As imagens, criadas por Valeria Rey Soto e Habib Zahra, compõem o universo delicado de seus três livros: O burro errante (2012), O último golpe do lobo mau (2014) e O dia em que a morte sambou (2016), todos publicados de forma independente. Valeria, com seus desenhos e pinturas em aquarela, concebe em cores e formas vivas os personagens e sentimentos escritos por Habib, num processo criativo de constante troca pelos artistas, que se conheceram em Olinda há mais de 10 anos e por lá decidiram construir uma vida juntos. O trabalho do casal pode ser conferido na exposição Entre ser um e ser muitos, em cartaz desde setembro na Galeria Corbiniano Lins, do Sesc Santo Amaro.
Reunindo 30 ilustrações originais das três publicações, disponíveis para leitura na mostra, a exposição traz também fotos das apresentações das peças em teatro de grupo e teatro de sombras, espetáculos produzidos a partir dos livros. O primeiro, O burro errante, trata de um burrinho que decide sair da casa de sua família superprotetora e preconceituosa para se aventurar no mundo e redescobri-lo a partir das próprias experiências, numa trajetória em que procura também descobrir a si mesmo. Já o Último golpe do Lobo Mau é uma subversão da fábula clássica, onde o Lobo é surpreendido pelo amor e carinho das ovelhas que devoraria; enquanto que O dia em que a Morte sambou conta a história de seu Biu, um velhinho brincante que não perde a alegria de viver até no seu encontro com a morte.
As três obras, apesar de associadas ao público infantojuvenil, estão imbuídas de significados mais subjetivos – códigos que podem ser lidos pelo público adulto como críticas sociais. “Nas histórias do ‘lobo’ e do ‘burro’, os personagens servem como arquétipos que ilustram de forma crítica uma tendência cultural. O Lobo, por exemplo, é um arquétipo que representa a ideologia do capitalismo, do individualismo – quer ser o primeiro, o mais esperto, o mais forte, o mais rico. Esses animais aparecem na história de forma alegórica, cada um representando algo no nosso imaginário coletivo”, define Habib Zahra. “Não fazemos um livro pensando no público-alvo, mas, sim, tentando torná-lo acessível. Fazemos livros para todas as pessoas. Tentamos expressar uma ideia complexa do jeito mais simples possível, favorecendo o conteúdo ao invés da forma.”
Desde que se estabeleceram em Olinda (Valeria nasceu na Espanha e Habib, no Egito), os artistas têm se dedicado à pesquisa sobre os folguedos populares, frequentando sambadas de coco, maracatu e o cavalo-marinho na Zona da Mata pernambucana. “Meus desenhos eram menos coloridos, quando eu morava na Espanha. Quando vim para Pernambuco, fui absorvendo o repertório visual das manifestações populares, como as cores do maracatu. Hoje, meus desenhos são bem mais coloridos”, conta a artista, que é formada em Belas Artes pela Universidade de Salamanca, e diz também ter sido inspirada pelas ilustrações antigas que via nos livros da sua infância na Espanha, como os desenhos de Gustave Doré – ilustrador de clássicos como O gato de botas.
Seu Biu, personagem de O dia em que a Morte sambou, também surgiu a partir das viagens à Zona da Mata. “Na nossa sociedade, a pessoa velha é vista como alguém que é chato, que precisa de cuidados, que não tem vida própria. Vimos os velhos brincantes dançando coco, ciranda e maracatu a noite inteira, brincando como se fossem crianças”, conta Valéria. “Isso não é uma coisa natural, vem da cultura, do papel que a gente obriga as pessoas mais velhas a se conformar com isso, a viver desse jeito. Na Zona da Mata não é assim, o velho tem um lugar, ele participa da vida social”, complementa Habib.
Nos dias de hoje, em meio ao avanço das tecnologias hiperestimulantes, pensar a possibilidade de habitar um outro tempo tem sido um entre os muitos desafios enfrentados pela arte. O espetáculo de O dia em que a Morte sambou, que é apresentado como teatro de sombras – arte milenar pouco vista atualmente –, tem uma certa temporalidade artesanal, que anda na contramão dos produtos de entretenimento geralmente oferecidos às crianças. “Acho que é importante para as crianças ter essas experiências que favoreçam o tato e presença no dia a dia, ter contato com uma linguagem tão primitiva, e, ao mesmo tempo, acessível, como o teatro de sombras. É algo que não parece ser de outro mundo, que não precisa de máquinas para criar e que as crianças também podem fazer em casa. É preciso desmistificar a arte como uma coisa que precisa de ‘muito’ para ser feita”, diz Habib.
Entre ser um e ser muitos segue em cartaz até fevereiro, com visitação das 9h às 17h, de terça a sexta. Também está disponível na internet uma campanha de financiamento coletivo para a reedição de O burro errante, que, atualmente, encontra-se esgotado. Quem quiser contribuir, pode fazê-lo através do link no site Catarse.
SOFIA LUCCHESI, estagiária da Continente, estudante de Jornalismo da Unicap e fotógrafa.