flora, fauna e também de diferenciada ocupação humana, de cultura e de interpretações dessa diversidade que identifica e marca o país.

Entre os muitos símbolos desse Brasil tropical, de natureza variada e generosa, estão as frutas. Frutas carnudas, coloridas, saborosas, de odores e de gostos especialíssimos. Muitas frutas chegaram pela mão do colono português, que introduziu a manga, a jaca, a fruta-pão, a banana, todas originárias do Oriente. As frutas da terra, nativas, contudo, são muitas e de ocorrência nacional, e assim destaco o nosso tão conhecido e celebrado caju.

A exuberância e variedade de formas e de estéticas ecológicas sempre marcam as nossas frutas, diga-se: frutas do mundo aqui nacionalizadas e tantas outras nativas, da terra, que juntas constituem esse rico acervo de cheiros e paladares que fizeram com que os viajantes, homens de arte e de ciência que vieram de diferentes partes da Europa para conhecer, documentar e revelar para o mundo essas terras tão exóticas, diferentes, de um Brasil tropical, pudessem exercer diferentes formas de documentação.


Imagem: Raul Lody/Divulgação 

Entre tantos viajantes artistas, destaco Albert Eckhout, pintor que chegou ao Brasil, em Pernambuco, por convite de Maurício de Nassau (1637–1644).

Eckhout nasceu em Groningen, Holanda, em 1610, e integrou a corte de Mauricio de Nassau, convivendo com outro pintor, Frans Janszoon Post.

O trabalho visual e as pinturas de Eckhout ganham excepcional valor documentalista, registrando pessoas, tipos de características étnicas bem definidas e, principalmente, elementos de uma natureza muito colorida, diferente, marcada por frutas, árvores, flores, animais e cenários de uma exuberante natureza. No caso, ressalto uma das pinturas mais conhecidas de Eckhout, chamada Mameluca, em que se vê exímio trabalho de desenho botânico de cajueiro e seus frutos.

A obra de Eckhout encontra-se no Museu de Copenhague, datada de 1641, ofertada por Maurício de Nassau ao rei da Dinamarca, Frederico III.

A pintura Mameluca retrata um tipo étnico, mistura de elementos raciais entre o branco, no caso, o português, e o ameríndio, o nativo do Brasil.

O interesse em retratar o caju, em um conjunto de 11 telas, destaca a ocorrência e o significado da fruta para a região Nordeste e para ampla área da costa brasileira.

A FRUTA DE MUITOS USOS
O cajueiro é uma árvore celebrada e está no variado imaginário tradicional e popular brasileiro. Além do consumo da fruta in natura e muitos outros aproveitamentos da culinária enquanto doce, vinho e castanha assada — muito apreciada e consumida como acompanhamento de bebidas ou na receita de bolos como o pé de moleque, um prato que integra a mesa festiva do ciclo junino e é alimento diário de muitos brasileiros.

Além de estar em formas doces, em calda, como a tão celebrada passa de caju, destacando o açúcar da fruta, um quase símbolo do Ceará, aparece ainda em pratos salgados, destacando-se a famosa moqueca
de maturi.

As bebidas feitas de caju também ampliam possibilidades gastronômicas e comerciais. Inicialmente a tão conhecida cajuada — suco de caju, excelente bebida refrescante e muito saudável. Ainda de maneira industrial, a cajuína e o vinho de caju, além do licor e outras criações próprias da dinâmica inventiva das cozinhas.

A ESTÉTICA DO CAJU E DO CAJUEIRO

Cajueiros de setembro
Cobertos de folhas cor de vinho
Anunciadores simples dos estios
Que as dúvidas e as mágoas aliviam.
Aqueles que, como eu, vivem sozinhos.
As praias e as nuvens e as velas das barcaças.
Que vão seguindo além rumos marinhos
Fazem com que por tudo se vislumbrem
Luminosos domingos em setembro.
Cajueiros de folhas cor de vinho.
Presságio, amor de noites perfumadas.
Cheias de lua, de promessas e carinhos,
Vivas canções serenas e distantes.
Cajueiros de sabores inocentes
Debruçados à beira dos caminhos.

(Cardozo, Joaquim. Cajueiros de setembro. Poemas)

A forte presença do caju no imaginário brasileiro ocorre em diferentes técnicas artesanais, retratando a fruta como tema principal ou compondo cenas regionais presentes no nosso artesanato/arte popular.

Na xilogravura, o caju é um componente que centraliza muitas obras, ocorrendo ainda de maneira alegórica. Há uma referência dominante sobre o caju enquanto símbolo do trópico, do sol, das cores fortes e quentes, e assim ele é interpretado e incluído em vasta produção dos gravado-
res populares.

Entalhes de madeira, pinturas sobre tecido, bordados, pinturas em material cerâmico, sobre outras superfícies, pinturas sobre papel e tela entre muitas outras técnicas revelam a inventiva tradicional e contemporânea de mostrar o caju e sua trajetória, unindo o valor da fruta telúrica e demais temas que identificam a natureza brasileira, o cotidiano, a festa, o homem regional.

Também nas tradições orais, na literatura e nas cantigas o caju é um tema muito ocorrente, fazendo diferentes autores louvarem e relacionarem a fruta com estéticas que revelam o Nordeste, interpretando o homem do litoral, o ciclo das colheitas em um tempo em que os cajueiros chegam com suas flores bancas e dão frutas coloridas, exalando odores, anunciando sabores e preferências do brasileiro.

Como o coqueiro (Cocos nucifera L.) para o Oriental, notadamente o indiano, o cajueiro seria o mesmo para o brasileiro, representando, se houvesse uma, a árvore símbolo do paraíso em virtude das inúmeras possibilidades do seu aproveitamento para a vida do homem.

O cajueiro é uma árvore de múltiplos usos, sendo para o nativo uma espécie botânica que alimenta, que produz remédios, cuja madeira é empregada para a construção de embarcações, especialmente a jangada, além de representar no imaginário popular uma das plantas mais queridas do Nordeste.

Assim, estabelecem-se profundas relações entre o brasileiro e o cajueiro, tendo na fruta uma forte referência de cultura.

Pois o homem, esse eterno tradutor do meio ambiente, usa e dá significados aos inúmeros elementos da vida natural e assim vai representando os seus entornos e se representando, construindo identidades.

OS SABORES

Bolo pé de moleque à moda de Pernambuco
Quatro ovos, seis xícaras de massa de mandioca, meio quilo de açúcar de segunda, uma xícara de castanhas de caju, um coco, três colheres de sopa de manteiga, erva-doce, cravo e sal. Espreme-se a massa, passa-se numa peneira, depois junta-se o leite de coco tirado com um pouco d’água. Em seguida, os ovos, a manteiga, o açúcar, as castanhas, uma colherzinha de sal e outra de cravo e erva-doce. Leve-se ao forno numa forma untada e põe-se em cima algumas castanhas de caju inteiras. (Freyre, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Global Editora, 2007. Pág. 107)

Moqueca de maturi
A moqueca urbana das nossas mesas é um tipo de guisado de peixe, de carne, de camarão, de ovos e de maturi, entre outros, temperado com azeite de dendê, leite de coco e pimenta, entre outros temperos.

Há ainda a chamada moqueca de folha que, segundo a tradição, é a moqueca original e feita de peixe com muita pimenta malagueta, envolta em folha de bananeira e depois moqueada, um tipo de cozimento, certamente um costume indígena, que acontece com uso de grelha.

Para se fazer moqueca de maturi os ingredientes são os seguintes: maturi, azeite de dendê, azeite de oliva, leite de coco, cebola, tomate, sal, cheiro-verde e pimenta malagueta.

Carne de caju

Dez cajus inteiros, uma cebola, quatro dentes de alho, dois tomates, azeite de oliva, sal, pimenta-do-reino e cheiro-verde.

Prepare a massa dos cajus e adicione os demais ingredientes em uma panela.

A carne de caju é acompanhada de arroz.

Doce de caju à moda de Pernambuco
Escolhem-se cajus, que não estejam muito maduros e que sejam sem mácula, e que devem ser descascados com uma casca de marisco, de modo que se tire toda a pele, e os talos, para que o doce não fique preto; piquem-se com um palito, extraindo-se metade do sumo, depois desta operação fervam-se em calda, e logo que tenham fervido, retire-se todo o doce do fogo e deixe repousar até o dia seguinte, a fim de ficar a fruta bem repassada na calda. Depois torna a voltar tudo ao fogo para tomar o competente ponto. Retira-se, e guarda-se em vasilhas. (Freyre, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Global Editora, 2007. Pág. 148)

A pimenta africana grão-do-paraíso

No regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-se principalmente pela introdução do azeite de dendê e da pimenta malagueta, tão características da cozinha baiana.

(Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. Pág. 542)

A identificação dos ingredientes e as suas procedências possibilitam reconhecer o verdadeiro mapa das rotas comerciais, das trocas e das interpretações culinárias dos povos. E, assim, a pimenta, no caso brasileiro, é a personagem em destaque nas nossas muitas e diferentes mesas.

Gilberto olha para a comida além do símbolo e traz a comida enquanto método para interpretar as relações sociais.

PIMENTA DA ÁFRICA
Até então classificada como Xylopia aethiopica Rich (Unona aethiopica dun, uvaria aethiopica Rich), reveste-se de maior veracidade de etnobotânica com a recente pesquisa da professora Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo, reconduzindo estudos neste campo específico e informando ser correta para pimenta-da-costa a classificação Capsicum frutescens L. A antiga classificação adequa-se a outro fruto africano e de uso ritual religioso afro-brasileiro, o eeru ou iru, que, juntamente com o lelecum e a própria pimenta-da-costa, integra os cardápios dos orixás, voduns e inquices no Candomblé e no Xangô.

O QUE VEM DA COSTA
Costa Mina, Costa do Ouro, Costa dos Grãos, Costa do Marfim, Costa dos Escravos — costa africana, enfim, a Atlântica, que se comunica com a costa brasileira.

Pelo mar chegaram as peças (escravos) e outros produtos que detonaram intenso intercâmbio de pessoas, madeiras, ervas, especiarias e alguns manufaturados que triangulavam em rotas e polos comerciais entre África, Brasil e o Reino (Portugal).

Da África vinham a pimenta, pimenta-da-costa; o atarê, ataare para os Ioruba; inhame da costa; os panos tecidos em tear manual, pano de alacá, ou os tão conhecidos panos da costa; fibras especialmente do “olho do buriti”; a palha da costa; obi, orobô; búzios; sabão; manteiga de ori; contas de cerâmica e vidro; penas de papagaio, ecodidé; efum, ossum; anileiro; dendê; e tantos outros produtos que foram abastecendo os gostos das cozinhas e os usos rituais religiosos.

Os judeus, no século IX, importavam esta pimenta (pimenta-da-costa) para o império Carolíngio, aos mercados e feiras. Era condimento tão raro que às vezes se usava como moeda (...). (Camargo, Maria Thereza Lemos de Arruda. Plantas medicinais e rituais afro-brasileiros. São Paulo, Almed, 1988. Pág. 61)


Imagem: Raul Lody/Divulgação  

Os condimentos importados ampliavam os sabores e se caracterizavam enquanto fontes de descobertas de mundos então desconhecidos: África, Índia e China. As especiarias do Oriente transitavam no Reino como verdadeiras marcas de opulência e exotismo, propiciando criação de fórmulas afrodisíacas, tratamentos sofisticados para o corpo e para o espírito.

No caso brasileiro, a importação de produtos da costa, além de atender à clientela portuguesa já habituada a certos gostos no Reino, atendia também ao crescente contingente de crioulos, brasileiros filhos de africanos com portugueses, que buscavam naqueles produtos retomar, material e simbolicamente, as terras de origem.

O GOSTO TEMPERADO
Em molhos — o nagô, o de acarajé, para acentuar o abará — quentes, muito fortes, ou frios, com menos quantidade — com dendê, com sal, com camarão defumado e seco e principalmente com muita arte, com muita “mão de cozinha”, dom nascido da prática e da sabedoria de preparar os alimentos —, a pimenta assume distintivo de ingrediente tão africano quanto baiano no panorama dos sabores nacionais.

Pimenta favorita. Pura, mastigada na comida ou esmagada no caldo de carne ou do peixe. Molhos. A capsicum, bem ácida, reinava em toda a África Ocidental, sertão e praias. E segue reinando. Gindungo, a malagueta de Angola, ataré, pimenta-da-costa de escravos, Gana, Daomé, Nigéria. Piri-piri em Moçambique (...). (Cascudo, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1983. Pág. 87)

De sabores também sofisticados, outros frutos são incluídos na preparação dos elaborados pratos afro-brasileiros.

Os africanos ainda condimentavam as suas refeições com o ataré (pimenta-da-costa), em quantidade muito reduzida; com o iru, fava de um centímetro de diâmetro, usada em quantidade diminuta; com o pejerucum ou bejerecum, outra fava de quatro centímetros de comprimento por dez milímetros de espessura, empregada no tempero do caruru; com o ierê, semente semelhante à do coentro e usada como tempero do caruru, do peixe e da galinha. (Querino, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Recife: Fundaj, Editora Massangana; Rio de Janeiro: Funarte, INF, 1988. Pág. 141)

E, ainda, a tão conhecida malagueta.

A malagueta é a mais usual, mas também se utiliza a chamada pimenta-de-cheiro, menos picante e mais odorosa. Por isso mesmo chamam-na de cheiro. Existem de várias espécies que recebem nomes populares pelos quais são conhecidas — dedo-de-moça, pimenta-da-costa, pimenta-do-mato, cumaru (...). (Netto, Joaquim da Costa Pinto. Caderno de comidas baianas. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1986. Pág. 169)

PIMENTA PARA MASCAR E PIMENTA PARA OLHAR
No seu âmbito ritual religioso, especialmente para o Candomblé e o Xangô, o uso da pimenta-da-costa, o ataré, parte de um desejo fundamental de ativar elementos diversos de um valor não menos geral que é o do axé — qualidade vivificante da natureza.

Os instrumentos do olhador são oubi, ourobô, pimenta-da-costa, espécie de rosário, cujos padres nossos são representados por caroços de manga, e em pequenas rodelas. Às vezes contêm dezesseis moedas de prata. Às mulheres só é permitido olhar com búzios. (Querino, Manuel. A raça africana. Salvador: Progresso, 1955. Págs. 55–56)

O obi banjá (nacional), o obi abatá (africano) e o orobô, juntamente com a pimenta-da-costa, complementam o instrumental do olhador — decifrador das mensagens do Ifá e outros orixás. Esses frutos estarão também no jogo de búzios, prática divinatória tão comum no processo ritual afro-brasileiro.

A função gastronômica da pimenta-da-costa na culinária dos terreiros qualifica categorias de deuses e dá aos alimentos sentido peculiar de dinamicidade que vai além do desejo puro e simples de comer.

O ataré é principalmente um distintivo ético na complexa e elaborada mitologia dos orixás, voduns e inquices.

O ataré também funciona como um estimulante do hálito, garantindo um valor provocativo que sensibilizará os deuses através da palavra, bem como da saliva. A pimenta é também conhecida, em especial pelos Ioruba, como pimenta da bondade proporcionando a abertura da voz, facilitando a comunicação homem-Deus, patrono-Deus auxiliar.

RAUL LODY é antropólogo, museólogo, ilustrador e escritor, com experiências no Instituto Fundamental da África Negra (Senegal), Museu de Etnologia de Portugal e Laboratório Etnológico da Universidade de Coimbra. Publicou diversos trabalhos, sendo 78 livros concentrados em arte e cultura popular, antropologia da alimentação, cultura e patrimônio de matriz africana.

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