Curtas

Entre ser um e ser muitos

Reunindo 30 ilustrações originais das três publicações de Valeria Rey Soto e Habib Zahra, exposição fica em cartaz até 10 de fevereiro de 2018

TEXTO Sofia Lucchesi

09 de Novembro de 2017

Aquarela de Valeria Rey Soto, de 'O último golpe do lobo mau', integra mostra na Galeria Corbiniano Lins

Aquarela de Valeria Rey Soto, de 'O último golpe do lobo mau', integra mostra na Galeria Corbiniano Lins

Imagem Reprodução

Macacos e um burrinho brincam juntos, pendurados nos galhos das árvores, enquanto ovelhas tocam, cantam e dançam ao redor de uma fogueira, como um festejo cigano, na presença de um lobo disfarçado. Um velhinho, de roupas coloridas e feições ternas, dança com a leveza de quem conhece bem o melhor da vida, nas ruas de uma cidadezinha que poderia ser o sítio histórico olindense, ou qualquer outro lugar aprazível do mundo.

As imagens, criadas por Valeria Rey Soto e Habib Zahra, compõem o universo delicado de seus três livros: O burro errante (2012), O último golpe do lobo mau (2014) e O dia em que a morte sambou (2016), todos publicados de forma independente. Valeria, com seus desenhos e pinturas em aquarela, concebe em cores e formas vivas os personagens e sentimentos escritos por Habib, num processo criativo de constante troca pelos artistas, que se conheceram em Olinda há mais de 10 anos e por lá decidiram construir uma vida juntos. O trabalho do casal pode ser conferido na exposição Entre ser um e ser muitos, em cartaz desde setembro na Galeria Corbiniano Lins, do Sesc Santo Amaro.

Reunindo 30 ilustrações originais das três publicações, disponíveis para leitura na mostra, a exposição traz também fotos das apresentações das peças em teatro de grupo e teatro de sombras, espetáculos produzidos a partir dos livros. O primeiro, O burro errante, trata de um burrinho que decide sair da casa de sua família superprotetora e preconceituosa para se aventurar no mundo e redescobri-lo a partir das próprias experiências, numa trajetória em que procura também descobrir a si mesmo. Já o Último golpe do Lobo Mau é uma subversão da fábula clássica, onde o Lobo é surpreendido pelo amor e carinho das ovelhas que devoraria; enquanto que O dia em que a Morte sambou conta a história de seu Biu, um velhinho brincante que não perde a alegria de viver até no seu encontro com a morte.

As três obras, apesar de associadas ao público infantojuvenil, estão imbuídas de significados mais subjetivos – códigos que podem ser lidos pelo público adulto como críticas sociais. “Nas histórias do ‘lobo’ e do ‘burro’, os personagens servem como arquétipos que ilustram de forma crítica uma tendência cultural. O Lobo, por exemplo, é um arquétipo que representa a ideologia do capitalismo, do individualismo – quer ser o primeiro, o mais esperto, o mais forte, o mais rico. Esses animais aparecem na história de forma alegórica, cada um representando algo no nosso imaginário coletivo”, define Habib Zahra. “Não fazemos um livro pensando no público-alvo, mas, sim, tentando torná-lo acessível. Fazemos livros para todas as pessoas. Tentamos expressar uma ideia complexa do jeito mais simples possível, favorecendo o conteúdo ao invés da forma.”

Desde que se estabeleceram em Olinda (Valeria nasceu na Espanha e Habib, no Egito), os artistas têm se dedicado à pesquisa sobre os folguedos populares, frequentando sambadas de coco, maracatu e o cavalo-marinho na Zona da Mata pernambucana. “Meus desenhos eram menos coloridos, quando eu morava na Espanha. Quando vim para Pernambuco, fui absorvendo o repertório visual das manifestações populares, como as cores do maracatu. Hoje, meus desenhos são bem mais coloridos”, conta a artista, que é formada em Belas Artes pela Universidade de Salamanca, e diz também ter sido inspirada pelas ilustrações antigas que via nos livros da sua infância na Espanha, como os desenhos de Gustave Doré – ilustrador de clássicos como O gato de botas.

Seu Biu, personagem de O dia em que a Morte sambou, também surgiu a partir das viagens à Zona da Mata. “Na nossa sociedade, a pessoa velha é vista como alguém que é chato, que precisa de cuidados, que não tem vida própria. Vimos os velhos brincantes dançando coco, ciranda e maracatu a noite inteira, brincando como se fossem crianças”, conta Valéria. “Isso não é uma coisa natural, vem da cultura, do papel que a gente obriga as pessoas mais velhas a se conformar com isso, a viver desse jeito. Na Zona da Mata não é assim, o velho tem um lugar, ele participa da vida social”, complementa Habib.

Nos dias de hoje, em meio ao avanço das tecnologias hiperestimulantes, pensar a possibilidade de habitar um outro tempo tem sido um entre os muitos desafios enfrentados pela arte. O espetáculo de O dia em que a Morte sambou, que é apresentado como teatro de sombras – arte milenar pouco vista atualmente –, tem uma certa temporalidade artesanal, que anda na contramão dos produtos de entretenimento geralmente oferecidos às crianças. “Acho que é importante para as crianças ter essas experiências que favoreçam o tato e presença no dia a dia, ter contato com uma linguagem tão primitiva, e, ao mesmo tempo, acessível, como o teatro de sombras. É algo que não parece ser de outro mundo, que não precisa de máquinas para criar e que as crianças também podem fazer em casa. É preciso desmistificar a arte como uma coisa que precisa de ‘muito’ para ser feita”, diz Habib.

Entre ser um e ser muitos segue em cartaz até fevereiro, com visitação das 9h às 17h, de terça a sexta. Também está disponível na internet uma campanha de financiamento coletivo para a reedição de O burro errante, que, atualmente, encontra-se esgotado. Quem quiser contribuir, pode fazê-lo através do link no site Catarse

SOFIA LUCCHESI, estagiária da Continente, estudante de Jornalismo da Unicap e fotógrafa.

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