Curtas

A arte de Victor Moreira

Publicação da Cepe Editora resgata a trajetória múltipla do estilista, figurinista e designer

TEXTO Mariana Oliveira

03 de Abril de 2018

Victor Moreira em 1969

Victor Moreira em 1969

Foto Fritz Simons/Reprodução

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 208 | abril 2018]

Corria o ano de 2010
, o dramaturgo e professor Marcondes Lima participava do lançamento de um livro sobre Diva Pacheco. Foi aí que seu colega de departamento, o também professor e pesquisador Luís Reis, chamou-o para apresentá-lo ao estilista, figurinista e designer Victor Moreira, que já nutria, há algum tempo, o desejo de publicar um livro documentando sua trajetória artística. Marcondes surgiu, então, como o nome para conduzir esse trabalho, já que sempre transitou com desenvoltura nos universos da moda e do teatro, dois pilares da produção de Victor. Foi a partir dessa parceira que se desenhou o livro A arte de Victor Moreira, editado pela Cepe, e lançado no final de fevereiro.

A obra não é propriamente uma biografia nem um livro de arte, trata-se de uma publicação híbrida, com traços biográficos e a construção do imaginário do artista que remete à sua infância, aliados à potência de suas obras, nas mais diferentes áreas, da estamparia ao designer de interiores. O texto fluido de Marcondes Lima é acompanhado por fotografias que vão nos apresentando o caminho do artista e de suas criações.


Uma de suas estampas. Imagem: Reprodução

Victor José Fernandes Moreira nasceu em 1934, numa tradicional família olindense. Desde muito pequeno, acompanhava as procissões que costumeiramente cortavam as ruas e ladeiras da cidade, especialmente no período da Semana Santa. As melhores peças do enxoval eram retiradas dos armários em homenagem aos santos, os parapeitos das casas eram adornados com tecidos nobres, bordados, rendas, numa espécie de competição entre as famílias. Todo esse imaginário alimentava a imaginação de Victor.

Já na década de 1940, flertava com o universo da moda, acompanhava publicações e passava parte do seu tempo desenhando roupas de São João e Carnaval de modo informal. Em 1952, conseguiu um emprego como escriturário no Diretoria de Rendas do Interior, da Sefaz, e foi lá que conheceu Luiz Mendonça, que já atuava no teatro e abriu as portas da cena para ele. Nesse mesmo ano, ingressou no curso de Odontologia.

Mas, como escreve Marcondes, “o ano de 1954 abriu-se para Victor como um leque de possibilidades, a partir dali, alguns liames se firmaram e outros surgiram para formar a grande teia de relacionamentos que alterou por completo a sua vida pessoal e profissional”. Foi nesse ano que conheceu Plínio Pacheco, também firmou uma importante amizade com a bailarina Flávia Barros e com o diretor Clênio Wanderley. Victor mergulhou definitivamente no universo da moda, do teatro e da dança.

Foi ainda em 1954 que ele e sua turma na universidade decidiram promover um desfile beneficente para apoiar o Hospital Ulysses Pernambucano, que fora atingido por uma cheia. O grupo conseguiu o apoio do Cotonifício Othon Bezerra de Mello, e Victor, que havia participado da negociação apresentando os croquis, conseguiu também um estágio de dois anos no setor de estamparia da fábrica. Logo, mesmo com a graduação completa, a odontologia ficou para trás.


Outra de suas estampas. Imagem: Reprodução

Nesse período, a cultura do algodão vivia um excelente momento e Victor eleva o status do tecido, introduzindo-o na alta-costura, através do design têxtil. O algodão era pintado, engomado, acetinado, tornando o tecido apto a ser usado em figurinos menos básicos.

A conhecida Fábrica da Macaxeira deu um salto com a presença do designer de moda, passando a imprimir estampas exclusivas desenhadas por ele para os mais variados fins. “Ele vai fazer outra coisa muito importante, que, na época, poucos faziam. Como designer de moda, ele trabalhava na produção de estampas sem esquecer a aplicabilidade delas em produções próprias para a difusão de criações e looks”, conta Marcondes Lima.

Victor sempre esteve muito antenado com a moda internacional e viajava à Europa para acompanhar os desfiles de prêt-à-porter. Lá, ele atuava também como correspondente dos jornais brasileiros, indicando as tendências para as próximas temporadas. Victor se aventurava até na fotografia, ficava com sua pequena câmera aguardando o momento em que os fotógrafos profissionais davam seus cliques para ele também dar o seu e aproveitar o flash. “Quando retornava, Victor ajustava essas tendências ao perfil brasileiro, adotando as dimensões da roupa, os materiais usados, ajustando ao biotipo e ao clima brasileiros. Por exemplo, a trama Principe di Galles, Victor vai imprimir no algodão, possibilitando seu uso em terras tropicais”, detalha Marcondes Lima.

CENA
O vitrinismo, a decoração de casamentos, os cenários para a televisão, a ambientação de lojas e de hotéis, todas essas atividades eram encaradas por Victor como um espetáculo, com uma carga dramática, um enredo, uma espécie de storytelling. Essa visão tinha muita relação com sua atuação no campo do teatro, que sempre aconteceu em paralelo ao trabalho com a moda. Mesmo quando deixou o Recife para viver em Fortaleza e São Paulo, ele se manteve atuante junto à cena local.

O livro traz, inclusive, o registro de cartas trocadas entre ele e nomes como Plínio Pacheco, Valdemar de Oliveira, nas quais discutem elementos cenográficos e do figurino de algumas peças. “É impressionante a sua capacidade de, mesmo a distância, ativar certas coisas. Ele consegue, de longe, orientar a cenografia da Paixão de Cristo, numa parceria com Plínio Pacheco, que fazia a interação com os mestres de obra”, explica Marcondes.


Croqui de figurino da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém.
Imagem: Reprodução

Toda a cenografia e figurinos da Paixão de Cristo foram pensados por Victor dentro de alguns conceitos, com um cromatismo específico, mas que possibilitavam vários desdobramentos, numa espécie de projeto aberto que até hoje dá as bases para a produção das vestimentas do espetáculo. Segundo o autor do livro, essa ideia de criação em processo, algo tão contemporâneo, já era desenvolvida por Victor há bastante tempo. Assim como a proposta de ressignificação de materiais. A exemplo de quando ele utilizou o tricô pintado de prateado como forma de representar a malha metálica, numa montagem de Macbeth, ou colheres de plástico e radiografias em fantasias de carnaval.

O Teatro Adolescente do Recife (TAR), a Sociedade Teatral de Fazenda Nova (STFN) e o Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) são, como ele mesmo diz, os pilares de sua atuação no teatro. Victor participa de montagens importantes como Yerma, dirigido por Geninha da Rosa Borges, no TAP, e A Compadecida, primeira montagem da obra de Ariano Suassuna do TAR. No período da montagem de Macbeth, Valdemar de Oliveira escreve ao amigo: “Venha, porque aqui, no seio do TAP, o nome de Victor Moreira é o de um deus amigo e sensibilíssimo”.

Seu trabalho nesse espetáculo também reverberou na crítica. Durante as pesquisas para o livro nos arquivos de Victor, guardados em sua casa, Marcondes Lima encontrou um recorte de jornal em que um crítico tecia o seguinte comentário: “A indumentária foi um outro ponto alto do espetáculo. O jovem e talentoso artista pernambucano Victor Moreira, baseado nos quadros e gravuras da época em que vivem os personagens shakespearianos, compôs os mais variados figurinos, em que a forma e as combinações das cores criam um conjunto admirável de realidade e de bom gosto (…)”.

Dos arquivos de onde saiu boa parte das informações, documentos e imagens que ilustram o livro A arte de Victor Moreira, há ainda muito a ser explorado, segundo Marcondes Lima. O livro é apenas um primeiro momento. Há, ali na casa de Victor, um universo riquíssimo para pesquisadores do campo da moda, do design e do teatro. “Acho que a função do livro é exatamente revelar um personagem pouco conhecido. Victor é de uma importância fundamental para o teatro pernambucano, para o design de moda pernambucana, e não teve a visibilidade local que merecia. O nosso objetivo, meu e dele, é provocar reverberações. E o espírito que nos move não é só a manutenção da sua memória, mas a memória das pessoas que foram importantes para a cena teatral pernambucana, como Luiz Mendonça. Clênio Wanderley, Plínio Pacheco”, explica Marcondes Lima.

MARIANA OLIVEIRA é jornalista e editora assistente da Continente.

Publicidade

veja também

Celso Hartkopf

Uma cidade tomada pelos quadrinhos

Neilton, por conta própria