Se Oxum é aquela que ensina que com calma tudo se resolve, Nanci de Souza Silva, sua filha, é matéria viva desse aprendizado. Conhecida como Ebomi Cici, dispensa o título se está longe dos terreiros, quando deseja ser apenas a Vó Cici.
Ebomi Cici esteve, recentemente, em Olinda e contou suas histórias
para o público no Sebo Casa Azul. Foto: Mariana Souto/Divulgação
A primeira vez em que a encontrei era uma sexta-feira, dia de Oxalá, orixá de quem também é filha. Naquela noite, ela contaria histórias na calçada do Sebo Casa Azul, no sítio histórico de Olinda, entrando em cena vagarosa, mas pisando firme, com a ajuda de uma muleta de alumínio que fazia as vezes de bengala. Vestia branco e trazia no pescoço dois colares de contas azuis e brancas. Era seu segundo dia na cidade, onde ficaria até o domingo, entre vivências, passeios e visitas. Já estava com saudades de Salvador e, principalmente, de sua neta. Tinha vindo direto de São Paulo, onde participara da Virada Cultural. “Vocês me veem assim sorrindo, contando histórias, mas a minha responsabilidade é muito grande, minha filha. É que, quando eu estou com vocês, minha cabeça vai para outro mundo”, comentou no fim daquele dia, quando estávamos a sós.
Para quem a assiste, porém, a vó é colo inabalável e ensinamento com muita doçura. Cici é exatamente como eu a imaginava, humildade e sabedoria como dois lados de uma mesma moeda. Ao ouvir as gravações dos nossos encontros, fragmentos difíceis de alinhavar, me assusta – mas não surpreende – a diferença das nossas vozes: de um lado, o meu volume, a minha pressa, a minha assertividade; do outro, a sua economia, a sua pausa, a sua precisão. Sempre me considerei uma boa entrevistadora, mas, ao ouvir nossas trocas, chego a me achar um pouco rude. Cici não gosta de dar entrevistas, e a nossa não aconteceu, pois ela estava interessada em conhecer a cidade, em estar com as pessoas, em falar de sua tradição.
Diante daquela calçada, na sexta-feira, enquanto o suporte do microfone dava trabalho para ficar na posição devida, ela reclamou: “Esse bicho não me deixa à vontade, eu vim contar histórias como se estivesse com meus filhos, meus netos. Isso intimida”. “Quer segurar, vó?”, é a sugestão que lhe sopram. “Eu não, senão, como eu vou tocar?”, responde, enquanto uma de suas mãos sustenta seu roteiro de apresentação e a outra carrega um chocalho improvisado, feito de latinha de cerveja enrolada em papel-filme.
No dia em que havia combinado com Aura Gabriela, produtora das atividades de Cici pelo Brasil, para realizar a nossa entrevista, os planos da vó mudaram. Agendei o encontro no início da tarde, quando ela retornasse do II Encontro Nacional de Crianças de Axé, que acontecia em Paulista, no terreiro Ilê Axé Oxalá Talabi. No caminho, porém, Cici decidiu passar no Mercado de São José para comprar ervas e na sede do Homem da Meia-Noite, pois queria levar uma lembrança do calunga, cuja história lhe gerou grande encantamento. Chegou de volta ao sebo já bem perto do início da vivência que faria. Eu circulava por Olinda uma hora antes do nosso encontro e pensava no que ela dissera dias antes: “o tempo só é bom para quem sabe esperar”. Nossos momentos de conversa foram assim, quando acabavam as contações, enquanto esperava uma tapioca que haviam ido buscar no Alto da Sé, na carona que lhe dei até o Maracatu Nação Porto Rico, no Pina, onde narraria aventuras de Xangô.
Foto: Tacun Lecy/Divulgação
Aos 80 anos de idade, sua disposição para aprender e ensinar é muito sincera. “Quem se preocupa com esse negócio de descansar são vocês que são jovens, eu vou descansar quando morrer”, brincou, entre uma atividade e outra. Diante daqueles que param para lhe ouvir, não conta apenas as histórias, mas explica as línguas, a tradição, a música, tudo aquilo que conhece da matriz afro-brasileira. Os que querem auxiliar o seu trabalho precisam se contagiar da mesma humildade. “Você sabe o que é barravento?”, perguntou ao músico que a acompanhava, e, diante da tentativa do rapaz de reproduzir a batida, disse logo que não era aquilo. “E como é, vó? Me ensine…”. A mesma que observa e pergunta com uma curiosidade genuína, ensina sem disfarçar a satisfação da partilha: “O que eu tenho é para dividir com os outros, eu vou morrer, não vou levar. E, quando eu levar, ninguém mais vai saber”, esclarece, como uma guardiã.
No entanto, de todas as belezas que Cici apresenta e evoca, nada me fascina mais que a alegria dos seus movimentos. Suas histórias se encerram quase sempre com música e dança. Basta os toques iniciarem que a vó comunga os sons no próprio corpo. Ainda sentada na cadeira, é possível entrever sua forte relação com a dança no balanço do seu tronco e dos seus braços, em moveres que se espalham pelo espaço nos fazendo esquecer suas restrições. Esse é um elemento tão importante à tradição do terreiro, que a vó ignora a artrose e se levanta uma, duas, três, quatro vezes para mostrar diferentes coreografias dos orixás. As pernas bem-estendidas e o joelho que quase não flexiona evidenciam o esforço daquela senhora diante de nós, mas isso não se sobrepõe à graciosidade e à delicadeza da dança que ela nos oferece.
COMPROMISSO COM A TRADIÇÃO
Foram os problemas de joelho que levaram a mestra griô a se aposentar antes do esperado. À época, a pesquisadora Angela Elisabeth Lühning, atual diretora-secretária da Fundação Pierre Verger, promoveu a aproximação entre Cici e o famoso fotógrafo, a quem a vó se refere sempre como “meu pai Fatumbi”. Ela passou então a cuidar de Pierre Verger, quando este já estava velhinho, e permaneceu ao seu lado até a morte dele, em 1996. Ajudou o etnólogo a legendar cerca de 11 mil fotos do seu acervo e estudou muito, seguindo suas orientações.
Quando Verger chegou ao Brasil, em 1946, Cici era uma menina de sete anos e morava no Rio de Janeiro, cidade onde nasceu. Sua mudança para Salvador só aconteceu em 1971, quando tinha 33 anos. “Por que eu fui? Porque eu fui fazer santo. Eu tinha armado essa viagem há muitos anos, desde que eu era criança, que eu tinha um tio que vivia na Bahia e dizia que ia me levar”. Quando residia no Rio, já frequentava o candomblé, mas sua iniciação, de fato, se deu em Largo de Freitas. “Para se iniciar no candomblé, a gente vai por um motivo, uma grande necessidade. Eu fui por doença. Há também aqueles que vão por família, para a família poder melhorar em algum aspecto de confusão, de coisas embaraçadas.”
Cici foi responsável por legendar 11 mil fotografias do etnólogo
Pierre Verger (ao lado), de quem foi assistente. Foto: Divulgação
Apesar de contar com parentes na Bahia, Cici seguiu para Salvador sem a mãe ou os irmãos, numa época em que o deslocamento pelo país era mais custoso e pouco democrático. “Quando eu cheguei lá, fiquei 25 anos falando pelo telefone com a minha mãe, sem poder ir até o Rio. Eu saí, minha irmã era pequena; eu voltei, ela estava formada em Medicina, trabalhando. Depois de 25 anos, voltei ao Rio, mas, nesse intervalo, quando eu tinha 50 anos, minha mãe veio soprar um bolo comigo”, relembra. Hoje, no entanto, alguns sequer sabem que a vó não nasceu por ali, pois sua história com a Bahia e com seu pai Fatumbi são marcas fortes da sua caminhada.
Na Fundação Pierre Verger, ela se divide entre ajudar os pesquisadores que recorrem ao espaço, durante as manhãs, e trabalhar com crianças em situação de risco, durante a tarde. “A minha vida é entre a Fundação e a minha casa, onde eu só chego para dormir”. Em suas práticas, todo conhecimento é transmitido com cuidado e clareza. Cada erro, confusão ou esquecimento é um pedido de desculpa. Encontro uma nota no meu caderno: “Desculpa, erro técnico. Cadê minha ficha? Não são só as histórias, são muitas coisas na minha cabeça”. A responsabilidade de contar, cantar, transmitir o fio da memória dos seus antepassados é conduzida com esse zelo: esse gesto de se desculpar que não traduz constrangimento, mas o rigor com que vive a sua missão. Um rigor que é doçura, que é cuidado com a tradição e com seus ouvintes. Quando, diante daqueles que se reuniam na calçada, ela perguntou onde estavam as crianças, um a um, todos foram levantando as mãos. A griô sorriu: “Por isso que eu sou Vovó Cici, eu tenho netos de todas as cores, todas as raças, todos os tamanhos”.
Com esse trabalho de contação, ela tem viajado pelo mundo e levado a cultura afro-brasileira consigo. O lugar mais recente que conheceu fora do país, em 2018, foi Genebra, na Suíça. Alguns destinos são rememorados com mais ternura, como é o caso da República do Benin, na região ocidental da África, que visitou mais de duas décadas depois de a ter conhecido virtualmente a partir das fotos de Pierre Verger. Similar também é o seu carinho ao falar de Cuba, onde esteve há quatro anos e também se sentiu em casa: “Quando eu cheguei em Cuba, eu vi a Bahia falando espanhol. O mesmo tempero de pele, o mesmo jeito de sorrir. E o repertório afro-cubano, que é espetacular”. Cici também foi acolhida por culturas completamente distintas da sua, entrando e saindo de cada espaço com muito respeito: “Eu tanto fui recebida na mesquita quanto na sinagoga, então eu me sinto muito abençoada, porque meu pai Oxalá é o pai de todos”, recupera os lugares onde já se apresentou sem conflitos. Talvez, a chave para esse trânsito entre muitos mundos esteja justamente no modo como sua prática se coloca: “a gente não prega religiosidade afro-brasileira, minha filha, a gente conta histórias”.
Do mesmo modo que vive o reconhecimento da sua trajetória, a mestra também conhece de perto a intolerância enfrentada pelas tradições que defende, e, às vezes, não é preciso nem sair da própria rua para topar com ela. Certa vez, quando passava próximo à Fundação Pierre Verger, que fica no Engenho Velho de Brotas, em Salvador, toda vestida de branco, os filhos de uma vereadora recém-eleita, que tinha o apoio da Igreja Universal, encheram as mãos de barro e lançaram contra a griô, enquanto gritavam: Mulher da macumba! Mulher da macumba! Eram crianças com cerca de cinco e sete anos, acompanhados por uma babá que não esboçou reação. “Eu fui até a casa da avó deles, bati palma e disse assim: ‘Qual foi o momento que os meus netos desrespeitaram a senhora?’ ‘Nunca.’ ‘Pois é, olha aqui como está minha roupa’. Aí ela colocou os meninos para dentro”, conta Cici, que está sempre a mostrar pelo exemplo um modo diplomático de dissolver os conflitos.
Nas nossas conversas, existia uma oscilação da vó que me chamava atenção. Quando contava histórias de orixás, sua voz se expandia, se colocava no centro; mas, quando a questionava sobre sua vida pessoal, sua trajetória, ela falava muito baixinho, quase como quem me dizia que não gostava de fazer daquilo assunto de revista, com a discrição de quem sabe a raridade do seu percurso.
Ebomi Cici não conta apenas as histórias, mas explica as línguas, a tradição,
a música, tudo aquilo que conhece da matriz afro-brasileira. Foto: Mariana Souto/Divulgação
Cici tem o porte da simplicidade e ensina algo precioso em cada encontro, em cada palavra: “Cada dia que Deus me dá a felicidade de abrir os olhos e ver o mundo, eu agradeço”. Se há, porém, um assunto que balança o seu humor são os oportunismos e certos usos da sua tradição. Para ela, é importante que se entenda que nem tudo que se vive no terreiro se leva para os outros ambientes: “nem tudo que se canta lá, a gente pode cantar aqui”. Em uma passagem pelos Estados Unidos, foi convidada para assistir a uma peça e, em dado momento, durante a encenação, decidiu se retirar do teatro: “Um determinado ator fez uma dança dramática de Omolu que não se faz em público, naquele contexto. Cantou uma canção que eu só tinha ouvido em terreiro”, explica. Também não reagiu bem quando chegaram com fotos que registravam seus momentos de transe. É o mesmo caso da modulação da voz, que faz com que as histórias dos orixás sejam contadas em alto e bom som, e as histórias privadas ditas como quem passa às suas mãos um segredo. A vó, mais uma vez, ensina pelo gesto algo que já esquecemos: nem tudo nesta vida é dado ao público, nem tudo nesta vida é espetáculo.
GIANNI PAULA DE MELO, jornalista, mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e arteterapeuta em formação.