FOTOS RICARDO MOURA
01 de Julho de 2018
A filósofa ativista Djamila Ribeiro
FOTO Ricardo Moura
[conteúdo na íntegra (degustação) | edição 211 | julho de 2018]
Lembro a primeira vez em que vi Djamila Ribeiro, lá pelos idos de 2014, em um programa de debates de uma grande emissora de TV. A então mestranda em Filosofia Política falava, de forma direta e objetiva, sobre feminismo negro e as peculiaridades da luta das mulheres negras por direitos. Sua presença, de cara, me impactou por sua facilidade em tratar desse tema em rede nacional. Ao mesmo tempo, causou-me estranheza uma jovem negra, com suas longas tranças falando disso em um espaço que, historicamente, nunca se interessou por essa discussão. A curiosidade em saber quem era aquela mulher me fez buscá-la nas redes sociais e acompanhar suas ideias e textos. Não fui a única a ter essa atitude.
De lá para cá, Djamila concluiu o mestrado, fortaleceu seu espaço de debate nas redes sociais, atuou como secretária-adjunta de Direitos Humanos da maior cidade da América Latina, transformou-se em colunista de sites jornalísticos e de revistas de grande circulação nacional, participou de outros tantos programas de televisão, organizou uma coleção editorial, ministrou cursos para atrizes de televisão, ao mesmo tempo em que percorre as periferias do Brasil, e se firmou como uma potente referência da nova geração de feministas e intelectuais negras no Brasil.
Para além dessas inúmeras atividades, soma-se ao currículo de Djamila o trânsito entre celebridades brasileiras que desejam saber mais sobre o tal do feminismo negro. Glamour? Ela garante que não. Muito trabalho, isso, sim. E a certeza de que sua presença em espaços tão distintos amplia o debate, fura a bolha e se mostra uma estratégia fundamental para que a mensagem de emancipação e de tomada de consciência de direitos da população negra, em especial das mulheres, vá muito além.
Marcar esta entrevista exigiu persistência. Não por falta de vontade da entrevistada, mas porque ela estava de malas prontas para viajar a cada tentativa de agendamento. Fosse pelo Brasil afora ou a lugares como Boston ou Londres. Divulgando seu livro O que é lugar de fala?, da coleção Feminismos Plurais (editora Letramento), que ela mesma coordena, ou participando de eventos acadêmicos sobre feminismos negros e interseccionalidade.
Em uma manhã ensolarada de sexta-feira, finalmente conseguimos um espaço na concorrida agenda da ativista, que nos recebeu em sua casa, em São Paulo, para uma conversa sobre política, vida real, Marielle Franco, esquerdas no Brasil, o crescente interesse do mercado editorial pela obra de escritoras negras e a organização das chamadas women of color nos países por onde tem passado. Chamada muitas vezes de Divamila nas redes sociais, ela critica os estereótipos dicotômicos em que, muitas vezes, as mulheres negras são colocadas. “Ou a gente é a deusa, a diva, ou a gente é a vulnerável. Pergunto: quando a gente é humana?”
CONTINENTE Como a menina que nasceu em Santos se tornou a Djamila Ribeiro? Como você se construiu como ativista, escritora, filósofa?
DJAMILA RIBEIRO Eu vim de uma família em que meu pai era militante do movimento negro e comunista. Então, desde muito cedo, eu e meus irmãos estávamos inseridos nesse meio. Íamos a manifestações, pois meu pai era trabalhador do Porto de Santos. Eu, com seis, sete anos, ia também às reuniões do partido. Com o tempo, fui tentando me entender dentro desse espaço, porque, por mais que meu pai fosse ativista, ele era homem. Lembro, quando criança e adolescente, sentir alguns incômodos, sobretudo com a diferença de criação entre meus irmãos e eu e minha irmã. No final da adolescência, me aproximei de uma ONG em Santos, chamada Casa de Cultura da Mulher Negra. Lá, onde fiquei por quatro anos, foi meu despertar para entender quem eu era: uma feminista negra. Sou antirracista, mas, acima de tudo, feminista. Ter contato com aquelas mulheres foi um divisor de águas da minha vida. Elas tinham uma biblioteca chamada Carolina de Jesus, com obras de mulheres negras de diversas partes do mundo, que me possibilitou ter acesso a uma bibliografia que nunca tinha visto. Depois, fui para a Educafro de Santos e, durante alguns anos, coordenei um núcleo, época da gravidez e nascimento da Tulane, que eu levava a tiracolo, todo sábado, para as atividades. Esses três momentos me fizeram ser a ativista que eu sou hoje.
CONTINENTE E a universidade? A vida acadêmica desempenha algum papel nessa construção?
DJAMILA RIBEIRO A universidade foi um espaço que pensei que seria mais aberto, ainda mais por ser do campo de humanas. Porém, me deparei com uma presença majoritária branca, com uma grade formada apenas com autores homens (estudei Filosofia e não havia mulheres no curso). Cursei Jornalismo em Santos, mas engravidei e não terminei a graduação. Fui ser mãe e, quando eu voltei, por volta de 28 anos, ingressei em Filosofia na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). A universidade teve um lado muito importante na minha vida, que foi conhecer algumas pessoas. Lá, participei da fundação do Mapo, que é o núcleo interdisciplinar de gênero, raça e sexualidade, onde nos reuníamos quinzenalmente para ler textos e organizar eventos internos. Nesse processo, tive acesso a muitos textos que a universidade não me proporcionou, a muita literatura para construir um espaço de debate sobre gênero e raça. Mesmo com a invisibilidade de mulheres e de mulheres negras na Filosofia pude, já na graduação, realizar uma pesquisa sobre Simone de Beauvoir. Mas foi árduo: tive que ir atrás, buscar orientador, porque, em quatro anos e meio de graduação, não estudei nenhuma mulher. No mestrado, eu também estudei mulheres, com muita luta e dificuldade, e também tive bolsa, o que me deu uma certa tranquilidade, principalmente para quem me dizia que o que eu estudava não era filosofia, mas, sim, perfumaria. Tive sorte de ter o Edson Teles como orientador, que é um cara muito aberto, militante e que bancou a minha pesquisa. Na verdade, a luta que eu construí dentro da universidade foi importante na minha formação.
CONTINENTE Você tem um intenso ativismo nas redes sociais, o que contraria um pouco a superficialidade desses espaços. Como fruto disso, você tem transitado no meio ativista, seja acadêmico ou das bases, ao mesmo tempo em que está próxima de um ambiente mais mainstream, próxima a atrizes globais e meios de comunicação massivos. Como você se sente, com relação a esse trânsito entre realidades diferentes: em um dia estar num encontro com atrizes globais e, no outro, palestrando para jovens periféricos de São Paulo, por exemplo?
DJAMILA RIBEIRO Acredito que é importante transitar em vários espaços. Minha formação autônoma não me determinou. Furar a bolha é estratégia. Sou militante e meu compromisso é com as mulheres da ponta, de tentar fazer produções acessíveis para essas pessoas. Mas, ao mesmo tempo, entendo que, se eu não estiver em certos lugares, não furo o bloqueio que nos é imposto. É necessário comunicar de uma maneira mais ampla e, às vezes, a militância peca nesse sentido, pois, ao ficar restrita, não entende que a Dona Maria que mora na Ilha do Combú, no Pará, não tem internet, mas tem antena parabólica, e que ela vai ligar a televisão e assistir a algo sobre um tema que ela nunca ouviu falar, mas que pode provocar nela uma reflexão. Infelizmente, esse tipo de debate que eu faço não circula nas escolas. Por isso, para mim, é estratégico que as pessoas tenham minimamente um acesso aos discursos que desenvolvo. A resposta que tenho quando participo de programas massivos, por exemplo, é muito absurda. Na linha das pessoas me escreverem dizendo que não sabiam que sofriam violência doméstica em casa, por exemplo. Certos entendimentos podem parecer claros, mas para muita gente é algo desconhecido. Frequentar esses meios é uma maneira de me comunicar com quem acho que precisa, porque, querendo ou não, as pessoas assistem à TV no Brasil. Infelizmente, a mídia não foi democratizada quando houve oportunidade, o que exige que sejam desenvolvidas certas estratégias. E não tem nada de glamour nisso. Às vezes, as pessoas olham e falam “olha a Djamila com aquela atriz famosa”, e eu digo “gente, no dia seguinte, minha vida segue a mesma: acordar às 6h, mandar minha filha para a escola, estudar com ela, ir ao mercado, pagar conta, limpar a casa. Ou seja, esse mundo pop não é o meu mundo, mas um mundo em que eu transito para comunicar, fazer o que acho importante, apresentar outros pontos de vista.
CONTINENTE É possível perceber um crescente interesse sobre feminismo negro no mercado editorial. Angela Davis foi traduzida com vendas expressivas e outras escritoras negras norte-americanas, como Audre Lorde e Patrícia Hill Collins devem, em breve, receber traduções de suas obras. Você acha que é uma onda ou algo que veio pra ficar?
DJAMILA RIBEIRO De fato, muitas editoras estão se interessando pelas escritoras negras, porque perceberam seu poder de venda, mas não por identificação. E é isso, o capitalismo vai nessa direção do lucro. Até porque Angela Davis foi publicada em 2016 no Brasil com um livro originalmente de 1981. Importante dizer que a decisão da Boitempo em publicar esse livro foi fruto de uma luta interna minha e do Silvio Almeida, porque sabíamos da importância disso. No começo, houve dúvidas, mas foi o livro mais vendido de 2016 da editora. Gosto de contar isso porque sempre existem lutas internas. Se, por um lado, se dissemina o pensamento dessa autora em português, e é ótimo que as pessoas tenham acesso, por outro, é importante que as pessoas tenham compromisso de fato, para que não seja uma moda. Só pelo sentido de vender é onda, mas, quando há uma construção coletiva, é permanente. E isso vai depender de cada espaço. Na editora Letramento, por exemplo, a gente anunciou o selo Sueli Carneiro, que terá um livro dela na estreia, reunindo vários artigos publicados ao longo de sua vida. Com essa coleção, queremos publicar autoras negras brasileiras de todo o país para levar em conta as questões regionais, porque mesmo no debate sobre feminismo negro se fica muito na produção do Sudeste e do Nordeste, mas se esquece a do Norte, que é muito vasta. Acreditamos na importância de combater esse epistemicídio, mostrar que existe uma intensa bibliografia, o que falta é visibilidade dessa produção, porque no Brasil se está nessa de achar legal ler escritoras negras estadunidenses, o que é importante, obviamente, mas deixar de lado as latinas, as caribenhas que, às vezes, estão muito mais próximas da gente e que tem um diálogo mais parecido com o nosso. A ideia do selo é quebrar isso, entender a importância e valorizar as nossas produções. As autoras negras brasileiras historicamente foram invisibilizadas, mesmo as que estavam produzindo. Muita gente não sabe quem foi Lélia Gonzalez, o que é um crime. Na coleção Feminismos Plurais, trazemos essas referências bibliográficas, de pessoas negras, sobretudo de mulheres, como uma forma de mostrar quantas referências temos e que o problema é esse mercado editorial racista, que não vê a importância dessa produção. Agora, as grandes editoras vem atrás da gente. Vou lançar um livro pela Cia das Letras, mas acho que isso nunca seria possível se eu não tivesse pensado a coleção, por exemplo. Esse interesse é fruto da venda. A Jarrid Arraes por exemplo, vendeu mais de 10 mil exemplares do Heroínas negras brasileiras, em um trabalho superindependente. Todo mundo se interessa, agora, mas não sabe da luta que é viabilizar uma produção.
Capas dos livros publicados por Djamila Ribeiro
CONTINENTE Você lançou a coleção Feminismos Plurais com o livro O que é lugar de fala?. Por que é importante falar e ter consciência sobre esse lugar no Brasil?
DJAMILA RIBEIRO Pensei nesse tema ser o primeiro da coleção porque gerava muita polêmica na internet. Como você falou bem, as pessoas são muito superficiais nas redes e não refletem sobre o que escrevem. Percebi que sobre o lugar de fala tinha muita briga. Existem várias autoras negras pensando nisso, de formas diferentes, para a galera sair falando: eu acho. Ter como base essas autoras pode fazer com que tenhamos um debate mais honesto e menos raivoso. As pessoas brancas no Brasil precisam entender o lugar da branquitude e saber que elas não são universais, que falam a partir de um lugar. Entender que somos invisíveis nos espaços, ao mesmo tempo em que a presença delas é privilégio. É difícil o sujeito branco se marcar. Ele marca a gente, mas não se marca e não entende o que significa o que é falar desse lugar de branco. Esse tema é para a gente entender que o lugar de fala não é o sentido de emitir palavras, mas o lugar social que cada uma de nós ocupa na sociedade e o fato de nós mulheres negras ocuparmos esse espaço social faz com que as nossas produções, as nossas falas sequer sejam vistas e consideradas em alguns lugares. Há barreiras que nos impedem de existir. E a gente quer existir nos espaços a partir de outras possibilidades que não sejam o lugar da vítima ou aquele permitido pelo branco. Uma negra com opinião e personalidade incomoda, mas se estiver chorando, pedindo algo e ser considerada coitadinha, pode. A reflexão que o livro traz é uma maneira de mostrar que as pessoas brancas precisam discutir branquitude, que os homens, masculinidade, e o que significa ocupar esses espaços socialmente.
CONTINENTE Você tem viajado muito pelo Brasil e agora também para fora dele: Europa, Estados Unidos. Como tem percebido a organização das mulheres negras, ou melhor das women of color (termo que engloba asiáticas e latinas) nesses espaços? Há diálogos ou diferenças entre elas e nós aqui no Brasil?
DJAMILA RIBEIRO Eu sinto que há interesse de diálogo por parte delas, porque o Brasil é um caso peculiar. Aqui, somos maioria em termos numéricos e, nesses lugares fora do Brasil a que tenho ido, as mulheres negras ou women of color, são minoria. Nesses lugares, o debate racial é outro. Uma paquistanesa, uma indiana, uma latina, uma asiática são todas women of color, então elas acabam ficando juntas, se unindo, pois de fato estão em países racistas, do colonizador, como elas mesmas se referem, e acabam criando uma rede de solidariedade que eu acho muito interessante. O que para nós é muito diferente. Somos um país colonizado onde temos maioria numérica, mas minoritária no acesso aos direitos. Estamos em um lugar bem mais difícil, porque aqui não fazemos um debate franco sobre racismo, como o que é feito nesses países. Claro que eles enfrentam tensões como racismo e encarceramento, mas, ao mesmo tempo, muitas das women of color estão nas universidades, como alunas e professoras, a própria tradição desses estudos é uma realidade, enquanto, aqui no Brasil, é muito surreal a gente não conseguir fazer nada. Lá, por mais racista que seja o país, eu, como indivíduo, me sinto mais tranquila que no Brasil. Aqui, dependendo do lugar onde estou, as pessoas estranham, ficam me olhando desconfiadas. Eu lembro que quando eu era secretária-adjunta de Direitos Humanos da cidade de São Paulo, a minha presença em alguns espaços causava desconforto. Claro que esse tipo de coisa pode acontecer lá fora, mas parece que a minha presença lá não é tão absurda. Em Londres, andei em tudo que foi lugar, sem nenhuma encheção de saco, ninguém me parou pra perguntar aonde eu estava indo. Na Noruega, um país nórdico, onde as pessoas são brancas, muito brancas, eu fui à reunião no Parlamento, em empresas, e minha figura foi muito mais aceita de que quando estou aqui. No supermercado perto da minha casa, eu sinto os olhares. Quando digo que tenho mestrado em Filosofia, as pessoas se espantam. Mas, voltando ao women of color, o foco delas é uma discussão transnacional, pensar em como criar uma rede de solidariedade internacional, como nossas realidades dialogam, apesar das diferenças. Há um desejo de se perceber como o debate racial no Brasil mudou nos últimos anos, fruto dessa construção histórica dos movimentos negros, e de entender como estamos resistindo nesse contexto do golpe, porque lá fora não há dúvida de que foi golpe. Nessas últimas idas, as pessoas estão muito preocupadas com o que aconteceu com a Marielle. Estão antenadas com a nossa realidade.
CONTINENTE E a sua visão dessa realidade que estamos vivendo no Brasil onde, ao mesmo tempo em que temos avanços e conquistas, há um endurecimento dos ataques à democracia?
DJAMILA RIBEIRO Eu sou fruto dos últimos anos de políticas públicas educacionais, porque o campus da Unifesp onde estudei foi criado em 2007 e eu sou da turma de 2008. Vivi governos anteriores ao Lula e, nesse período, eu não tinha perspectiva nenhuma de vida. Se tive oportunidade de estudar, foi por conta das políticas de educação dos dois mandatos de Lula. Por isso é extremamente desesperador ver o que está acontecendo: o corte de políticas públicas, o congelamento dos gastos, reforma da previdência, reforma trabalhista. É um momento muito difícil, sobretudo para as pessoas mais velhas que viveram uma ditadura militar e que não imaginavam que tantos retrocessos pudessem acontecer de novo. Mas, quando as pessoas falam de onda conservadora, eu não concordo, porque o Brasil sempre foi conservador. Foram mais de três séculos de escravidão, mais de 20 anos de ditadura. Nos últimos anos, a gente viveu algumas marolinhas de progressismo que ainda estavam longe de ser o ideal. O que acontece hoje é que certos grupos, que não eram vítimas dessas políticas, estão sendo e estão acordando para certas questões, relacionadas à precariedade da vida que o movimento negro sempre apontou. Certos setores da sociedade, que estão experimentando isso agora, dizem que está aumentando a repressão, quando, na verdade, agora que essa violência está chegando mais à classe média, por exemplo. Isso pode ser positivo no sentido de despertar o olhar de certos grupos para qual realidade de fato é vivida nesse país e como podemos nos organizar pra fazer frente a isso. Mas não tenho muita esperança, não. Mesmo as esquerdas ainda não entenderam o debate racial como fundamental, ainda o tratam como menor ou identitário. Muitos partidos têm em seu organograma apenas homens brancos. Eu acho que as esquerdas precisam de um processo de autocrítica do que vivemos hoje, do por que dessas coisas estarem acontecendo. Por mais que eu discorde de tudo o que está aí; por mais que eu entenda o quanto a prisão do Lula é absurda, acredito na necessidade de reflexão sobre qual o projeto de sociedade que se propõe e não o projeto de poder. Eu não sei nem o que pensar sobre o diagnóstico para essas eleições de 2018, e não estou vendo por parte da esquerda institucional um comprometimento real, ainda que eu acredite muito na força dos movimentos populares. Houve muita insistência pra que eu entrasse na política institucional, mas eu não quis, porque não acho que a mudança venha só por aí. O que eu faço é política também. Superapoio as companheiras negras que entram nessa disputa, porque os partidos ainda são dominados por brancos. Acho importante, faço campanha, mas não me vejo hoje nesse lugar, pode ser daqui a alguns anos, mas hoje não, porque acho que, se não existir de fato um projeto, a gente fica em um lugar muito difícil, por mais que ache que a gente tem que disputar, é preciso fazer isso em outras vias, porque não é só estar dentro da estrutura. Sinceramente, ando meio descrente das esquerdas institucionais de maneira geral.
CONTINENTE A Marielle Franco representava um pouco esse projeto que você menciona. Ela despontava como uma grande liderança no partido a que pertencia, com potencial de projeção para além do Rio de Janeiro e que fazia uma política institucional participativa, coletiva, fruto da formação e do lugar do qual ela vinha. E esse projeto foi duramente atacado.
DJAMILA RIBEIRO A Marielle peitava todo um sistema. Ela tinha um mandato coletivo que, de fato, atendia as famílias vítimas de violência policial e desenvolvia outra forma de fazer política, mesmo dentro da política institucional (da qual ela não se deixou cooptar) e começou a denunciar problemas que resultam da naturalização da morte dos corpos negros, o que ela não aceitava. O assassinato dela é a morte de um projeto. Isso me chocou muito, me deixou mal, de cama, me derrubou mesmo, porque eu a conhecia e foi algo que me deu medo mesmo. E esse medo foi uma reação de muitas de nós, porque estamos aí dando a cara pra bater. Passado o choque, essa perda mostrou que não temos alternativa a não ser ir para o embate. Não dá pra ficar encolhida. Mas é importante que as mulheres negras também entendam que precisamos nos cuidar, que não temos que pegar todas as buchas. A gente acha que precisa pegar todos os problemas sempre, enquanto os políticos brancos pegam um probleminha ou outro e está tudo bem. E a gente fica em um lugar de vulnerabilidade de que sequer nos damos conta. A história da Marielle nos mostrou isso. Eu nunca vi um parlamentar no Rio de Janeiro ser executado com a ousadia que ela foi e isso aconteceu pelo fato de ela ser uma mulher preta que veio da favela. Ela não andava com segurança, nem com carro blindado e percebi que mesmo as pessoas próximas a ela não enxergavam a vida dela como a de outras pessoas. Pode-se dizer que ela não sofreu ameaça, mas, poxa, ela denunciava coisas pesadas e graves. Ela também acreditava que não tinha necessidade de segurança e carro blindado. Daí a gente vê essas fragilidades e percebe como as nossas vidas são precarizadas, mesmo estando em certos espaços de poder. Mostra que a gente tem que perceber que não temos que nos jogar em tudo. Eu brinco que, como foram os nossos ancestrais que enriqueceram este país, deveriam ser os brancos fazer tudo e a gente tinha que ficar numa praia no Caribe tomando piña colada (risos). Mas esperam esse lugar da mulher negra como sendo a lutadora, a guerreira, a que enfrenta e dá conta de tudo, mas isso é extremamente desumano e nos coloca em um lugar vulnerável. A gente é ser humano, queremos amar, ser amadas, tomar cerveja. Tem dia que a gente não quer conversar sobre isso, só quer ficar em casa vendo TV. É preciso entender como as esquerdas nos colocam nesse lugar das que carregam o piano sempre e o quanto é importante não cairmos nesse lugar.
CONTINENTE Você é candomblecista, filha de Oxossi. O que essa religiosidade traz para sua vida?
DJAMILA RIBEIRO O candomblé é o lugar onde eu me recolho e me fortaleço, que me dá uma dimensão de humildade. É um espaço de acolhimento. A vida é muito dura. Não é fácil entrar nas brigas que eu entro. Ou a gente é a deusa, a diva ou a gente é a vulnerável. Pergunto: quando a gente é humana? Senão, parece que nunca podemos ser nós mesmas e o candomblé me dá a dimensão de pé no chão muito grande. Eu cultuo os meus orixás, bato cabeça para eles, para o meu pai de santo. Entendo a minha insignificância dentro desse universo gigante. Importante que, quando eu estou lá, entendo o sentido da coletividade. Se não estivesse lá, com certeza, eu adoeceria. Entendo meu lugar no mundo, que sou mais uma pessoa nesse mundo, com a certeza da finitude, que não tenho que ser mártir, de que tenho o direito ao prazer e à alegria, porque o candomblé é luta, disciplina, mas é festa e amor. Tem trabalho, mas tem felicidade. Eu não tenho culpa, porque a culpa é cristã. Entendendo os compromissos, a disciplina, respeitando as mais velhas, saber de onde venho. Não perco as perspectivas históricas também. Minha mãe teve que lavar muito banheiro pra que eu pudesse estudar. O candomblé também me dá essa dimensão de quem veio antes, da ancestralidade. Para além de uma religião, é uma filosofia de vida, uma cultura.
CHRISTIANE GOMES é jornalista, membro do conselho editorial da revista de artes negras O Menelick 2 Ato.