Artigo

Aquém (e além) do ressentimento

TEXTO BÁRBARA BURIL
ILUSTRAÇÃO LUÍSA VASCONCELO

01 de Dezembro de 2018

Ilustração Luísa Vasconcelos

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 216 | dezembro de 2018]



"O que constitui hoje nossa aversão ao ‘homem’?
Pois nós sofremos do homem, não há dúvida."
Friedrich Nietzsche, em Genealogia da moral

"Gente quer comer
Gente quer ser feliz
Gente quer respirar ar pelo nariz
Não, meu nego, não traia nunca
Essa força não
Essa força que mora em seu coração."
Caetano Veloso, em Gente

Foi 2018 o ano dos ressentidos no Brasil. Ao contrário do que poderíamos imaginar, a ascensão dos movimentos progressistas nos últimos anos não levou necessariamente a uma maior consciência humanitária. Pelo contrário, o avanço dos direitos na democracia brasileira, cujo caráter mais particular é o de se tratar de um constante work in progress cheio de lutas e negociações, levou justamente à emergência de uma força social adormecida, mas que conseguiu articular as suas demandas na figura do presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro. O choque de 2018 foi perceber não só que o progresso não é mesmo um movimento necessário da história, como também que ele ainda é comumente pensado segundo a ideia de progresso de destrezas e conhecimentos. Como disse o filósofo Theodor Adorno no ensaio Progresso, publicado em 1969, as pessoas ainda confundem o progresso de destrezas e de conhecimentos com o progresso de humanidade, enquanto, para ele, não é absolutamente possível pensar a ideia de progresso sem a ideia de humanidade. Não há progresso social sem progresso humanitário, portanto.

Assim, de maneira mais clara, foi em 2018 que vimos sair das profundezas de um passado ditatorial, supostamente superado, uma moção afetiva que se sentiu livre para atacar os grupos sociais que mais se fortaleceram nos últimos anos, como as mulheres, os LGBT+, os negros, os deficientes físicos e os intelectuais. O fato de que o progressismo no Brasil levou, ao contrário do que imaginaríamos, a uma forte regressão social (pelo menos se pensarmos aqui, tal como Adorno, que o progresso de uma sociedade só pode ser pensado como progresso humanitário) aponta para uma questão fundamental: a ascensão do fascismo no Brasil se nutriu de um certo sentimento de ressentimento causado pelo avanço das pautas progressistas. Os bolsonaristas são, no fundo, seres ressentidos.

Essa tese não é minha. A intelectual norte-americana Wendy Brown, autora do livro Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution (em tradução livre para o português, Desfazendo o demos: a discreta revolução do neoliberalismo), tem publicado uma série de artigos dedicados a refletir sobre como forças políticas autoritárias, como os supremacistas brancos e o trumpismo, ganharam força nos Estados Unidos. Primeiramente, Brown nos oferece uma explicação lógica para esses fenômenos, que é a seguinte: a razão neoliberal teria aberto caminho para o surgimento de formas políticas antidemocráticas, porque o neoliberalismo (e aqui precisamos entendê-lo como razão que governa os mais diversos âmbitos da vida social, à la Michel Foucault, e não apenas como política econômica) teria enfraquecido as linguagens e as práticas de uma cultura democrática. “Para Friedman, a ameaça dupla da política para a liberdade reside em sua inerente concentração de poder (que o mercado dispersa) e em seu instrumento fundamental de coerção, pela regra ou pela ordem (enquanto os mercados apresentam a escolha)”, escreve Wendy Brown no artigo Freedom and the war on the “social” in twenty-first century authoritarian politics (em tradução livre para o português, Liberdade e a guerra contra o “social” na política autoritária do século XXI). Aqui, a intelectual refere-se a um dos mais conhecidos defensores do neoliberalismo, o economista norte-americano Milton Friedman, que, a despeito de seu reconhecimento entre os defensores do neoliberalismo, desenvolveu argumentos simplistas e enviesados para sustentar o seu projeto de economia e de sociedade. Um pouco mais sofisticado, o economista e filósofo austríaco Friedrich Hayek também via a vida política como uma ameaça para as liberdades individuais que só a competição econômica poderia garantir.



Trata-se da explicação lógica. A razão neoliberal possibilitou o surgimento do autoritarismo justamente porque a política passou a ser vista de modo negativo: ora como forma de concentração de poder, ora como instrumento de coerção. Só o mercado poderia desconcentrar o poder e possibilitar a escolha. A questão aqui não é que o neoliberalismo, mesmo enquanto razão, passou a defender abertamente o autoritarismo. O ponto é que, com a expansão da razão neoliberal para diversos domínios da atividade humana, ocorreu uma série de inversões dos significados tradicionais de democracia.

Como mostra Brown no artigo Defending society (em livre tradução para o português, Defendendo a sociedade), o que estava em questão na antiga Atenas não era a liberdade de expressão (free speech), mas a igualdade de expressão (isegoria), ou seja o direito de cada cidadão ser ouvido em assembleias dedicadas a políticas públicas. A liberdade também não significava ser livre da interferência estatal, como prevê o ideal neoliberal de liberdade negativa, mas ser igual diante de leis do Estado (isonomia). A democracia ateniense também se nutria de um outro pilar da igualdade política: a igualdade de que os votos tivessem pesos iguais (isopoliteia), pelo menos entre os que votavam. Sob o peso do anacronismo, não devemos tomar a democracia ateniense como modelo normativo para as nossas democracias contemporâneas, mas o que Brown nos mostra é que justamente alguns princípios democráticos básicos precisam ser trazidos novamente à baila para que a política volte a ser vista como modo de combater o autoritarismo, construir uma democracia e assegurar a isegoria, a isonomia e a isopoliteia possíveis.

No entanto, há uma outra explicação para o autoritarismo trumpista e também, ao que me parece, para o movimento que se formou em torno de Jair Bolsonaro no Brasil. Trata-se de uma explicação afetiva. Segundo nos mostra Wendy Brown em sua análise da sociedade norte-americana, a questão aqui é que não exatamente a razão neoliberal, mas as políticas neoliberais, com o seu desmantelamento da segurança de trabalho, das provisões de aposentadoria e da garantia pública de educação e outros bens sociais, levaram muitos trabalhadores a estabelecerem uma conexão entre o declínio do papel do estado-nação, os seus próprios declínios econômicos e o declínio da supremacia branca masculina.

Ou seja, nos Estados Unidos, as políticas neoliberais realmente causaram um declínio econômico dos homens brancos provedores (white male providers), que também já sofriam com o fim de uma era na qual ser um male provider significava ter uma certa garantia de status. No Brasil, o cenário talvez seja um pouco diferente, porque as políticas neoliberais ainda não avançaram como nos Estados Unidos, então possivelmente aqui a perda de privilégios sentida por homens brancos esteja mais vinculada a uma perda de status social do que propriamente de poder econômico.

“Quem roubou o meu status?”, surge a pergunta que move afetos. O que Brown nos mostra é que a misoginia, o racismo, a islamofobia e o vigilantismo nos Estados Unidos são formados e alimentados pelo sentimento de que se teve um poder lesado. É o momento da vingança contra a “correção política”, a “justiça social”, a democracia social e até contra a inclusão formal e a igualdade. Quando alguns sujeitos percebem que seus status perderam o significado, surge a vontade de retaliação.

As reflexões de Friedrich Nietzsche, considerado um pensador obscuro por muitos filósofos, parecem fazer ainda mais sentido em épocas obscuras como a nossa. O filósofo alemão, falecido no ano de 1900, já fazia considerações sobre como o sofrimento de humilhação pode se transformar em uma condenação contra o objeto que ele considera responsável pelo próprio sofrimento. O bullying e a belicosidade, por exemplo, seriam modos ressentidos de lidar com um sofrimento anterior porque eles justamente precisam se voltar para um objeto considerado responsável por esses sofrimentos. Contra a vontade de destruição, Nietzsche propõe modos não ressentidos de lidar com essas dores e eles passariam pela autossuperação, pela busca por uma reinvenção de si mesmo, pelo surgimento de uma moral nobre marcada por um “sim” criador. É preciso contornar a dor, mas não vale ser pela via da destruição de quem nada tem a ver com ela.

***

Encontramo-nos, então, no Brasil na segunda década do século XXI, com a ascensão das “energias ressentidas” mencionadas por Nietzsche. Elas direcionam um ataque belicoso àquelas fatias sociais consideradas “minorias”, embora seja importante frisar que esses grupos sociais constituem exatamente a maioria social, quantitativamente. “São eles, são eles os ladrões!”, parecem nos dizer. O problema é que nem eles sabem dizer exatamente o que deles foi roubado, porque o que as mulheres querem não é que os homens sejam violentados, mas que elas não sejam atacadas. O que os homossexuais desejam não é o fim do amor heterossexual, mas o respeito e o reconhecimento das uniões não heterossexuais.

Nesse sentido, o que se busca é basicamente garantir direitos individuais, e não destituir direitos já assegurados. Do ponto de vista racional, ninguém roubou nada de ninguém. Mais profundamente, o incômodo dos bolsonaristas não tem explicação lógica, tampouco racional. Por mais que não haja ameaça, paira entre eles uma ameaça real. Eles já perderam algo – e precisam mover energias, ainda que ressentidas, para conseguirem reconquistar o território perdido. A questão é que, por mais que eles desejem voltar para trás, o movimento terá que acontecer pela força. O status que eles podem conseguir agora é pela via do medo, não mais pela via da concessão. Só há regressão até certo ponto, portanto.

No modo ressentido de lidar com as perdas, esse grupo de eleitores apela para uma série de atos irracionais, porque o ressentimento é per se irracional. Como já descrevia Nietzsche, em uma era niilista, a razão e a verdade perdem o seu valor. Nos Estados Unidos, segundo caracteriza Wendy Brown, o niilismo se expressa, por exemplo, na indiferença de Trump à verdade e à consistência.



No Brasil, a situação é semelhante. A campanha de Jair Bolsonaro, que aconteceu majoritariamente no WhatsApp, produziu uma série de fake news e conteúdos falsos para ganhar popularidade. O que não estava mesmo em jogo nas suas escolhas era o enunciado, mas a enunciação. Não era o conteúdo, mas a performance. Não era o dito, mas a energia violenta (e ressentida) do não dito. Por isso, não foi (e ainda não é) possível debater com um “bolsominion”. Como escreveu Nietzsche em A vontade de poder, “nossa incapacidade de reconhecer a verdade é a consequência de nossa perversão, de nossa decadência moral”. Há uma decadência moral e uma perversão na incapacidade da extrema-direita brasileira de reconhecer a verdade, porque o que está em jogo aqui é a vingança. É o momento de, finalmente, “destruir quem me destruiu”. É a hora de metralhar a “petralhada” na ponta da praia, como disse o presidente eleito do Brasil. Para quem ainda não sabe, “ponta da praia” é uma expressão usada por militares para se referirem ao lugar onde presos políticos eram mortos sob tortura na base militar da Marinha, na Restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro. A irracionalidade sai como suor pelos poros do tecido social.

Antes da declaração odiosa do presidente eleito, dois homens que não acreditam em nada, nem neles mesmos, precisam quebrar uma placa feita em homenagem a Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro. Eles se sentem livres para destruir. O resultado do ressentimento é a formulação de que a liberdade serve para fazermos o que quisermos, sem nos preocuparmos com os efeitos dos nossos atos. É a liberdade de fazer o que se deseja, a nosso bel-prazer, pelo simples prazer de assim fazê-lo. “Às vezes, essa liberdade é até festiva, manifesta nos prazeres da provocação (…), de humilhar as pessoas, de fazê-las sofrer, de dançar sobre a fogueira onde as pessoas estão sofrendo”, escreve Wendy Brown, no citado artigo Freedom and the war on the “social” in twenty-first century authoritarian politics. É dessa maneira que esses eleitores se sentem livres: livres para enfiar o alfinete nos olhos das normas aceitas, livres para desrespeitarem o luto, livres para serem felizes e animados nas suas reações vingativas contra quem eles consideram culpados por sua completa irrelevância. Livres para destruir e para festejar sobre o fogo que queima o corpo de um outro.“É a liberdade do ‘eu quero porque eu posso, e eu posso porque eu não sou nada, eu não acredito em nada e os mundos se transformaram em nada’, escreve a cientista política no mesmo texto.

A nossa situação é realmente dramática, porque o problema é muito profundo. Como teceu Nietzsche em seu diagnóstico, é justamente em épocas niilistas que o mal aparece como cheio de sentido. No niilismo, não é possível encontrar facilmente um fim, uma teleologia normalmente dada por uma autoridade divina. Depois que se deixou de acreditar em uma autoridade capaz de ordenar fins e tarefas, buscam-se novas formas de autoridade, hoje deslocada para uma crença na moral como organizadora de um caos social. É preciso limpar, ordenar, é preciso criar uma teleologia, consertar as famílias, arranjar as disfunções. “Alguém precisa dar um jeito no caos”. Então, Bolsonaro surge mesmo como uma solução muito atraente para um problema coletivo. Como escreveu Nietzsche em A vontade de poder, “a história contém o fato terrível de que os esgotados sempre foram confundidos com os mais plenos – e os mais plenos com os mais horríveis”. Por alguma razão, em momentos de crise como o nosso, o esgotamento parece ter uma força social superior à plenitude.

Talvez porque o ódio, fundado sobre uma energia ressentida, tenha realmente uma força psíquica. A vontade de destruição de um outro tem um pano de fundo psíquico, porque o outro não é uma instância realmente apartada do si mesmo. As lições psicanalíticas de Jacques Lacan já apontavam para o fato de que o ódio ao outro não se trata exatamente de um ódio a outro sujeito, mas um ódio ao modo como o outro vive e como existe. Odeia-se especialmente a maneira particular como o outro goza. Esse outro tampouco está exatamente fora do sujeito. Ele também ocupa um lugar interno, porque existe uma relação profunda entre exterioridade e interioridade. Pelo menos segundo a psicanálise, no fundo, o ódio ao outro se expressa como um ódio a si mesmo. Os seres ressentidos são, no fundo, sujeitos esgotados de si mesmos. Atribuem a um outro a causa da falta de significado das próprias vidas – e assim se movimentam para destruí-lo. O ressentimento se manifesta, então, como uma emoção cuja força é psíquica e cuja manifestação depende de uma dimensão coletiva.

O ressentimento venceu. A partir de 2019, teremos como presidente um homem que foi eleito não porque apresentou um plano de governo considerado bom, exequível ou válido pela maior parte da população, mas porque conseguiu sintetizar, no seu discurso, o ódio ressentido de uma sociedade que não suportou ver a nossa democracia amadurecer. Jair Bolsonaro é a manifestação da pior face da população brasileira.

Agora, o que nos resta para os próximos anos talvez seja preservar o ethos que será sistematicamente atacado: a igualdade de gênero, os novos arranjos familiares, o pensamento crítico, o debate intelectual, a solidariedade com os pobres e oprimidos, o cuidado com o meio ambiente, as sexualidades não normativas, a festa, a mistura, a lógica do prazer, o florescimento que não passa pela dor. Quem sabe, assim, aqueles que mergulharam no niilismo que os levou a votar na figura sombria de Jair Bolsonaro descubram como restituir o sentido às próprias vidas. Agora, só os afetos positivos, criadores, abertos e inclusivos podem substituir as energias ressentidas que brotam do esgotamento.

BÁRBARA BURIL, jornalista, doutoranda em Filosofia pela UFSC e mestre em Filosofia pela UFPE.

LUÍSA VASCONCELOS
, estudante de Design e ilustradora.

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