“Estamos num processo de descolonização”
Cacique há duas décadas, Marcos Xukuru fala sobre a luta histórica do seu povo e dos caminhos de autonomização indígena frente a um processo de colonização que nunca acabou
TEXTO CHICO LUDERMIR
FOTOS ERIC GOMES
04 de Dezembro de 2019
O cacique Marcos Xukuru
Foto Eric Gomes
[conteúdo na íntegra | ed. 228 | dezembro de 2019]
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Quando Marcos tinha 11 anos, seu pai, o Cacique Xikão, levou-o para Pedra do Rei, lugar sagrado do povo Xukuru. Normalmente, o local só é visitado uma vez por ano, no dia 6 de janeiro, mas a entrada da década de 1990 marcava a retomada das terras indígenas na cidade de Pesqueira da posse dos fazendeiros, e o momento de conflitos exigia consultas extraordinárias à Natureza Sagrada. Ao lado do pajé Zequinha, líder espiritual dos Xukuru até os dias de hoje, Xikão perguntou aos encantados quem seria o seu sucessor. A resposta veio através da boca do pajé: “Está do seu lado”, ouviu-se. Ao escutar a sentença, Marquinhos, como é chamado, sentiu um arrepio tomando todo seu corpo: “Eu caí em prantos. Meu pai me pegou pelo braço, me levantou, me deu um abraço e começou a chorar”, conta o cacique.
Marcos é duas vezes herdeiro de Xikão, maior liderança da história do povo Xukuru, assassinado em 20 de maio de 1998 a mando de posseiros. Como filho, acompanhou de perto o pai em um processo de reconquista do território, o que envolveu a rearticulação do povo historicamente perseguido e subalternizado. Como cacique, tem no herói e mártir do seu povo a principal referência para as decisões políticas que estruturam e organizam uma população de mais de 10 mil indígenas.
A mobilização iniciada por Xikão, e continuada por Marcos, passa pela reconexão com os rituais sagrados, em especial o toré, e pelo renascimento do processo de afirmação da identidade indígena em Pesqueira, no agreste pernambucano. As disputas pela demarcação das terras conduzidas pelo povo Xukuru – conhecidas como retomadas – tornaram-se referência nacional e culminaram na delimitação de 27 mil hectares de terra, divididos em 24 aldeias, e em um inédito ganho de causa contra o Estado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2018. O órgão condenou o Brasil a indenizar a etnia um valor de U$ 1 milhão, equivalente a cerca de R$ 4 milhões, pelos danos a essa população.
As memórias de infância do atual cacique remontam justamente aos acampamentos de disputa territorial. O primeiro deles, para a retomada da Aldeia Pedra d’Água (não por acaso, onde está localizado o território sagrado, aquele em que Marquinhos foi indicado pelos encantados como o futuro cacique). “Foram 90 dias acampados ao lado de mais de 500 pessoas. Passamos muitas dificuldades, ameaças, pressão e fome. Lá de cima a gente ouvia os tiros”, relembra. “Enquanto isso, a gente cercava a mata sagrada que os fazendeiros queriam derrubar para plantar café”, comenta. Sob a liderança de Xikão, foram sete processos como esse. Já sob o comando do atual cacique, foram mais de 40, que desintrusaram 281 ocupações de não indígenas no território original da etnia.
Marcos (E) ao lado do pai e do irmão Uelson, na Pedra do Rei do Ororubá, em 1987. Foto: Acervo da família/Reprodução
Um ano antes de sua morte, Xikão começou a preparar seu filho, na época com apenas 17 anos. As ameaças, que já eram constantes, intensificaram-se, até que o “Guerreiro da Paz”, como era conhecido, tombou, numa emboscada. “Ele já pressentia que algo ia acontecer e, por isso, se apressou no meu chamado”, conta Marcos. “Ficamos todos com medo, pensando que iriam nos matar também. Precisamos nos reestruturar do baque”, afirma, explicando porque só assumiu o cacicado em 2000, depois de um biênio em que o povo foi governado por um conselho de lideranças.
Marcos lembra exatamente o que sentiu no Dia de Reis, em que se tornou oficialmente o líder político do seu povo: “Eu estava com 21 anos. Quando eu cheguei em casa da cerimônia, tomei um banho, fui relaxar. Deitei no sofá e pensei: ‘Sou o cacique do povo Xukuru’. Estava me sentindo o homem mais poderoso do universo…”, afirma, nesta entrevista. O deslumbre inicial, logo superado, deu lugar a um trabalho cotidiano e incessante que, segundo ele, tem como principal retorno a oportunidade de ver as famílias trabalhando em suas terras, no seu roçado, livres dos regimes de servidão que marcavam as relações de trabalho com os fazendeiros.
Uma das ações de maior destaque de sua gestão foi a criação da Assembleia do Povo Xukuru, no ano seguinte, 2001. O evento, que começou pretendendo-se um mecanismo de escuta e decisão descentralizada, participativa e horizontal, hoje agrega discussões políticas anuais, atraindo cerca de dois mil participantes, muitos desses, não indígenas. “A Assembleia serve como um espaço de consulta, de avaliar o nosso trabalho, de nos avaliarmos mutuamente, de saber se nós estamos no rumo certo”, situa. “Se errar, é todo mundo. Se acertar, é todo mundo. Esse é o bem-viver. Construindo um projeto de vida a muitas mãos”, completa. Este ano, a Assembleia teve como tema Em defesa da vida: eu sou Xikão, e foi acompanhada nos seus quatro dias pela reportagem da Continente (leia aqui).
O cacique, hoje com 40 anos, caminha para completar duas décadas à frente do seu povo. Tendo recebido a missão numa situação completamente adversa, deu seguimento ao legado do pai de fortalecer a luta e a autonomia, tendo como norte uma educação enraizada na sabedoria ancestral e na participação popular, em especial, da juventude.
Nós nos encontramos na tarde do dia 17 de junho, na subida da Serra do Ororubá, entrada do território Xukuru. De lá, seguimos seu carro apressado até a Aldeia Pedra d’Água, onde conversamos por cerca de duas horas, numa sala de aula da escola indígena Procurador Geraldo Rolim. Sempre com um tom sereno, mas com ares de quem não tem tempo a perder, nesta entrevista, o cacique rememorou a história do seu povo, marcada pela espiritualidade e pela luta, e pontuou as principais marcas de sua gestão.
Ao longo desta conversa, Marcos Xukuru reflete também sobre o momento atual, em que o país é governado por um presidente declaradamente contra as políticas públicas voltadas às questões indígenas. “A conjuntura em que nós estamos vivendo hoje é de um grande retrocesso. Ao chegar ao poder, Bolsonaro está concretizando o desmonte da política indigenista que ele anunciava desde a campanha. Já esperávamos, só não pensávamos que seríamos os primeiros a ser atacados”, afirma.
O cacique fala também sobre as relações entre política e espiritualidade, assim como entre política e institucionalidade. Provocado pela Continente, Marcos responde ainda sobre a conexão com a terra e com os encantados da Natureza Sagrada, e relata um processo continuado de retorno às origens. “Aprendemos muito com as práticas que são incompatíveis com a realidade da nossa ancestralidade. Nós estamos em um processo de descolonização.”
Primeiros momentos da cerimônia do cacicado de Marcos, no terreiro da
Aldeia Pedra d’Água, em 2001. Foto: Acervo da família/Reprodução
CONTINENTE Depois do assassinato brutal de seu pai, o Cacique Xikão, você recebeu a missão de guiar o povo Xukuru, com apenas 21 anos de idade. O que representou, para você, o momento em que se tornou cacique?
MARCOS XUKURU Naquele momento, foi uma coisa maravilhosa. Me senti o homem mais poderoso do universo. Mas, depois, a ficha caiu. O que foi mais prazeroso e me deixou e ainda me deixa muito mais realizado foi quando nós conseguimos nossa primeira retomada, quando eu tive a oportunidade de ver as famílias trabalhando. Muitos chegavam e diziam: “Cacique, que coisa maravilhosa! Estou botando minha roça ali e já estou trabalhando…”. Eu dizia: “Poxa, a missão que os encantados me deram já está dando fruto”. Isso era o mais importante, naquele momento. Por mais perseguição que eu tenha sofrido, isso foi muito mais prazeroso e me deixava realizado. Ver as famílias podendo trabalhar no solo sagrado xukuru. Comecei a perceber efetivamente a minha função, meu papel nesse contexto que é me entregar totalmente, de corpo e alma, à causa xukuru. Não é a causa das famílias que estão presentes, mas é a causa daqueles que já foram, que são os nossos ancestrais, que nós chamamos de “encantados”. São eles que nos conduzem, que nos iluminam, que fazem com que trilhemos essa missão que eles nos deixaram. A missão de garantir o solo sagrado para produção do nosso povo e ser guardião desse solo sagrado. Um dia, também, nós vamos ser os encantados. Essa é a missão.
CONTINENTE Você está prestes a completar duas décadas de cacicado. Olhando para trás, pensando desde o momento em que você recebeu a missão de conduzir o povo Xukuru até o momento de hoje, o que você destacaria?MARCOS XUKURU Essa missão nos proporcionou fazer muitas coisas, entre elas, uma reestruturação sociopolítica do povo Xukuru. Na gestão do meu pai, existia apenas um conselho de lideranças e a comissão interna. Começava a ser discutida a questão da educação escolar indígena no território xukuru, mas meu pai não chegou a ver algumas escolas da forma que ele pensava junto com o coletivo de professores xukuru. Quando eu assumo – e a gente começa a estruturar a organização social –, a gente entende que a educação não pode estar desassociada da luta pela terra. Aí vamos trabalhar isso aqui, vamos retomar as escolas. Começamos a incentivar e buscar esse processo. Em 2001, é quando começa a Assembleia Xukuru. Vimos que havia a necessidade de juntar as famílias para discutir o projeto comum do povo, porque só as lideranças não estavam dando conta de realizar esse processo. “Vamos reunir todo mundo, discutir todo mundo junto todas as necessidades, e a gente elenca nossas prioridades.” Começou em 2001 com a necessidade de discutir o projeto de vida do povo Xukuru. Posteriormente, vem a luta pela saúde – aí, se monta o conselho de saúde. A gente começa a reestruturar a organização sociopolítica do povo Xukuru, a ampliar esse processo. Mais da metade desse território foi conquistado mediante a mobilização do nosso povo, em retomadas, que nós chamamos de autodemarcação. O Estado veio posteriormente, com processos de indenização, estudos e análises dos cadastros das famílias não indígenas, em 2001. Enquanto isso, nós íamos ocupando. Nós, inclusive, invertemos a lógica da Funai, que queria começar do menor para o maior (lote de terra). Nós invertemos em Brasília o processo. E assim foi feito. Nós conseguimos esse feito – e é uma leitura de trajetória desses avanços – e conseguimos chegar a mais de 95% do território recuperado, existindo ainda algumas ações judiciais em andamento.
CONTINENTE Vocês também ganharam uma ação importante na Corte Interamericana de Direitos Humanos…
MARCOS XUKURU Ganhamos esse processo na Corte Interamericana condenando o Brasil por omissão e negligência no processo de demarcação do povo Xukuru. O resultado dessa negligência foram assassinatos de lideranças. Decorrência da morosidade do Estado brasileiro na resolução da demarcação do território xukuru.
CONTINENTE Queria voltar um pouco para falar especificamente da Assembleia Xukuru, uma ação criada no seu cacicado e que você citou na sua resposta anterior. Como você sabe, estive aqui junto com vocês acompanhando esta 19a edição. Pelo que vi, posso afirmar que existe, além do processo de descentralização das decisões e uma tentativa de poder mais horizontal, uma instância de formação interna. No entanto, queria destacar a presença considerável de não indígenas – o que acaba por inverter a lógica colonizadora de quem precisa aprender com quem. Parece que as pessoas têm, enfim, entendido o quanto precisam aprender em relação com a terra, com a espiritualidade e a organização de vocês. Gostaria que, a partir disso, você me falasse um pouco da trajetória dessa assembleia, que este ano realizou sua 19a edição, pontuando suas transformações.
MARCOS XUKURU A Assembleia Xukuru começou em um processo de discussão para dentro do território, mas, de acordo com a realização dela, foram vindo algumas pessoas de fora querendo conhecer. Aliados, parceiros de luta, outros povos. Porque a Assembleia também culmina no dia 20 de maio (dia da morte de Xikão), no ato que é a missa no túmulo (de Xikão), no espaço sagrado do povo Xukuru, onde estão plantados nossos guerreiros, e na caminhada, toré, até a cidade de Pesqueira. Outros povos, outras lideranças começaram a vir também para os dias anteriores da Assembleia (normalmente, eles vinham no dia 19 para poder participar do dia 20). Isso foi ampliando, começamos a perceber que a pauta que nós estávamos discutindo dentro precisava ter uma outra dinâmica, para poder contemplar também quem estava chegando. Nós tivemos assembleias em que foram discutidos temas muito centrais paro povo Xukuru: sobre a gestão do território, discutimos sobre a educação do povo, sobre a questão da água, da agricultura. Nós tínhamos pautas muito focadas na gestão e discussão interna e, quando nós começamos a perceber essa chegada de outras pessoas, pensamos um pouco essa dinâmica (de agregação). Pegamos temas atuais, trazendo a formação política para quem estava ali dentro. Dessa forma, a gente tem condições de fazer o diálogo do que está posto na conjuntura atual – nas conjunturas em que vêm acontecendo as assembleias anualmente – e trazendo ela um pouco para o cotidiano do que o povo Xukuru vive, porque nós não estamos desconectados do mundo. De que maneira isso vai influenciar ou não o nosso povo e de que maneira nós, enquanto povo, temos condições de influenciar para fora? A gente meio que pega a bola e chuta pra frente numa outra perspectiva. Ela se tornou esse campo de agregação de vários lutadores e lutadoras que enxergaram nesse espaço Mandaru (nome indígena de Xikão, é o local onde ocorre anualmente a Assembleia), na Aldeia Pedra d’Água, no momento da Assembleia, um momento de reflexão de um projeto de vida diferente. A partir da realidade do povo Xukuru, do modelo de gestão, de como são as suas questões internas. Da participação, da discussão, as pessoas discutem seu próprio futuro. Quem vem – os professores, educadores, agentes de saúde, os mais velhos, as crianças –, vem para também participar e opinar sobre o processo. E aprender. É um momento de formação. A partir daqui a gente prepara o campo de enfrentamento para o que está posto – as mobilizações, a nossa participação… Ocupamos diversos espaços para poder fazer esse contraponto frente ao que está sendo colocado na conjuntura atual. A Assembleia serve como base de discussão e de reflexão para também fazer o enfrentamento contra esse governo.
Assembleia Xukuru, maio de 2019
CONTINENTE Antes de falarmos do enfrentamento, propriamente dito, a que você se refere, volto ao tema da Assembleia que, desde 2018, tem o lema Eu sou Xikão – que é lembrado como mártir, mas também como ideia, força. No último dia da 19a Assembleia, presenciamos uma cena emblemática: em cima de uma porteira, você, cacique do seu povo e filho de Xikão, gritou essa frase para uma multidão, abrindo seu discurso que daria início à caminhada até a cidade de Pesqueira. Indígenas e não indígenas repetiram em coro, fazendo ecoar uma voz uníssona na Serra do Ororubá. O que esse lema significa para você?
MARCOS XUKURU Os encantados nos orientam. Nas preparações das assembleias, trabalhamos muito com a questão do sagrado. Como as coisas vão se dar, como vão fluir. No período do 20o aniversário de morte de Xikão começamos a pensar a Assembleia, e aí surgiu a ideia de que todos nós somos Xikão. Ele é nossa maior referência como pai, professor, como alguém que ensinou tudo o que nós hoje somos. Exemplo também de força, garra. Nós o chamamos Guerreiro da Paz, porque era um lutador, mas não pela violência, pelas armas, mas um lutador com ideias, defendendo as suas convicções. Hoje, ele é um encantado. Está presente em todos nós, em todo momento, em todo lugar. Ele é uma referência de luta também para fora do território xukuru. Um mártir. Quando nós começamos a dizer que somos Xikão, estamos representando todas as lutas em defesa da mãe-terra, em defesa dos direitos humanos – não só desse país, mas de todas as lutas por aí afora. Cada um de nós é Xikão e vamos continuar sendo.
CONTINENTE Essa relação entre política e espiritualidade, da política com os encantados, é uma dimensão muito presente nas falas e ações de vocês, xukuru, e dos povos indígenas em geral. É como se não houvesse uma separação entre as duas. Lembro Kretan Kaingang (da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), dizendo na 19a Assembleia Xukuru: “Enfrentar os nossos guerreiros não é fácil, mas enfrentar nossos espíritos é impossível”. Eu queria que você falasse como a política “material” se conecta com a luta espiritual que atravessa as práticas de vocês.
MARCOS XUKURU É exatamente isso. Quando nós dizemos “Eu sou Xikão”, estamos querendo falar também que, mesmo que esse sistema massacre, persiga, retire direitos importantes constituídos, assassine e prenda lideranças, ele não tem energia diante da força encantada. Porque, onde você chegar, você vai ter a representação espiritual. É uma força invisível para os que estão no poder querendo nos destruir. Eles podem atacar a gente, mas jamais vão tirar os nossos guerreiros e guerreiras que já se foram e que estão presentes em cada um da gente. Se eu me for, outro estará ali preparado para assumir. Porque somos conectados com essa espiritualidade e ela vai sempre estar presente no nosso meio. Sempre. Independente de, fisicamente, eu estar aqui ou não. É nesse sentido que ele coloca. Estaremos sempre avançando, porque essa resistência não é só da parte do corpo do ser humano, mas é resistência espiritual. Não vamos parar nunca.
Marcos Xukuru na Assembleia Xukuru deste ano
CONTINENTE No que toca às questões da terra e território, os indígenas têm uma visão singular. Dentro do universo branco e capitalista, as relações com a terra estão muito focadas na sua relação com trabalho/produtividade e moradia/propriedade privada. O processo de retomada não é só uma busca pela terra nessa chave, mas se conecta com a dimensão encantada. O que significa retomar esse território sagrado que lhes foi tomado e qual a relação que o povo indígena Xukuru tem com esse espaço?
MARCOS XUKURU Por que nós iniciamos o processo de reconquista do território Xukuru pela Aldeia Pedra d’Água, onde está a nossa pedra sagrada? Exatamente porque, no nosso entender enquanto povo, no nosso modo de vida, ela, a terra, está intrinsecamente ligada à força do encantamento. Um território não é só o espaço físico de moradia, de trabalho. É um espaço onde estão repousando os nossos ancestrais. Aqui está a moradia deles. Nas águas, nas pedras, nos rios. Eles estão aqui. Por isso a importância da terra para todos nós. É uma relação que vai além do trabalho.
CONTINENTE E aí vai ao cuidado com essa terra também…
MARCOS XUKURU Isso. Para o cuidado com a terra. Esse respeito com o nosso ambiente sagrado.
CONTINENTE Isso me remete ao conceito do “bem-viver”, como referência do modo de vida integrado com a natureza e que é utilizado largamente por pensadores contemporâneos para se referir à relação dos povos indígenas com o mundo. Como é o entendimento de vocês dessa forma de vida? Como esse conceito chega a vocês? Como entendem o bem-viver?
MARCOS XUKURU O bem-viver está em nos relacionarmos de forma harmônica com todo o ambiente. Quando produzimos respeitando o todo. Nós estamos num processo de descolonização, porque a maioria das pessoas que está hoje no território xukuru foi trabalhador e trabalhadora que viviam nas fazendas. Eles “aprenderam” muito com as práticas que são incompatíveis com a realidade da nossa ancestralidade. Então, nós estamos num processo de descolonizar. E quem faz todo esse processo? A força dos encantados vai nos orientando. Essa harmonia que nós chamamos hoje de bem-viver é ter sempre esse respeito com o outro, com o sagrado, com o espaço físico, com a mãe- terra. Também está relacionado com a nossa própria gestão. O cacique e a organização sociopolítica não mandam. Não é uma coisa que quem decide é o cacique ou fulano ou beltrano. Aqui, as decisões são tomadas de forma coletiva e isso é que é muito interessante. Nós chamamos de “mandar obedecendo”. O que é mandar obedecendo? A consulta à comunidade. E a Assembleia serve como um espaço de consulta, de avaliar o nosso trabalho, de nos avaliarmos mutuamente, de saber se nós estamos no rumo certo. Se errar, é todo mundo. Se acertar, é todo mundo. Esse é o bem-viver. Construindo um projeto de vida a muitas mãos.
CONTINENTE Quando você fala sobre esse processo de descolonização, acho muito interessante, porque se relaciona com a emancipação que o povo Xukuru está vivendo no presente e que tem a ver com marcas fortes e estruturais da colonização. Vocês agora estão numa outra configuração: a terra está demarcada e desintrusada. Duas décadas é, no entanto, pouco tempo para transformar certas práticas e marcas. Como você lê as mudanças nesses 20 anos, a partir da descolonização interna a que você se refere? Agora, com a posse da terra e com essa reestruturação sociopolítica em andamento, com o quê vocês sonham? O que é possível construir a partir disso? Como é que vocês planejam um mundo possível a partir desse território?
MARCOS XUKURU A partir de algumas práticas que já vêm ocorrendo, quando você muda toda a lógica de estrutura que é imposta pelo Estado. Por exemplo, na questão escolar indígena: não existe diretor de escola em nosso território – um cara que manda e os outros que obedecem. Aqui existe um coletivo que chamamos de coordenadores e que possuem funções diferentes das do professor, mas que não deixam de ser professores também. O coordenador se torna apenas uma referência que passa nas escolas, ouve os professores, vê como está a prática pedagógica. É ele que ajuda pedagogicamente, pensando o projeto político pedagógico. Então, a gente muda toda a lógica, quebrando com o que é colocado lá fora. Aqui, os conselhos não têm um presidente. Existe um colegiado de discussões. Da mesma forma, o conselho de lideranças. Existe o cacique, pró-forma, mas as decisões são tomadas de maneira coletiva. A partir daí, na prática, na relação, no trato com a mãe-terra, estamos discutindo uma forma melhor de como trabalhar no nosso território. Tem o coletivo Jupago, que começa a discutir com os nossos agricultores e agricultoras, que trabalham na terra, uma nova metodologia de reaproveitamento do espaço. De como se fazer, inclusive, pegando experiências dos nossos mais velhos, dos nossos ancestrais. Pesquisando lá atrás e vendo como eles faziam antes, como é que nós podemos fazer hoje, se há condições. Estamos implementando, aos poucos, esse projeto de vida. A gente fala desse processo de descolonizar. É muito recente pra gente isso, mas já estamos conseguindo dar passos importantes nesse sentido. Nós temos experiências fantásticas feitas pelos agricultores de plantar sem a utilização do agrotóxico. Os fazendeiros vinham aqui e metiam veneno. Nós já estamos desconstruindo isso. Já existe um grupo de pessoas fincando o pé, fazendo, acontecendo, mostrando que as coisas estão dando certo. É nesse sentido os avanços que estamos dando nesse projeto de vida, nesse processo de descolonizar.
No encontro, participante usa barretina na cabeça, símbolo do povo Xukuru
CONTINENTE Vinte anos são, de fato, pouco tempo, diante de cinco séculos de apagamentos da cultura indígena. Mas, pensando mais pra frente, o que é que precisa ser feito e aonde vocês pensam chegar tendo esse território em mãos, tendo essa gestão compartilhada? Qual é o mundo que você sonha pra esse território?
MARCOS XUKURU Nós queremos ir mais adiante. Estamos em um momento principiante dentro desse modelo que estamos discutindo. Mas pode até ser que não seja nem esse modelo que estamos discutindo agora. Isso os encantados vão nos orientando. O que pensamos é um projeto coletivo de respeito ao meio ambiente, respeito à mãe-terra, à nossa ancestralidade. Nós temos muitas famílias que chegaram depois do processo de demarcação do território xukuru. Espero que, num futuro próximo, o nosso povo, de forma geral, tenha a consciência política do que é nossa luta. Do que ela foi e do que ela é. Tem também uma juventude que está chegando, que não passou por esse processo (de retomada). Por isso, a importância da educação. Uma coisa é quem vivenciou a luta, a retomada, as reconquistas, o sofrimento. Outra, são os jovens que estão chegando agora, que não participaram de nada disso… É quebrar com esse paradigma, com essa questão que está posta na atualidade. Há 20, 25 anos, você não tinha um aparelho como esse nas mãos (segura o celular). Hoje, todos os jovens têm um aparelho desses, ligado na internet, ligado ao mundo. A nossa grande luta é fazer com que o nosso projeto não se perca nesse contexto e, por isso, a formação política. Por isso, as assembleias. Por isso, o grupo que temos de audiovisual (a produtora Ororubá Filmes) – pensando também no ponto de vista de como essas ferramentas podem servir para o fortalecimento do projeto de vida do povo Xukuru. É envolver os jovens num outro formato de enfrentamento frente ao que está posto, utilizando essas mesmas ferramentas. É garantir que essa juventude consiga dar continuidade à luta, à história de vida do povo Xukuru, mesmo estando fora do território xukuru. É preparar essa tropa, preparar essa juventude. O projeto é a permanência nesse espaço. Garantir que esse projeto seja concretizado e darmos condições de que essa juventude permaneça na luta. É um grande desafio pra todos nós garantir isso.
CONTINENTE Os povos indígenas sofrem assaltos, há mais de cinco séculos, das mais diversas formas. Da escravidão ao genocídio, da catequese e apagamentos da cultura à retirada de direitos básicos. Estamos vivendo um período de agravamento da perseguição às minorias e aos povos que estão fora dessa grande elite econômica e, intencionalmente, a questão indígena tem sido tratada de maneira desumana. Pensando nesse contexto político, tão bem-abordado na 19a Assembleia Xukuru sob o tema “Em defesa da vida”, queria que você comentasse sobre os retrocessos da gestão Bolsonaro no que toca diretamente os povos originários – desmonte da Funai, paralisação das demarcações, municipalização da saúde… Qual é leitura de vocês? Como se reconfiguram as formas de resistência e enfrentamento nesse cenário?
MARCOS XUKURU A conjuntura que nós estamos vivendo hoje é de um grande retrocesso. Já tínhamos em mente que isso aconteceria, até mesmo pelo fato de o presidente Bolsonaro, no seu processo de campanha, já tratar a pauta indígena com uma perspectiva de desmonte da política indigenista. Ao chegar ao poder, ele concretiza essa pauta, que trazia na sua bagagem de campanha. Nós não pensávamos que seríamos os primeiros (a ser atacados). O movimento indígena começa a se movimentar nesse sentido. Quando o cara assume, tira a Funai do Ministério da Justiça, joga pro Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; tira a parte de demarcação e joga pro Ministério da Agricultura; começa a mexer na municipalização da saúde indígena. Começa por aí o contexto, e aí o movimento indígena, já preocupado com a forma truculenta que é característica do Bolsonaro, fica muito apreensivo. Por se tratar de um militar, ficamos extremamente preocupados. De que forma faríamos o enfrentamento, a defesa dos nossos direitos? Antes de mais nada, começamos a nos reconectar com a força encantada. Antes de tudo pedimos a força do encantamento. O movimento começou a trabalhar isso muito fortemente, cada um nos seus territórios, dançando toré, pedindo força. “Vamos lá, vamos quebrar a força dos nossos inimigos.” No período do Acampamento Terra Livre (ATL), que é essa grande assembleia dos povos indígenas no Brasil, foi decretado pela Casa Civil e Ministério da Justiça a delimitação da Esplanada dos Ministérios como área de segurança nacional – que é justamente onde acontece o movimento. O movimento foi pego com muita surpresa. “E aí? O que vamos fazer?” Mesmo assim, nós estávamos dispostos a dar nossas vidas, se fosse o caso, para fazer frente a esse desmando do governo. E nós fomos pra Brasília, fizemos o acampamento, nos colocamos, ocupamos os espaços – tanto no Congresso Nacional, quanto na Câmara, quanto no Senado, em frente aos ministérios, em frente ao Supremo Tribunal Federal… Estivemos no Ministério da Justiça, da Saúde. Nós ocupamos em todos os espaços e fomos fazer a luta. Graças aos nossos encantados, não houve nenhuma baixa dos nossos irmãos índios e conseguimos passos importantes, avançamos muito. Nós fizemos simultaneamente manifestações no Brasil todo. Quando saiu a história da municipalização (da saúde indígena, que hoje é responsabilidade federal), nós trancamos BRs, fizemos o enfrentamento. Então, o movimento indígena saiu na frente dos outros movimentos sociais nesse enfrentamento contra o governo. E a pauta continua, a mobilização é permanente. Vamos continuar resistindo a qualquer projeto danoso – não só contra os povos indígenas – porque a gente se soma também em outras lutas, como a reforma trabalhista, a reforma previdenciária. É nesse sentido que nós nos colocamos. Dizer que o cenário é duro, mas não é impossível de fazer esse enfrentamento.
CONTINENTE Os movimentos indígenas são movimentos autônomos e têm se articulado nacionalmente de uma forma muito forte, como você mesmo cita. Mas, na última eleição, por exemplo, vimos se intensificar também a participação indígena na política partidária, tendo a candidatura de Sônia Guajajara – ao lado de Guilherme Boulos, pelo Psol, como expoente disso que falo. Como você enxerga essa ocupação da política institucional?
MARCOS XUKURU É uma discussão que o movimento vem fazendo. Nós temos avaliado a importância de ocupar esses espaços. Primeiro, porque hoje quem conduz a política nacional é quem está assumindo cargos eletivos – porque a constituição do nosso país dita isso. Quem tem a legitimidade e a autoridade de propor ou fazer qualquer composição legislativa nesse contexto é o Congresso Nacional. Tem o legislativo, tem o executivo. A nossa intenção é também ocupar esses espaços para que nós tenhamos voz e votos por dentro desse sistema. Hoje, nós estamos fora dele. Temos que pensar a estratégia de como chegar dentro do centro do poder, no olho do furacão. Nós temos que ir pra dentro do olho do furacão. Hoje, por exemplo, você vê uma deputada federal indígena ocupando o parlamento, de Roraima (Joênia Wapichana, da Rede). É muito diferente. Lembro muitas vezes que, no Congresso Nacional, nas comissões especiais onde tratavam os projetos relacionados à questão indígena, nós não termos direito de abrir a boca, de falar um “a” naquele espaço. Muitas vezes, quando falávamos, os deputados ruralistas diziam “Vocês têm que calar a boca, senão a gente vai botar vocês pra fora. Vocês aqui não têm voz, nem têm voto. Se vocês quiserem falar aqui dentro, voltem, elejam seus representantes e venham pra cá”. Nós começamos a entender que é preciso ocupar esses espaços também da política. Vereadores, têm muitos espalhados em Pernambuco, em outros estados da federação. No cargo executivo municipal, são raros. No estadual, não tenho notícia de nenhum. Mas, depois de Juruna, conseguimos colocar outra pessoa no Congresso. Nós estamos discutindo sobre isso: a importância de ocupar esses espaços. Hoje, Joênia está fazendo um papel muito importante lá dentro. Mobilizando uma frente parlamentar em defesa dos direitos indígenas. Uma frente ampla, grande, com muitos apoiadores. Isso é importante para a gente fazer o enfrentamento por dentro. Isso não inviabiliza o movimento de ir pra rua, muito pelo contrário. O movimento de ir pra rua vai ajudar quem está lá no poder. Vai impulsionar, vai dar mais força ainda nesse processo. Nós estamos discutindo e achamos interessante e importante assumirmos espaços como esse. Por isso, a candidatura de Soninha (Sônia Guajajara, Psol). Inicialmente, ela seria candidata pelo Rio de Janeiro, mas nós conversamos com ela e a proposta de vir compondo uma chapa como copresidenta junto a Guilheme Boulos seria exatamente pra nós darmos uma marcada na pauta indígena no país. Porque há um desconhecimento gigantesco em relação ao contexto que os povos indígenas vivem. Era um momento, também, de a gente ganhar tempo na rádio, televisão, nos meios de comunicação; de poder ir pautando isso de forma geral. Foi estratégica a ida dela pra lá, por mais que nós soubéssemos da dificuldade de chegar (à presidência). A gente sabia que ela ia para marcar posição pra gente poder pautar a questão indigenista no país.
CONTINENTE Aqui em Pernambuco se tem construído alguma coisa nesse sentido?
MARCOS XUKURU Tem. Há vários momentos de discussão. A discussão que acontece em Pernambuco já deu um ensaio. A Apoinme (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo) está puxando essa discussão da necessidade de ter as nossas representatividades tanto no nível de estado quanto federal. Também estamos pensando em ocupar alguns espaços estratégicos de algumas cidades, se possível, porque se torna uma base eleitoral e tem condições de você pular um degrau. É um enfrentamento difícil, porque a tropa que vem já está acostumada nesse negócio. Tem dinheiro para gastar. Para quem é principiante… imagine um índio lançar candidatura nesse contexto. É muito difícil, mas temos, sim, discutido sobre essas possibilidades.
Caminhada que encerra a Assembleia, que mescla política e espiritualidade, parte do território xukuru e desce até o local onde Xikão foi assassinado, em Pesqueira
CHICO LUDERMIR, jornalista, escritor e artista visual, com mestrado em Sociologia.
ERIC GOMES, fotógrafo e videasta, com trabalhos autorais em movimentos sociais, manifestações e povos indígenas.