Entrevista

“O cárcere é a maior expressão do racismo”

Pesquisadora, atriz, advogada e militante Dina Alves fala sobre a simbiose mortal entre raça, gênero, classe e punição, marca definitiva sobre corpos femininos, cuja população encarcerada cresce

TEXTO Mateus Araújo

01 de Janeiro de 2019

Dina Alves

Dina Alves

Foto Jennifer Glass

[conteúdo na íntegra | ed. 217 | janeiro de 2019]

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Rosa Maria, Fernanda, Joana, Verônica, Elis e Luzia são nomes fictícios para histórias reais. As sete mulheres, presas em São Paulo, vivem condições semelhantes de tortura e sofrimento na Penitenciária Feminina de Santana, e seus relatos compõem a pesquisa intitulada Rés negras, juízes brancos, da advogada e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP Dina Alves.

O estudo, concluído em 2015 como dissertação de mestrado – que em breve deve ser tema de livro publicado por Alves –, é base do espetáculo Rés, da paulista Corpórea Companhia de Corpos. A montagem foi desenvolvida pelo grupo a partir da perspectiva de corpos femininos negros encarcerados (não só nas cadeias, mas numa sociedade machista e racista como a nossa) e, contemplada com patrocínio do programa Rumos Itaú, será ampliada em 2019 através de uma ocupação que, além de apresentações, realizará debates envolvendo questões como saúde, direito e educação.

Nascida em Ipiaú, interior da Bahia, e radicada em São Paulo, Dina Alves é hoje um dos principais nomes, no Brasil, que desenvolvem estudos sobre as condições degradantes nas quais vivem mulheres envolvidas em crimes. A análise feita por Alves é pautada por um olhar que leva em consideração a intersecção de gênero, raça e classe, uma vez que, segundo ela, essas mulheres nasceram sentenciadas por um estado excludente e opressor.

Os números ratificam a opinião da pesquisadora, e apontam para um problema ignorado historicamente no país, seja por governos do campo da direita ou da esquerda. De acordo com um estudo divulgado em novembro do ano passado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), até 2016 a população carcerária feminina era de 42.355 pessoas – 567% a mais em comparação com o ano 2000, e, se considerados dados atualizados até 2018, esse aumento chega a quase 700%. Os dados também apontam que 45% delas sequer foram julgadas. Além disso, entre essas presas, aponta o relatório Infopen Mulheres 2016, do Ministério da Justiça, 50% têm entre 18 e 29 anos e 62% são negras.

Para Dina Alves, há uma relação direta entre a criminalização de mulheres e o patriarcado. “Alguns debates têm mostrado que as mulheres, de modo geral, possuem uma vulnerabilidade específica, marcada por sua condição de gênero em uma sociedade estruturada a partir de desigualdades entre homens e mulheres”, conta. Isso se reflete, por exemplo, no alto índice de envolvimento de mulheres no tráfico como microtraficantes (aquelas que revendem, entregam ou guardam) – o que representa 62% das causas de detenção feminina, conforme o Ifopen Mulher 2016.

“Minha pesquisa teve início com a atuação no Movimento Negro, a partir de um esforço coletivo de lutas pelos direitos das mulheres negras assassinadas pela polícia”, lembra Dina Alves. “Assim, eu fiz uma interpretação da realidade de mulheres negras encarceradas a partir de um olhar que leva em consideração a minha experiência pessoal e de ativista: nasci no Nordeste e acompanhei minha mãe, merendeira e poetisa, nas manifestações contra a violência policial da Bahia, na década de 1980. Ser mulher e preta afetou decisivamente a forma como a pesquisa foi pensada e realizada.”

O trabalho como o de Dina Alves ganha novos contornos neste ano, que começa justamente com atenção redobrada para o sistema penitenciário brasileiro. Alvo recorrente do presidente Jair Bolsonaro, cujo discurso endossa punição e ódio contra a população prisional, o colapso já existe e um caos eminente se anuncia cada dia nas cadeias do país. “Se medidas como a redução da maioridade penal, o fim do indulto, das saídas temporárias, da visita íntima e da progressão de regime forem efetivamente implementadas, como vem sendo comentando, o que podemos esperar é o completo colapso do sistema prisional”, diz o ex-assessor jurídico da Pastoral Carcerária e supervisor do núcleo de atuação política do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Paulo César Malvezzi Filho.

Nesta entrevista, Dina Alves comenta a situação das prisões no Brasil, do encarceramento de mulheres e também das perspectivas (ou a falta delas) nas políticas com relação ao abolicionismo penal no Brasil.

CONTINENTE Dina, do pouco que se sabe sobre as políticas do presidente Jair Bolsonaro, a pauta da segurança pública é uma das mais faladas e carro-chefe desse novo governo de extrema direita. No caso do sistema prisional, Bolsonaro é taxativo: já disse em entrevista que a cadeia não é lugar para recuperar ninguém e que o desconforto de se viver nesse ambiente é uma escolha do próprio preso. O que podemos esperar para as pessoas que vivem encarceradas no Brasil, daqui em diante?
DINA ALVES É um retrocesso histórico no que diz respeito às garantias de Direitos Humanos, enfraquecimento das garantias do Direito Penal, Processual Penal e da Lei de Execução Penal, que garante diversos direitos à população carcerária. As proposições de Bolsonaro são repletas de inconsistências jurídicas. É flagrante sua defesa de uma política criminal fundada no acirramento do encarceramento, de um lado, e a retirada de direitos, de outro, como solução para diversos problemas sociais, produzidos e reproduzidos pelo Estado. A população presa, já violada historicamente de diversas formas – simbólica, material, psíquica e espiritual –, está num dos piores cenários da história. Obviamente que em outros governos as práticas desumanizadoras foram regras na produção do sofrimento. O que ocorre agora é que os posicionamentos polêmicos, ressentidos e raivosos contra sem-terra, indígenas, quilombolas, gays, lésbicas, pessoas trans, mulheres, defensores do meio ambiente e a população carcerária tiveram a adesão de uma camada da sociedade que necessitava dessa legitimação do discurso e encontrou ressonância nos pronunciamentos do novo presidente. Assim foi que mataram o capoeirista Mestre Moa, na Bahia, e a transexual Laysa Fortuna, em Sergipe, esfaqueados durante a campanha eleitoral, em atos motivados pelos discursos de ódio. Bolsonaro estimulou a imaginação de setores sociais e fez vigorar a ideia de que se pode agir com violência à revelia dos preceitos legais, e pior: que as pessoas precisavam se armar contra esses “inimigos”. A população carcerária, que já paga um preço altíssimo sendo punida por ser preta, pobre e favelada, terá que lidar com a imposição de mais sofrimento e, consequentemente, aumento das taxas de assassinatos, torturas, imposição de suicídios, com a superlotação, com maus-tratos e a redução da expectativa de vida. O que esperar num cenário de imposição do terrorismo do Estado, revestido sob a proteção das leis e com a anuência dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário? A população carcerária, refém de uma classe rica e racista, casta privilegiada da sociedade pós-colonial, não terá muitas oportunidades para reivindicar sua humanidade, quem dirá sua liberdade. Sem dúvidas, negros e negras que são alvos de um Direito Penal lombrosiano (teoria biologizante do crime), serão as maiores vítimas (já que compõem a maioria dessa população) e do aprofundamento da barbárie penal implantada nesse atual governo.


Espetáculo Rés, da paulista Corpórea Companhia de Corpos, inspira-se no estudo de Dina Alves. Foto: Divulgação

CONTINENTE O presidente pretende mexer em direitos dos presos e presas, como acabar com progressões de penas, com as saídas temporárias e com as visitas íntimas – esta última proposta foi reforçada pelo ministro da Justiça Sérgio Moro. Uma decisão como essa pode causar mais um novo caos e rebeliões nos presídios brasileiros?
DINA ALVES Sem dúvida. Desde o massacre do Carandiru, em 1992, até as rebeliões de Alcaçuz (no Rio Grande do Norte), em janeiro de 2017, muitas das motivações daquelas rebeliões foram, especialmente, reivindicações por condições humanas num espaço degradante, humilhante e cruel. O próprio STF, em setembro de 2015, reconheceu que a realidade prisional no Brasil faz parte de um “estado de coisas inconstitucional”. Ou seja, o próprio Estado reconheceu, publicamente, por sua mais alta corte, as violações sistemáticas de direitos humanos promovidas pelo Estado contra a população carcerária. Agora, as rebeliões e motins nos presídios não podem ser tratados como “falhas” institucionais ou conflitos entre facções criminosas. É necessário tratar dessas questões sob o ponto de vista das permanências da violência do Estado, que necessariamente implica em abordar questões estruturais como o modo de operar da máquina do Estado terrorista, por meio de uma engrenagem institucional permanentemente intacta desde antes do período ditatorial e que segue promovendo o genocídio de determinados grupos.

CONTINENTE Quando o presidente Jair Bolsonaro diz que ir para “a antessala do inferno que são os presídios brasileiros” é uma opção das pessoas, o que ele ignora com essa opinião?
DINA ALVES É uma declaração imbuída de racismo porque pelo menos 70% dos presos e presas são negros, jogados nas cadeias e penitenciárias, desde o dia seguinte da abolição não conclusa. É importante fazermos esse exercício de voltar na história para entender questões atuais. As legislações criadas após a abolição da escravatura não acolheram a população recém-liberta. Ao contrário disso, o Direito Criminal perseguiu práticas, crenças, ideologias e corpos da população negra que lá estava desempregada, sem acesso a nenhum direito e nenhum lugar. Várias formas de punições foram reatualizadas e postas em prática. Então, podemos dizer que o sistema prisional atual é a expressão máxima do cativeiro. Sabemos que mais de 40% da população presa são inocentes, de acordo com o princípio da presunção da inocência, ou seja, não têm condenação e estão presos. O que motiva então essas prisões? Há flagrantes casos de seletividade penal entre prisão de pobres negros e a de jovens ricos brancos. Cito aqui o caso do Rafael Braga, preso com um Pinho Sol, e Breno Borges, preso com armas e grandes quantidades de drogas. Breno (branco, filho da desembargadora do TRE de Mato Grosso do Sul, Tânia Garcia Freitas Borges) teve o privilégio da liberdade; Rafael (negro) foi condenado a 11 anos de prisão. O que motivaria prisões de maioria negra? São vítimas da guerra às drogas, da seletividade penal, não tiveram um julgamento imparcial – porque sequer tiveram direito à ampla defesa e ao contraditório. Na maioria dos casos, tiveram policiais militares ou civis como únicas testemunhas. Então, não é opção de ninguém ser confinado num lugar degradante, cruel e humilhante. (…) Quando Bolsonaro faz essa infeliz afirmação, ele ignora, por exemplo, a negligência à saúde dos presos, tanto física quanto mental. O sistema prisional brasileiro tem 28 vezes mais incidência de casos de tuberculose que a população em geral, devido à superlotação e à falta de ventilação e luz. Quando a gente situa essa realidade à saúde das mulheres presas, a situação é ainda mais alarmante: falta de ginecologistas, absorventes e acompanhamento para as gestantes nas unidades; é um verdadeiro abandono proposital. As pessoas que são confinadas em hospitais de custódia são internadas indefinidamente, à revelia da lei. Isso é tortura. É um genocídio contra um determinado grupo social, vítima dessa calamidade pública.

CONTINENTE O título da sua pesquisa de mestrado, Rés negras, juízes brancos, aponta claramente para uma análise interseccionada por questões de gênero e raça. Mas a sua trajetória de vida – mulher negra, nordestina radicada em São Paulo, ex-empregada doméstica, ex-balconista de supermercado e bolsista na graduação em Direito numa universidade particular – também está impregnada pelos desdobramentos de um patriarcado heterossexual, branco e sudestino. Como as suas próprias subjetividades impulsionam o trabalho de militante, advogada, atriz e pesquisadora?
DINA ALVES Nas academias, a presença de investigadores oriundos de grupos historicamente discriminados tem papel fundamental no sentido de descolonizar o espaço de produção de conhecimento e, a partir de nossas experiências, apresentar novos insights e novas maneiras de olhar e impactar a produção de conhecimento e criar áreas de luta. Para muitos de nós, o trabalho de campo é, na verdade, trabalho de casa. Nos últimos 20 anos, tenho trabalhado junto a organizações populares e ao Movimento Negro, e minhas práxis nesses espaços informam a leitura dos processos de subordinação das mulheres negras, daí essa pesquisa-denúncia foi pensada em sintonia e em diálogo com essas organizações, da denúncia dos grupos de extermínio, formados por policiais militares, na luta pelas ações afirmativas nas universidades públicas e nas discussões sobre abolicionismo penal e políticas desencarceradoras. Minha experiência de mulher negra e o trânsito nesses espaços políticos me ajudaram e me ajudam a criar sensibilidade política, novo olhar sobre questões que um investigador branco não conseguiria enxergar.



CONTINENTE Em alguns momentos da dissertação, você pontua com emoção os relatos das suas 10 entrevistadas, todas elas negras, moradoras da periferia e presas por tráfico de drogas. Você se percebe nelas, de alguma forma?
DINA ALVES Minha preocupação era não reproduzir uma certa “pornografia da violência”, ao ser espectadora da dor, do sofrimento histórico, como faz a academia eurocêntrica conservadora. (…) Entrevistava, ouvia suas histórias de dores, opressões e violências. Por muitas vezes, só praticava a escuta e anotava tudo. Fora dos muros, sentada no paralelepípedo, em frente à penitenciária, eu anotava suas histórias. Muitas vezes entrava muda e saía calada do presídio. Recebi muitos bilhetes com pedidos de ajuda. Procurei casas de acolhimentos para saber notícias de seus filhos, visitei familiares distantes para levar notícias a mães doentes, impossibilitadas de passar pela revista vexatória, e acompanhei familiares ao Fórum da Barra Funda (bairro da Zona Oeste de São Paulo) para acessar informações nos casos criminais negligenciados. Assim, eu me sentia parte de algumas histórias. E como não ser parte da história quando também estamos interligadas às histórias de dores e sofrimentos históricos, que insistem em se manter vivas com a população que foi e ainda é dizimada? Não fui parte das histórias carcerárias das mulheres com as quais estava envolvida nessa pesquisa-denúncia, mas faço parte enquanto mulher negra do grupo maior da história não contada, escondida, negada e silenciada por séculos. Nisso, eu me reconhecia, não apenas pela cor das nossas peles, em que pesem os privilégios cromáticos que herdo em meus tons mais claros e que caracterizam a hierarquia de racialização no Brasil, mas pela trajetória maior de sofrimentos, herdados do escombro escravocrata que insistem em não ter fim.

CONTINENTE Em 2014, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública levantou dados do perfil de profissionais que integram as políticas no Brasil. Os homens representam 88%; sendo 7,38% pretos e 42,85% pardos (os dois grupos são classificados pelo IGBE como negro). Embora seu estudo tenha foco nas sentenças de juízes brancos sobre mulheres negras, o que você acha dessa relação entre o processo de penalização dos corpos femininos e a força masculina da polícia negra sobre eles?
DINA ALVES Sem dúvida os profissionais negros que compõem a corporação policial estão nas bases da PM, enquanto o alto escalão tem uma distribuição completamente branca. E se a gente considerar o panorama nacional das agências de segurança pública do país – chamando a atenção para o fato de que tanto a polícia militar quanto os bombeiros, os guardas municipais e os agentes do sistema penitenciário contêm no seu quadro um expressivo número de policiais negros –, percebe como está hierarquizada racialmente a corporação. Os policiais negros que estão na base da pirâmide da organização e na divisão moral do trabalho são os que mais morrem em serviço e fora dele. É um ritual da violência e o próprio sistema de segurança pública não protege “seus homens”. Se a maioria que morre nas mãos da polícia é de jovens negros, a regra racial das mortes se aplica aos policiais em serviço ou fora dele. Por isso que a análise do racismo institucional não passa por uma discussão simplista sobre desvio de conduta do profissional. Essa é uma estratégia perversa e racista da instituição e de pesquisadores conservadores racistas sobre o tema de segurança pública que têm se utilizado para justificar 60 mil mortes anuais, autos de resistências e torturas em prisões.

CONTINENTE Na sua pesquisa, você também tem um olhar atento para as pessoas que estão em volta dessas mulheres e dos homens presos – filhos, mães, esposas, maridos. Você os considera também encarcerados?
DINA ALVES Precisamos localizar essa outra população. Minha tese, que estou elaborando nesse momento, fala das mulheres negras que “puxam cadeia junto”. Essa frase foi localizada por elas ao se referirem às dificuldades encontradas pelos familiares nas trajetórias entre a periferia a cadeia. (…) Precisamos urgentemente reconhecer e denunciar que o sistema prisional estende a punição às crianças, uma vez que os direitos parentais são suspensos; a mulheres negras, que assumem a responsabilidade pela renda familiar; e a toda a comunidade, que tem seus membros associados ao crime por causa da cor e da origem territorial de quem está preso. Embora as mulheres negras sejam, entre a população feminina, o principal grupo de encarcerados no país, precisamos ampliar as análises de suas experiências com o sistema de justiça para além do universo prisional. Precisamos entender, por exemplo, como as mulheres negras negociam, vivem e respondem as interpelações urbanas e dinâmicas de poder nas trajetórias carcerárias para visitar seus companheiros e companheiras, como vivem na “cidade-prisão”, ou, ainda, como raça, gênero e outros marcadores sociais operam na dinâmica da criminalização delas como “mulher de preso”.

CONTINENTE Então, para você, há uma “feminização da pobreza” no Brasil – que implica numa relação senzala-favela-prisão?
DINA ALVES Sim. O resultado da minha pesquisa apontou que a maioria das mulheres presas estava desempregada, era oriunda de bairros empobrecidos, eram babás, faxineiras, diaristas ou expulsas do mercado neoliberal de consumo e exerciam a função de “mula” na ponta do microtráfico. Isso significa dizer que essa relação senzala-favela-prisão que aponto são lugares demarcados historicamente em que as mulheres negras são confinadas. Ontem escravas, hoje presidiárias, ocupantes das favelas e das cozinhas domésticas das novas casas-grandes. (…) As estatísticas oficiais da punição em São Paulo dão conta de confirmar essa dinâmica contra mulheres negras e pobres. Atualmente, são 15.104 mulheres presas. Quando a gente traça o perfil delas, é possível visualizar uma linha de cor e de gênero: as negras compõem 67% do total; as jovens entre 18 e 29 anos representam 50%; as mulheres que não concluíram o ensino fundamental, 50%; e as que foram condenadas com penas de até oito anos de reclusão compõem o universo de 63%. Embora os homens representem mais de 90% da população prisional, as mulheres negras são, proporcionalmente, o grupo que mais cresce. Isso demonstra uma simbiose mortal entre raça, pobreza e punição – e suas consequências para as mulheres negras têm sido ainda mais desastrosas. Se a maioria de presas é negra, são elas as pobres e faveladas.



CONTINENTE E como esse machismo está diretamente ligado ao aumento do encarceramento feminino brasileiro?
DINA ALVES Numa sociedade organizada em hierarquias de classe, raça, gênero, sexualidade, o patriarcado se revela como expressão de maior poder. E é na justiça criminal que essas categorias se manifestam explicitamente. Ou seja, ser mulher, negra, favelada, trans, lésbica, gorda, demarca um lugar de altíssima vulnerabilidade nesse processo de distribuição de vida e morte. Essas mulheres que compõem as taxas de aprisionamento foram presas com pouquíssimas drogas ou cometeram crimes relativos ao patrimônio. Entre as mulheres que entrevistei na minha pesquisa, uma delas foi presa quando estava com 18 gramas de maconha, outra tinha três pedras de crack e uma outra foi presa com um Prestobarba e R$ 20. Todas elas foram condenadas com pena máxima, não tiveram o benefício da presunção da inocência; mesmo com filhos menores dependentes delas, não tiveram o mesmo direito que a Adriana Ancelmo (esposa do ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, foi presa em 2016 por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas recebeu o direito de prisão domiciliar por ter dois filhos, um deles com menos de 12 anos). (…) Então, um exercício importante que necessitamos fazer enquanto ativistas dos direitos humanos é tentar entender esse “lugar” paradigmático que essas mulheres ocupam no sistema penal e o lugar dos juízes brancos, homens e ricos, nesse lugar do sistema patriarcal. Com essa preocupação, eu não quero argumentar que as mulheres negras sejam as únicas vítimas do encarceramento, mas apresentar uma nova perspectiva que considere a prisão como espaço negro, uma zona do não ser, como expressão da banalidade do poder e de soberania sobre os corpos dessas mulheres, nessas taxas de aprisionamento dos últimos 18 anos.

CONTINENTE No ano passado, entre as principais candidaturas à presidência da República, havia duas mulheres no pleito e suas propostas sobre o sistema penitenciário tergiversavam das questões de raça e gênero nesse contexto. No caso de Marina Silva (Rede), por exemplo, há um dado bem relevante: ela é do Norte do Brasil, onde, no início de 2017, houve uma série de rebeliões em penitenciárias superlotadas – na época, Marina chegou a comentar a situação como reflexo do abandono do sistema. Como candidata, ela defendeu a nacionalização do debate carcerário. O que isso implicaria, na sua opinião
DINA ALVES O debate sobre encarceramento é urgente e em todas as frentes de lutas. Seja nas ruas, seja nos partidos políticos, seja nos espaços privados, nas universidades, movimentos feministas e especialmente no feminismo negro. O interesse em levantar o debate por parte da Marina Silva tem fundo meramente eleitoreiro, uma vez que essa pauta nunca foi prioridade dela. Em ano de eleições, a ganância aumenta atrás dos votos, tão necessários para a manutenção do mito da democracia racial no nosso país. Lamentavelmente, após as eleições, as taxas de aprisionamento aumentaram e as violações de direitos humanos também. Onde estão os debatedores do sistema prisional? Nem Manuela, nem Marina, nem Ciro, nem Haddad. São todos populistas atrás de votos para pôr em prática o projeto de acirramento do Estado penal.

CONTINENTE Já com relação às propostas de Manuela D’Ávila (em um primeiro momento, pré-candidata pelo PCdoB, antes de se tornar vice na chapa de Fernando Haddad, do PT), você fez uma carta aberta pontuando 10 críticas ao programa de segurança lançado por ela. O que você considera a maior incoerência dessas propostas: o “fetiche” pela criação de novas penitenciárias – termo usado por você no texto – ou o reforço na militarização da polícia?
DINA ALVES Quando fiz a carta estava bastante incomodada com o vídeo lançado pelo partido. A falsa preocupação da Manuela D’Avila sobre a garantia da segurança pública como direito constitucional a “todos os brasileiros” foi plataforma, com objetivo eleitoreiro, enganador, populista, atrás de votos da classe média, dos milicos civis e militares e das elites patrimonialistas – todos focados num interesse comum: a proteção da propriedade privada, dos lucros com o superencarceramento, com a letalidade policial e a manutenção do racismo. A esquerda que não adere à pauta pelo desencarceramento é incoerente consigo mesma. Se defendem a vida, os direitos humanos, os direitos dos animais, das florestas, rios e a biodiversidade, por que mantêm enclausuradas pessoas oriundas de um determinado grupo social? Aí está o fetiche da prisão para eles, ou seja, é a representação simbólica do cativeiro, numa sociedade atrasada, colonial, que reproduz teorias e práticas coloniais de um regime de poder que naturaliza o território da prisão como lugar demarcado para os pretos, pobres, favelados. Minha carta aberta a Manuela teve principalmente a intenção de problematizar o cárcere e a esquerda de forma geral. Foi dizer: “Olha, esquerda branca, vocês não se preocupam com o desencarceramento porque as prisões são navios negreiros e vocês são racistas”. Ângela Davis, que tem se debruçado a estudar e vivenciou a experiência prisional, diz que é “praticamente impossível evitar consumir imagens da prisão”.

CONTINENTE Há pesquisadores que consideram o aumento das prisões como soluções punitivas de um Estado neoliberal, uma vez que há a diminuição do Estado social. Como explicar, no entanto, a decisão do presidente norte-americano Donald Trump de apoiar a reforma abolicionista nos EUA, reduzindo penas e investindo em ações que evitem a reincidência de prisões?
DINA ALVES Os EUA, palco do grande encarceramento, são também o lugar onde foi forjada a resistência antiprisional e antipolicial. A Califórnia, como um dos estados que lideravam os números de encarceramento, adotou políticas de desencarceramento e diminuiu sua população. Obviamente que essas práticas estão ligadas à pressão popular dos movimentos sociais. Muitos países ditos “democráticos” possuem políticas de desencarceramento, seja por pressão dos movimentos antiprisionais, seja por determinações da ONU e convenções sobre violações de direitos humanos. O Brasil caminha na contramão e aposta em políticas encarceradoras – como construções de presídios, que resultou recentemente em mais de 700 mil pessoas presas, alcançando o ranking de terceiro país do mundo em números de encarceramento. É um sistema fechado e macabro em que só entram pessoas. Ninguém sai, a não ser que seja no caixão. A experiência do movimento antiprisional da Califórnia deve inspirar a busca por uma nova posição diante do triste quadro que vivemos.


Foto: Mario Tama/AFP

CONTINENTE É contraditório, então, que uma ação como essa de reforma abolicionista não foi posta em prática no Brasil durante os governos dos petistas Lula e Dilma Rousseff, de partido de esquerda.
DINA ALVES Deveria ser prioridade num governo de esquerda, populista e dito “democrático”. Mas não foi. E é por isso que a industrialização da punição não pode ser explicada apenas pela incapacidade do Estado em oferecer respostas aos problemas sociais. Podemos dizer, sim, que foi um governo contraditório, por representar a esperança de muitas pessoas pobres, negras e moradoras das favelas. (…) Na verdade, paralelamente aos resultados dos programas sociais do PT, o encarceramento em massa subiu a números assustadores. (…) A agenda política do governo do PT não estava vinculada a uma política de desencarceramento, ao contrário, implantaram as UPPs no Rio de Janeiro, que vitimizaram milhares de jovens pobres, negros, mulheres negras, sobretudo mães durante a gestão. (…) O governo Haddad, em São Paulo, foi revelador para percebermos a política higienista com pessoas em situação de rua. Os jovens negros não pararam de morrer em São Paulo; muitas mães estavam fazendo plantões na porta da Secretaria de Direitos Humanos na gestão PT e foram tratadas naquele jogo de empurra para a Corregedoria. Para dar um exemplo dessa máquina genocida em ação no governo do PT, podemos lembrar a ação do governo da Bahia sobre o massacre de Cabula (chacina, na Bahia, na qual nove policias militares mataram 12 pessoas, em crime que, segundo o Ministério Público, foi planejado como vingança). É verdade que o PT foi o único governo que deu acesso, através do desenvolvimento de políticas públicas, às classes sociais que sempre foram esquecidas e que representam a vergonha das elites brancas atrasadas, mas, se, de um lado, ofereceu um mínimo de garantias de direitos, de outro, sorrateiramente, ampliou o estado penal terrorista. Uma agenda política comprometida com a vida plena deveria prever a superação do encarceramento em massa, do machismo, do patriarcalismo, da LGBTfobia e priorizar a luta antipunitivista, já que é o cárcere a maior expressão do racismo estrutural.

CONTINENTE Por falar em Lula, a defesa dele tem argumentado reiteradamente que a sua condenação é uma prisão política – um termo já utilizado por abolicionistas penais para se referirem ao encarceramento como um todo. Você acha que esses holofotes para o caso do ex-presidente e o debate sobre politização do judiciário brasileiro favorecem também as pautas do desencarceramento no Brasil?
DINA ALVES O debate em torno da prisão do Lula não foi capaz de jogar luz para o debate mais amplo sobre a geografia prisional e tudo o que compõe esse território. Impressiona a forma como as pessoas se mobilizaram para gritar “Lula Livre”, mas não foram as mesmas que fortaleceram a campanha “Libertem Rafael Braga” ou “Liberdade para Babiy Querino” (modelo presa em São Paulo acusada de assalto, mas sem provas; uma testemunha afirmou que entre o grupo havia uma mulher “parda, com cabelos encaracolados”). Parece que há uma parede de vidro entre um pedido de liberdade e outro. As pautas deveriam ser as mesmas: Lula livre e mais 40% dos presos provisórios, que são torturados e têm negados os direitos elementares como tomar banho, alimentar-se, ter medicação adequada para dor de dentes e tuberculose, por exemplo. A prisão de Lula foi emblemática para demonstrar de forma ampliada a setores da esquerda as violações legais, a seletividade penal, a politização do poder Judiciário e a criminalização de determinados grupos sociais.

CONTINENTE Outra discussão atual diz respeito às questões femininas – sobretudo no tocante ao empoderamento da mulher negra – que têm vindo no bojo de reivindicação do lugar de fala. Mas você acha que a mulher negra encarcerada tem sido contemplada nessas reflexões?
DINA ALVES Tenho acompanhando esse debate e tenho um pouco de dificuldade de entender o porquê de as pessoas estarem distorcendo pensamentos de tantas mulheres negras que fizeram história no feminismo negro. Por que silenciaram outras? Ângela Davis tem sido muito debatida, mas lamentavelmente suprimiram toda a discussão importantíssima que ela faz nas suas obras sobre racismo e sistema capitalista. Eu me pergunto: Que lugar é esse de que essas novas feministas brasileiras estão falando? O que as motivou a esconder e suprimir um debate tão caro para nós como é o racismo vinculado ao debate do capitalismo? O debate do lugar de fala poderia ser uma ferramenta política para a gente avançar na luta, mas não está sendo feito assim. Ao contrário. Considero algumas análises um desserviço para o feminismo negro no Brasil.

CONTINENTE No que isso implica?
DINA ALVES O debate está perdendo uma valiosa oportunidade de considerar que a condição feminina negra oferece possibilidades não apenas para diagnosticar as especificidades da mulher negra, mas, principalmente, permite-nos desenvolver uma metodologia de análise que considere as interfaces das categorias na produção de regimes de poder e na busca de alternativas de resistência radicais – que passa por problematizar radicalmente o sistema capitalista racial e o afastamento crítico do Estado genocida.

MATEUS ARAÚJO, jornalista.

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