Reportagem

Cem anos da animação brasileira

A trajetória deste gênero no país é marcada pelo esforço quixotesco dos pioneiros, que possibilitou o seu avanço e o atual reconhecimento e admiração de nossas produções em todo o mundo

TEXTO Marcos Buccini

02 de Outubro de 2017

ILUSTRAÇÃO Rodrigo Gafa

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 202 | outubro 2017]

DE ONDE VIEMOS...
A animação brasileira completa agora 100 anos de uma história pouco conhecida e reconhecida, que surgiu e se desenvolveu às margens do esquema industrial dos grandes centros, mas que, a partir de um esforço quixotesco de alguns poucos intrépidos profissionais, vem ganhando nos últimos anos o respeito e a admiração do mundo.

Tudo começou em 1917, na cidade do Rio de Janeiro, quando o chargista Álvaro Marins, também conhecido como Seth, produziu uma charge animada chamada O Kaiser, sobre a situação bélica na Europa. O filme, que estreou no Cine Pathé e também foi exibido nos Estados Unidos, mostrava o imperador Guilherme II sendo engolido por um globo terrestre. Segundo Arnaldo Galvão, um dos mais experientes animadores do Brasil, “O Cinema de Animação no Brasil nasceu bem-humorado, ágil e como instrumento de contestação. Herdeiro direto da sátira política”. Dessa primeira obra, o que nos restou foi apenas um quadro.

No mesmo ano, no Cine Haddock Lobo, localizado na Tijuca, no Rio de Janeiro, estreia o curta Traquinices de Chiquinho e seu inseparável amigo Jagunço, com uma narrativa baseada nas histórias em quadrinhos da revista Tico-Tico. Ao contrário do filme de Álvaro Marins, esse curta mostrava situações tipicamente brasileiras, por isso teve uma boa aceitação do público. Não há crédito de animadores, apenas da produtora Kirs Filme. No ano seguinte, o desenhista Eugênio Fonseca Filho lança As Aventuras de Bille e Bolle, com personagens baseados nos quadrinhos Mutt and Jeff, do americano Budd Fishet. A história mostra os dois personagens descendo de um avião no Viaduto do Chá e criando muitas trapalhadas nas casas comerciais de São Paulo. Assim como O Kaiser, as cópias dos dois filmes citados anteriormente estão desaparecidas.

O kaiser (1917), de Álvaro Marins, é considerada a primeira animação brasileira

As primeiras experiências brasileiras na animação aconteceram apenas nove anos depois da exibição inaugural de um desenho animado, utilizando-se um projetor de cinema, em 1908, quando o diretor francês Émile Cohl lançou Fantasmagorie no Théâtre du Gymnase, em Paris. Ou seja, a animação no Brasil começou bastante cedo em relação ao restante do mundo. Porém, o seu desenvolvimento foi lento, cheio de percalços, típico das produções marginais, com longos períodos que oscilam entre a pouca ou total ausência de realizações na área. Por exemplo, somente 11 anos depois de As Aventuras de Bille e Bolle, o Brasil produz uma nova animação, Macaco feio, macaco bonito (1929), de Luiz Seel e João Stamato. Com forte influência do trabalho do estúdio americano dos Irmãos Fleischer, o filme conta as aventuras de um macaco que foge do zoológico. Essa é a animação mais antiga de que se tem uma cópia preservada. Em 1930, Luiz Seel produziu mais uma película, Frivolitá, que conta a história de uma moça que enfrenta um despertador, um gramofone e um bando de gatos para poder dormir até mais tarde. A animação esteve perdida durante 70 anos, foi restaurada em 2013 e reestreou em 2014.

Outra lacuna se estabelece até o fim da década de 1930, quando o cearense Luiz Sá, radicado em São Paulo, produz, com pouquíssimo aparato técnico, o curta As aventuras de Virgulino (1939). O filme teve problemas para ser distribuído, uma cópia foi vendida como sucata, depois de a película ter sido lavada com ácido. Outro rolo foi vendido para o dono de uma loja de projetores, que cortou o filme em diversos pedacinhos e os oferecia para quem comprava um projetor. Acreditava-se estar perdido para sempre, porém uma versão da obra foi encontrada em estado avançado de deterioração, mas foi recuperada em laboratório. Em 1941, durante a famosa visita de Walt Disney ao Brasil, Luiz Sá tentou exibir para ele As aventuras de Virgulino, porém, foi impedido pelo DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo de Getúlio Vargas, por considerar que o filme não tinha qualidade suficiente para ser mostrado a Disney.

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O primeiro longa-metragem da história da animação mundial também está fazendo 100 anos. El Apóstol, feito na Argentina, por Quirino Cristiani, em 1917. Walt Disney só estrearia no formato de longa 20 anos depois, com Branca de Neve e os sete anões (1937). Já o Brasil só teria seu primeiro longa 16 anos depois de Disney. Afinal, se produzir curtas-metragens no Brasil era uma aventura para poucos corajosos, a confecção de um longa-metragem, então, era uma insanidade. O responsável por essa “loucura” foi Anélio Lattini Filho, que, após uma jornada quixotesca de seis anos de trabalho, apresenta Sinfonia amazônica, em 1953 (veja trechos do filme AQUI).

O filme é um pout-pourri de sete histórias folclóricas da Região Norte, com forte influência estética de Disney. Trabalhando exaustivamente, muitas vezes dia e noite, Lattini criou técnicas próprias e produziu sozinho mais de 500 mil desenhos. O autor chegava ao estúdio às oito da manhã e trabalhava até as quatro horas do dia seguinte. O filme foi lançado e teve um grande sucesso de público, ganhando vários prêmios. Porém, segundo o próprio Lattini, em depoimento a Antônio Moreno, no livro A experiência brasileira no cinema de animação, de 1978, ele não recebeu integralmente sua parte da renda das bilheterias, ficando o lucro com os distribuidores e donos de cinema.

“Além de todos os descontos com publicidade e promoção do filme, ainda existia o roubo. Eu fui tremendamente roubado. Vinham relatórios incríveis. Eles me mostraram uma carta forjada da exibição no Paraná, dizendo que o filme era uma bomba, logo, isso seria a pseudorrazão da baixa renda naquele estado. O interessante é que eu recebi, na época, várias cartas de pessoas que haviam assistido ao filme dizendo que estava sendo um sucesso tremendo”, relatou o autor.

Decepcionado, depois de Sinfonia Amazônica Lattini nunca mais fez outra animação autoral, dedicando-se a projetos publicitários e pintura de quadros. Em 1977, ele tentou relançar o filme. Porém os exibidores não se interessaram, pois, pela lei de proteção ao cinema nacional da época, que estabelecia cotas para filmes nacionais nos cinemas, após cinco anos da primeira censura, o filme já não podia ser beneficiado.

Sinfonia Amazônica (1953) foi o primeiro longa de animação brasileiro

Na década de 1960, surge o Centro Experimental de Ribeirão Preto (Cerp), fundado por Rubens Lucchetti e Bassano Vaccarini, com a participação de Roberto Miller, que tinha acabado de voltar de um período de seis meses no National Film Board do Canadá, onde teve contato com as técnicas desenvolvidas pelo mestre Norman McLaren. Miller se tornou, no Brasil, um dos precursores da animação abstrata e experimental. Vários trabalhos do Cerp estiveram presentes no I Festival Internacional de Cinema de Animação no Brasil, em 1965.

Em 1967, foi fundado, no Rio de Janeiro, o Centro de Estudos de Cinema de Animação (Ceca). No entanto, o centro não sobreviveu à censura do período militar. Com a sua dissolução, foi montado um novo grupo de animação experimental, o Fotograma, que contava com a participação de Rui Oliveira, Pedro Ernesto Stilpen ‘Stil’, Carlos Alberto Pacheco, Antônio Moreno e do pernambucano Jô Oliveira. Entre os principais filmes do grupo estão O coelhinho sabido (1967), O palhaço domador (1967), O Cristo procurado (1980), A pantera negra (1968) e Status quo (1968). O grupo se desfez em 1969, porém, o trabalho do Fotograma possibilitou a criação de uma animação em 35mm, Batuque (1969), dirigida por Stil, uma das poucas feitas durante a década de 1970. O Fotograma promovia diversas mostras no Museu de Arte Moderna e ainda mantinha um programa sobre animação no Canal 9 do Rio de Janeiro.

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O segundo longa brasileiro, primeiro colorido, foi lançado em 1971. Presente de Natal foi realizado inteiramente em animação tradicional pelo quadrinista amazonense Álvaro Henrique Gonçalves. Morando em São Paulo, ele produziu o filme sozinho, durante seis anos, sem incentivo de nenhuma empresa ou governo. Com o filme pronto, Álvaro tentou negociá-lo em São Paulo, mas fracassou, pois só conseguiu uma exibição, na cidade de Santos. Quando lançado em Manaus, Presente de Natal foi um sucesso, porém restrito àquela cidade. O filme permanece praticamente desconhecido até hoje.

Piconzé, de 1972, dirigido pelo japonês radicado no Brasil Yppê Nakashima, é o terceiro longa brasileiro. O filme conta a história de um menino que teve a namorada sequestrada e passará por diversas aventuras para reencontrá-la. No caminho, ele encontra várias figuras do nosso folclore, como a caipora e o saci-pererê. O filme começou a ser realizado em 1966 e levou seis anos para ser concluído, com uma equipe de 30 animadores, todos descendentes de japoneses. Os cenários foram todos feitos de recortes de fotografias, o que dava uma sensação de profundidade, e os personagens, desenhados em acetato. A obra obteve um certo sucesso nas bilheterias. Porém, esse foi o único longa de Nakashima, também responsável por diversos curtas.

Podemos notar pela experiência dos três primeiros filmes em longa-metragem do Brasil que, mesmo contando com uma boa aceitação de público, o problema, além da óbvia falta de estrutura e recursos para a produção, estava na parte de distribuição e comercialização das obras. Não era vantajoso para os exibidores e distribuidores um produto comercial que lhes custava mais do que aqueles vindos de fora, especialmente dos Estados Unidos.

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Por décadas, os filmes publicitários foram responsáveis por manter a animação brasileira viva, uma vez que os curtas não rendiam o suficiente e os longas eram muito caros e trabalhosos, além da dificuldade de distribuição. “A Animação Brasileira embora tenha começado prematuramente, em 1917, levou muitas décadas até se firmar com uma produção consistente. A partir de 1960, sugiram estúdios que produziram trabalhos importantes voltados, principalmente, para publicidade. De fato, a difusão animada brasileira ganhou uma excelente repercussão nesse período. Entretanto, esse era um mercado restrito a poucos estúdios e profissionais”, afirma César Coelho, animador e um dos fundadores do Anima Mundi.

Na verdade, até os anos 2000, as propagandas para a TV eram a fonte de renda certa para os estúdios e os animadores brasileiros. Uma das principais produtoras foi a Lynxfilm, fundada em 1958 por César Mêmolo Júnior e Ruy Perotti Barbosa, famosos pelos comerciais da Varig. Outra importante produtora foi a Start Anima, fundada em 1966 pelo animador Walbercy Ribas, que fez, entre outras, a propaganda da Faber-Castell com a música Aquarela e criou o homenzinho azul para a linha de cotonetes da Johnson’s, que faturou o Leão de Bronze em Cannes.

Na década de 1980, temos um verdadeiro divisor de águas na animação brasileira: Meow (1981), de Marcos Magalhães, considerado um dos filmes mais importantes da nossa filmografia. Pela primeira vez, um curta animado brasileiro era reconhecido em um importantíssimo festival internacional, ganhando o Prêmio Especial do Júri do Festival em Cannes. Segundo Cesar Coelho, Meow prova que “em animação, o talento e engenhosidade superam qualquer barreira tecnológica ou orçamentária”. Impulsionado por esse bom momento vivido pela animação brasileira, e por seu próprio trabalho, quatro anos depois, Magalhães coordenou, em parceria com profissionais canadenses do National Film Board, um curso que se tornou referência na história da animação brasileira.


Meow (1981) é um dos filmes mais importantes da animação nacional

Confira trechos do filme:


BRASIL E CANADÁ

Na década de 1970, o Brasil compra o satélite BrasilSat do consócio canadense Spar/Aerospace. Como contrapartida, deveria ser firmado um acordo de transferência de tecnologia entre os países. Uma das ações foi uma coprodução entre o Brasil e o Canadá para formar um centro de excelência em audiovisual. Marcos Magalhães, que havia realizado uma especialização na National Film Board (NFB) do Canadá em 1982/1983, ficou responsável por intermediar esse acordo cultural e tecnológico.

Dessa parceria, surge o Centro Técnico Audiovisual (CTAv), que nascia para apoiar o desenvolvimento da produção cinematográfica no Brasil e promover a formação, capacitação e aperfeiçoamento de pessoal técnico necessário à atividade. Foi montada uma estrutura na cidade do Rio de Janeiro com equipamentos doados pelo NFB. Uma das ações iniciais do programa foi o primeiro curso profissional de animação do Brasil, que seria coordenado por Marcos Magalhães e teria aulas ministradas, na sede do CTAv, por professores vindos da NFB, os animadores Jean-Thomas Bedard e Pierre Veilleux.

Dez pessoas de diversas partes do país foram selecionadas para a primeira fase. Entre elas, a pernambucana Patrícia Alves Dias. “Foi um trabalho de formação que passava por várias técnicas e também por discussões teóricas, conceituais e de conteúdo. O trabalho de conclusão de curso era um filme, cada um fez um curta, mas um influenciava o curta do outro”, afirma Patrícia. A ideia era que os alunos retornassem às suas cidades de origem e montassem núcleos regionais de animação, com o intuito de disseminar o conhecimento adquirido. É possível afirmar que só após o acordo de cooperação entre o Brasil e o National Film Board do Canadá a animação brasileira passou a ganhar força e manter uma produção mais consistente. Da parceria, surgiram três núcleos de produção em animação, em Belo Horizonte, Porto Alegre e Fortaleza.

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Um dos mercados mais prolíferos para a animação é o segmento de séries de TV. Mas, na década de 1980, não havia espaço para produções nacionais, visto que a grade das TVs brasileiras era predominantemente ocupada por produções hollywoodianas. Porém, houve uma tentativa de quebrar essa hegemonia. Maurício de Sousa já era famoso por suas histórias em quadrinhos e buscou implantar a série televisiva da Turma da Mônica, usando sua influência e contatos. Foi a primeira experiência de se produzir animação em termos industriais no país, empregando cerca de 250 profissionais, além de contar com a ajuda de outras produtoras espalhadas pelo país. Porém, a série teve dificuldades de entrar nas grades de programação da TV e acabou indo diretamente para o mercado de vídeo doméstico ou reunida em um só filme e lançada no cinema.

Segundo Arnaldo Galvão, “Maurício de Sousa é o ponto fora da curva. Sucesso com quadrinhos e uma força sem igual também na produção audiovisual. Dos 50 filmes de longa metragem de animação produzidos em 100 anos de história, 20 foram produzidos por ele”.

A produção é interrompida na década de 1990 por conta da crise da produção audiovisual brasileira, na Era Collor, e só retorna em 2004, com o longa Cine Gibi. Mesmo com toda a dificuldade, o estúdio Maurício de Sousa foi responsável por 20 dos cerca de 50 longas nacionais lançados até hoje. É também dele a maior bilheteria de um filme nacional de animação, a única que bateu a marca de um milhão de espectadores. As aventuras da Turma da Mônica (1982) levou 1.172.020 pessoas aos cinemas nos anos de 1982 e 1983.

A década de 1980 viu também o lançamento do primeiro longa de animação nordestino, Boi Aruá, de 1985, realizado pelo artista plástico e animador baiano Francisco Liberato, que manteve uma produção praticamente isolada com seus filmes Anti-strofe (1972), Caipora (1974), Eram-se opostos (1977), Carnaval (1986), entre outros. Nas palavras de Arnaldo Galvão, “nosso quinto longa-metragem, e o primeiro produzido fora do eixo Rio-São Paulo, nasce do que o Brasil tem de mais profundo e mitológico. Usando como ponto de partida a linguagem da literatura de cordel, mas com o domínio gráfico adquirido ao longo de anos, e a trilha sonora que mistura o regional com o clássico, o resultado é uma obra-prima que funciona como um farol para gerações de realizadores”.

Em 2014, Liberato lançou o seu segundo longa (e também o segundo longa nordestino) Ritos de passagem. “Nos dois longas que fizemos, Boi Aruá e Ritos de passagem, as duas histórias abordam cenários e personagens sob uma perspectiva humanista como ainda encontramos no sertão nordestino pela cultura popular do cordel. O desenho utilizado na representação daquele cenário, vem com um conteúdo de vigor muito forte pela estética da cultura brasileira bem evidente e sempre renovada na riqueza expressional do povo, incluindo a música que na nossa obra ocupa um lugar de destaque. Tal é a importância de conduzir nossa obra no sentido pioneiro aqui atribuído”, explica o autor.

Boi Aruá (1985), de Chico Liberato, primeiro longa de animação nordestino

Apesar do crescimento da animação na década de 1980, faltava uma oportunidade para que os profissionais se reunissem e discutissem o futuro do segmento no país. O I Encontro de Cinema de Animação se deu em Olinda, no ano de 1987, organizado pelo pioneiro animador pernambucano Lula Gonzaga e sua esposa Silvana Delácio.

Houve mostras de filmes com o depoimento de vários animadores, a realização de quatro filmes coletivos e um fórum que deu origem à Carta de Olinda, a qual continha diversas reivindicações dos animadores, devidamente enviada à Embrafilme. Segundo o professor e pesquisador Antônio Moreno, em texto publicado na época, “O encontro foi um evento de extrema importância para o cinema de animação brasileiro, não só pela oportunidade de comprovar sua vitalidade, como colocar em debate e encaminhar sugestões à Embrafilme e ao Ministério da Cultura, para a solução de problemas primordiais”.

Mais dois encontros foram realizados, no ano seguinte, em 1988, na cidade de São Paulo, e, quatro anos depois, em 1992, um terceiro encontro aconteceu em João Pessoa. Eles foram muito importantes para um fortalecimento político dos animadores, que podiam, além de se conhecer, trocar ideias e expor as dificuldades e as demandas da classe.

Sobre o I Encontro de Cinema de Animação, Marcos Magalhães, um dos articuladores mais importantes para o desenvolvimento da animação brasileira, e que estava presente no evento, afirma: “Acho que este ambiente de união e participação política certamente deu frutos e favoreceu a criação de uma classe (os animadores brasileiros) extremamente unida e solidária. Anos mais tarde, o festival Anima Mundi de certa forma deu continuidade a este ambiente de integração e diálogo entre os animadores”.

Sentindo a necessidade de criar um evento regular que servisse como base para o encontro dos animadores de todo o Brasil, os animadores Marcos Magalhães, Aída Queiroz, César Coelho e Léa Zagury criaram, em 1993, o Festival Anima Mundi, hoje considerado um dos maiores do mundo. “O festival teve como um dos seus principais desafios e metas revelar as múltiplas formas que a arte de animação poderia assumir. Dar acesso ao público brasileiro à riqueza formal, temática e plural da produção agora cada vez mais espalhada pelo planeta. Paralelamente, buscava-se também ampliar as possibilidades da produção nacional criando intercâmbios, referências, quebrando barreiras e promovendo a organização do setor”, diz César Coelho.

Para Arnaldo Galvão, “o Anima Mundi é o carnaval de quem trabalha com animação. A hora de fugir com o circo. (…) Desde 1993 essa mistura de filmes, oficinas e troca de experiências funcionam como uma plataforma sólida para sonhos e realizações”.

O Anima Mundi vem cumprindo esse papel de reunir os animadores, formar público e ser uma vitrine para os filmes estrangeiros e brasileiros, visto que, especialmente na década de 1990, os escassos filmes que eram produzidos no país conseguiam, no festival, uma janela para serem exibidos a um grande público. Além disso, boa parte dos animadores profissionais do Brasil descobriu sua vocação ao assistir às mostras ou participar de oficinas e palestras do festival, como é o caso do animador carioca Marcelo Marão.

“Dentro do festival, a gente – a minha geração e a seguinte – conseguiu conhecer técnicas diferentes, estéticas diferentes, muito mais amplo do que a animação feita só para o público infantil. Eu fiz meu primeiro filme instigado pelo que vi nos primeiros cinco anos do festival e pela janela. Você saber que tem uma tela para essa quantidade de gente que vai assistir a sua animação, e isso foi acontecendo com mais pessoas. Em 1996, quando eu participei com meu primeiro filme, As cebolas são azuis, eram cinco filmes brasileiros; no ano seguinte, foram 20; no outro foram 40 e depois 100, e depois 200. E o festival foi, e é, fundamental para a formação profissional dos animadores no Brasil”, depõe Marão.

Anima Mundi: Léa Zagury, César Coelho, Aída Queiroz e Marcos Magalhães

ONDE ESTAMOS…

São 100 anos de animação nacional, mas podemos dizer que a maior parte dessa produção foi realizada nos últimos 20 anos. Marcelo Marão aponta que, além do Anima Mundi, que “fomentou a gana de produzir dos brasileiros”, os motivos do aumento da produção se dão também pela “organização dos profissionais de animação como classe”, com a fundação da ABCA – Associação Brasileira de Cinema de Animação, em 2003. “Pela primeira vez, a gente podia conversar com entidades públicas e privadas, com o Ministério da Cultura, para a criação de editais específicos para animação, edital de curta, desenvolvimento de longas, pilotos para TV”, afirma Marão.

Entretanto, o fenômeno do aumento de produções animadas, especialmente a partir de meados da década de 1990, não é exclusividade do Brasil. Na verdade, é uma tendência mundial. Isso por conta do advento da computação gráfica, que tornou os meios de produções animados mais acessíveis e baratos. O acesso a um computador mediano e programas como o Macromedia Flash foram fundamentais para que curiosos e profissionais tivesse as mesmas oportunidades de realizar um filme animado, sem a necessidade de materiais e equipamentos caros, como câmeras, trucas, acetato e a finalização em película. “Era o início de uma nova era, quando a tecnologia abria as portas da produção de animação, tornando cada vez mais acessíveis os meios de produzi-la”, declara César Coelho.

Porém, mesmo com o aumento no número de produções e de profissionais da animação, a última década do século XX e a primeira do século XXI foram um período de dificuldades e amadurecimento para a animação no Brasil. A maior parte do que se fazia ainda estava restrito ao segmento de motion graphics e publicidade. A produção autoral e artística estava praticamente limitada ao cinema de curtas-metragens, um mercado tão árido e hostil, que dificilmente se sustentaria sem o esforço heroico de alguns artistas e o fomento de órgãos governamentais.

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A partir do final da primeira década dos anos 2000, outros modelos de negócios começam a surgir e a fazer sucesso no mercado de animação do Brasil, além da publicidade, sempre presente. A internet, por exemplo, criou demandas voltadas à educação a distância, animação para websites, e jogos online. Mas a reviravolta no mercado da animação se deu com o implemento da Lei 12.485, que determinou a exibição de uma cota de produções brasileiras independentes dentro da programação dos canais a cabo, a chamada Lei da TV Paga. A demanda por produções animadas, especialmente séries, cresceu como nunca se viu no país. Estúdios de animação começam a se estruturar, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Coproduções para realização de séries são estabelecidas com empresas estrangeiras, como é o caso da série infantil Meu amigãozão, feita pela 2DLab em parceria com a Breakthrough Animation, do Canadá. “As séries são importantes no sentido de gerar trabalho contínuo e fonte de renda principal para muitos profissionais, além de defender uma propriedade intelectual local, que se converte em ativos culturais”, defende Andrés Lieban, criador de Meu amigãozão.

Ações governamentais começaram a ser implantadas. A mais importante delas foi o AnimaTV, que, nas palavras de Arnaldo Galvão, foi “uma das mais fecundas iniciativas envolvendo o MinC – Secretaria do Audiovisual, TV Brasil, TV Cultura e ABCA”. O programa ofereceu oficinas em várias cidades brasileiras para orientar as produtoras sobre como montar um projeto para uma série de TV animada. Foram enviados 257 projetos inéditos de 17 estados brasileiros. Desses, 17 foram selecionados para produzir um piloto. Por fim, dois pilotos, Tromba trem e Carrapatos e catapultas, foram escolhidos para virar séries. Um edital de incentivo como o AnimaTV vai além das duas séries finalistas. Vários dos 257 projetos iniciais acabaram conseguindo viabilizar sua produção no futuro, como por exemplo Zica e os camaleões, Historietas assombradas e Vivi Viravento.

“A produção brasileira de animação avançou muito além dos redutos da publicidade e de iniciativas isoladas de filmes autorais. Hoje, podemos dizer que existe uma indústria, ainda muito jovem, mas que já apresenta resultados significativos na produção de animação comercial”, afirma Aída Queiroz, animadora e produtora do Anima Mundi. Atualmente, são cerca de 50 séries brasileiras no ar. Algumas bem-conhecidas do público, que não imagina serem elas um produto originalmente brasileiro, como: Historietas assombradas, O irmão de Jorel, Peixonauta e a pernambucana Mundo Bita. Algumas dessas séries já extrapolaram o limite geográfico do país, sendo distribuídas para mais de 100 países. “O Brasil está sendo visto como um país que respeita prazos de produção, tem padrão de qualidade internacional e uma grande originalidade/diversidade estética”, afirma Andrés Lieban, criador da série Meu Amigãozão.

O menino e o mundo, de Alê Abreu, ganhou o Festival de Annecy, em 2014

Se as séries para TV estão conseguindo um retorno em termos de reconhecimento financeiro, o mesmo não pode ser dito dos longas-metragens, que não conseguem um retorno satisfatório nas bilheterias. Porém, em termos de reconhecimento, os nossos filmes vêm demonstrando que estamos no caminho certo. Por dois anos consecutivos, o país levou o principal prêmio no Festival de Annecy (FR), considerado o mais importante da animação mundial. O primeiro foi em 2013, com o filme Uma história de amor e fúria; o segundo, no ano seguinte, em 2014, com O menino e o mundo, de Alê Abreu (isso sem contar que em 2015, Guida, de Rosana Urbes, ganhou o prêmio de melhor curta-metragem).

O filme de Alê também foi a primeira animação brasileira a concorrer a um Oscar e foi comercializado em mais de 85 países. “Longas estão com uma produtividade inédita, temos 25 filmes em produção. Prêmios como os de Annecy para História de amor e fúria e O menino e o mundo são fundamentais para consolidar o estímulo a essa produção, apesar de o mercado nacional ainda não receber bem o filme brasileiro e, internacionalmente, o lançamento dos nossos títulos se reduzir a exceções”, confirma Andrés Lieban.

Extra: assista a O menino e o mundo


Segundo Marão, o problema das bilheterias dentro do Brasil se deve à distribuição. “No cinema, a gente continua nessa luta bem grande de distribuir um longa-metragem de animação brasileiro. Então, cada vez que a gente consegue avançar, é uma dificuldade nova pela frente.” Essa situação muito se deve ao domínio que os filmes comerciais americanos ainda exercem nas salas de cinema, deixando as animações nacionais com pouco espaço e horários reduzidos de exibição. Para Liesban, “O market share das salas brasileiras é majoritariamente de filmes pra família, com grande destaque para os de animação, que fazem bilheterias enormes. No entanto, a participação brasileira nessa fatia é irrisória”.

Um exemplo recente de como um longa de animação brasileiro pode conseguir êxito nas bilheterias é o filme Lino, de Rafael Ribas, produzido pela StartAnima e distribuído pela Fox Film do Brasil, que atingiu mais de 115 mil espectadores, alcançando cerca de R$ 2 milhões em bilheteria, a maior abertura de uma animação nacional até hoje. Porém, esse número ainda está longe de lançamentos internacionais como Emoji movie, que arrecadou no final de semana de estreia 5,9 milhões de reais e vendeu 374 mil ingressos.

Lino (2017), de Rafael Ribas, foi sucesso de bilheteria no Brasil

É importante destacar um aspecto muito positivo da animação brasileira, como um todo. Enquanto vários países como China, Coreia, Filipinas e Índia funcionam como mão de obra (barata) para produções dos grandes centros, o Brasil vem conquistando um papel de player no mercado internacional. Ou seja, o conteúdo que produzimos aqui é um conteúdo nosso, são nossas histórias, nossas ideias e nossos valores. “O Brasil nunca topou ser service, ser um braço de trabalho do mercado mundial. Nós nascemos com essa vontade de ser autores”, afirma Alê Abreu, diretor do aclamado O menino e o mundo. César Coelho corrobora essa ideia: “Essa é uma distinção importantíssima, pois, além de criamos e exportarmos conteúdos de animação, estamos criando e estabelecendo no mercado propriedade intelectual brasileira. As crianças de hoje já poderão, quando adultas, lembrar seus heróis de infância sabendo que eles são brasileiros”.

Talvez a maior dificuldade que a animação do país enfrente hoje é a falta de uma mão de obra especializada, especialmente quando falamos de produção de séries para TV. Esse é um problema bem característico de um mercado ainda em crescimento. Pois existe uma produção, que não é grande, mas cresceu o suficiente para precisar de mais trabalhadores. Porém, não se pode formar profissionais em excesso sem uma garantia de que existirá demandas futuras.

Sobre esse aspecto, Marão aponta que “a formação é o problema maior e deve acontecer concomitantemente ao fomento de novas produções. Temos de formar pessoas de um modo mais acadêmico e menos autodidata”. Para isso, é necessário um planejamento de fomento e formação através de editais públicos que entendam as necessidades do mercado de animação, que exige maiores investimentos e prazos mais longos. “A dificuldade seguinte é fazer os órgãos públicos compreenderem as especificidades da produção de uma animação em relação a uma ficção e documentário”, completa Marão.

PARA ONDE VAMOS?

Em 2018, o Festival de Annecy homenageará a animação brasileira. Há o que comemorar, mas ainda mais para construir, pois o Brasil vive os dilemas e as dificuldades de um país periférico, lutando para formar uma indústria que sustente uma produção intensa e constante. Os números comprovam que a animação no Brasil avançou mais na última década do que nos 90 anos anteriores, tanto em termos quantitativos (número de filmes) quanto em qualitativos (número de participações e prêmios em festivais internacionais).

Em 2018, o Festival de Annecy vai homenagear a animação brasileira

Para a próxima década, espera-se o aperfeiçoamento dos programas e incentivos vindos do governo e de outras instituições. Na opinião de Arnaldo Galvão, “avançamos e ganhamos muitas batalhas, mas precisamos de ajustes constantes para continuar competindo: uma burocracia leve que entenda rápido os acordos de coprodução e liberação de recursos. Precisamos ter acesso a equipamentos e softwares com preços mais competitivos. Precisamos de uma distribuidora estruturada que fure o bloqueio aos longas de animação brasileiros, dentro do próprio país. E precisamos de leis ágeis que entendam a velocidade das transformações do mercado”.

Os realizadores dependem basicamente de financiamentos vindos do governo para produzir. “A maioria dos países que possuem um audiovisual forte tiveram um investimento muito grande do governo inicialmente, seja de fomento, seja de proteção ao que é produzido nacionalmente. Esses países entenderam que o cultural também está muito vinculado ao econômico”, afirma Marão. Assim, fazem-se necessárias estratégias para preparar de maneira adequada os profissionais, potencializar a produção, divulgar e comercializar os produtos nacionais. E tudo isso passa por resoluções governamentais. O nosso mercado evoluiu tanto nos últimos anos, não se pode deixar que esse progresso se perca por uma visão míope de quem está no poder. Como disse Aída Queiroz, ao ser perguntada sobre o futuro da animação brasileira: “Vai depender do futuro do Brasil”.

FEITOS EM PERNAMBUCO

Se a animação brasileira está comemorando 100 anos, o cinema animado feito em Pernambuco existe há menos de meio século. As primeiras menções a um filme de animação local foram publicadas em outubro de 1968 no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, em três reportagens que mencionavam o IV Festival Brasileiro de Cinema Amador. Entre os concorrentes estava A luta, de Sérgio Bezerra Pinheiro, realizado com a técnica de pintura direta na película 35mm, e identificada como sendo uma obra pernambucana. Foi contemplada com o troféu de melhor animação no festival, porém, dentro da historiografia pernambucana, não existe menção ao filme ou ao seu realizador.

Em 1972, no início do Ciclo do Super 8, o cineasta Fernando Spencer juntou-se ao animador Lula Gonzaga para realizar Vendo/ouvindo, um experimento que, nas palavras de Lula, é uma “crítica simbólica à censura imposta pela ditadura militar”. Realizado em poucos dias, de forma simples e utilizando acetatos usados, o filme mostra um rosto que tenta falar, mas, quando finalmente abre a boca, surge uma tarja onde está escrito ‘FIM’. Ainda em 1972, outras quatro animações foram produzidas no Recife. Todas utilizando a técnica de intervenção direta sobre a película, entre as quais Puf no Cosmo das Cores – realizada pelo cineasta Osman Godoy com canetas de retroprojetor sobre a película virgem – e a série Dinâmica dos traços I, II e III, do artista plástico Ypiranga Filho, que raspou a película velada com lâminas de barbear, lixas e palha de aço sobre um espelho.

O Ciclo do Super 8 rendeu mais oito animações, cinco delas realizadas em 1975 por Walderes Soares (PIX-PGE 1, 2 e 3, PIX-Close e O Homem que punha a mão para fora). Spencer foi autor do primeiro stop motion do estado, As corocas se divertem (1977), usando bonecas de pano compradas em uma feira de artesanato. E, por fim, o artista plástico Paulo Brusky produziu dois filmes baseados em suas experiências com arte xerox: Xeroperformace e LMNUWZ, fogo!, ambas de 1980.

O Ciclo do Super 8 foi o primeiro boom da animação pernambucana. Isso se deveu à facilidade de aquisição e manuseio do equipamento. Porém, com exceção de Lula Gonzaga, nenhum outro diretor do Ciclo voltaria a fazer um filme animado. Sendo assim, as décadas de 1980 e 1990 foram quase nulas em relação ao cinema de animação em Pernambuco. Um fator determinante também foi a substituição da película Super 8 pelo vídeo analógico. Esse equipamento não possuía a função quadro a quadro, o que dificultava muito a confecção de um filme animado.

Nessa entressafra, podemos destacar filmes feitos por pernambucanos no Rio de Janeiro. No fim da década de 1970, Lula Gonzaga lançou dois curtas em 35mm: A saga da asa branca (1979), homenagem operística à música Asa branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, e Cotidiano (1980), uma refilmagem de sua primeira animação, Vendo/ouvindo. Depois de um estágio na Zagreb Film, na Croácia, ele dedicou-se a ministrar oficinas itinerantes de animação artesanal.

Na década de 1980, as principais produções se deveram à Patrícia Alves Dias, que participou de um curso de formação no Rio de Janeiro, fruto de uma parceria entre a Embrafilme e o National Film Board do Canadá, onde realizou Presepe (1986). Dois anos depois, Patrícia, em conjunto com a TV Viva, lançaria O pavão misterioso (1988), uma animação stop motion gravada com vídeo U-matic.

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O fim da década de 1990 e início dos anos 2000 foram marcados por uma revolução tecnológica que teve um impacto enorme na produção animada por conta das plataformas digitais, que não só facilitaram o processo de produção, mas também tornaram acessível a qualquer entusiasta realizar um filme animado. O marco inicial dessa nova fase é o filme Ontem x hoje (1999), de André Rodrigues, que trata exatamente das tecnologias antigas versus as novas, ao mostrar a luta entre um boneco 2D, desenhado em papel, e um boneco 3D. O filme foi feito por ex-alunos de Lula Gonzaga, que viriam a se tornar uma nova geração de animadores pernambucanos, ao fundar a Quadro a Quadro, primeira empresa do Recife a ter como foco inicial a animação.

No início da década de 2000, a produção foi de certa forma tímida, porém constante. A partir de 1999, só o ano de 2003 não registra o lançamento de uma animação. Os destaques dessa retomada são O bicho (2000), de Antero Assis; Transportes (2001), de Daniel Lopes; A árvore do dinheiro (2002), de Marcos Buccini e Diego Credidio, ganhadora do prêmio do cyberjuri do Anima Mundi Web. Em 2005, aconteceu o maior boom, até então, de animações pernambucanas: 14 filmes. Foi o ano da fundação do Núcleo de Animação da AESO, que, durante o final da década, foi responsável por alguns dos mais importantes filmes do estado, como A morte do Rei de Barro (2005); Na corda bamba (2006); O jumento santo e a cidade que acabou antes de começar (2007); e Voltage (2008). Outro destaque é a animação 3D Até o sol raiá (2007), ganhadora do prêmio principal do Anima Mundi.

Até o sol raiá venceu a principal categoria do Anima Mundi em 2007

A primeira década dos anos 2000 foi um período de crescimento quantitativo e consolidação de uma produção de qualidade suficiente para concorrer em grandes festivais do país. Porém, a maior parte dos filmes lançados ainda eram amadores e, na maioria das vezes, bancados com recursos próprios. A animação em Pernambuco ainda não era um mercado atraente e alguns diretores não passaram dos primeiros filmes. Muitos desistiram e outros tantos acabaram se inserindo na publicidade ou nas empresas de jogos eletrônicos.

De 2010 em diante, esse contexto muda com o crescimento dos editais de fomento, em especial o Funcultura Audiovisual, possibilitando que alguns animadores continuem produzindo conteúdo autoral. É o caso de Nara Normande, que em 2011 lança o Dia estrelado. Iniciativas como as oficinas do Cine Sesi e os festivais de cinema permitem que os animadores tenham uma fonte extra de renda e possam dedicar-se aos seus projetos pessoais.

Por falar no Cine Sesi, outra questão importante a se destacar é o crescimento do número de animações em decorrência de vários filmes originários de oficinas, projetos de graduação ou mesmo disciplinas de cursos superiores. Na maioria das vezes, esses filmes têm um propósito de servir como exercício para alunos iniciantes e não têm a mesma ‘força’ de um filme feito por um animador experiente, ou um viés mais autoral e artístico. Porém, o grande número de filmes de formação pode indicar um futuro promissor para a animação local.

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Uma nova realidade para a animação brasileira começa a surgir com a Lei da TV Paga, a 12.485, promulgada em 2011, que determinou a exibição de uma cota de produções brasileiras independentes dentro da programação dos canais a cabo. Essa lei estimulou a criação de séries animadas no país, mas esse florescimento ficou restrito ao eixo Sul – Sudeste. Em Pernambuco, o que sentimos foi uma evasão de mão de obra para os grandes centros.

Porém, a demanda acabou crescendo, junto com a visão dos gestores dos editas estaduais, que começaram a apostar em séries para TV. E, apesar de alguns esforços anteriores, somente em 2013 surgiu uma série pernambucana que conseguiu ser finalizada e comercializada para além dos limites do estado: O Mundo Bita. O personagem, criado por Chaps Melo, tinha o objetivo inicial de ilustrar aplicativos e e-books, porém, o clipe musical fez um grande sucesso no Youtube e a empresa Mr. Plot, da qual Chaps é sócio, resolveu investir em uma série musical com o Bita. Após o sucesso com a venda de DVDs, distribuídos pela Sony, e com a comercialização de interprogramas em canais infantis e plataformas de streaming, a Mr. Plot aposta em uma nova série com o Bita, que investe mais na dramaturgia.

Com o sucesso do Bita e com o financiamento dos governos estaduais e federais, várias outras séries têm surgido em Pernambuco. Talvez a produtora que mais se destaca nesse cenário seja a Viu Cine, que acabou de finalizar a primeira temporada da série Além da lenda, patrocinada pela Ancine, e que já teve o projeto de um longa baseado na série aprovado em edital. A Viu Cine está com mais três séries em pré-produção ou com financiamento já garantido: Pedrinho e a chuteira da sorte, com patrocínio do Funcultura e previsão de lançamento para 2018; Iuri Udi, aprovada no edital Prodav 04 da Ancine, e Zoopedia, também com recursos do Funcultura. Com isso, a Viu Cine é a produtora que mais está contratando mão de obra no estado.

Mundo Bita: de clipe musical a bem-sucedida série pernambucana

Este ano, a produtora Z4 finalizou a série Bela Criativa em 3D, indicada a melhor série de animação no ComKids Festival Prix Jeunesse Iberoamericano, que aconteceu em São Paulo. Já a produtora Carnaval está produzindo Bia desenha, em 2D. Outros quatro projetos de seriados animados foram aprovados pelo Funcultura. Também da Carnaval, Dó ré mi fadas, baseada na dupla musical infantil Fadas Magrinhas, que já está com o piloto pronto e os roteiros de 13 episódios.

O próximo passo, segundo a produtora Nara Aragão, é conseguir “um canal para coproduzir ou para pré-licenciar e tentar um financiamento via Fundo Setorial do Audiovisual”. Estórias extraordinárias, com direção de Olímpio Costa, está na fase de pré-produção, e, segundo o autor, trata de “como se deu o fantástico na periferia da periferia do capitalismo”. E Pipo e Fifi, baseado em um premiado livro infantil da autora Caroline Arcari, que trata da prevenção da violência sexual na infância, que também está na fase de pré-produção. As aventuras do menino pontilhado, lançado em 2016 como curta, hoje busca financiamento para os episódios.

A maior parte das séries produzidas no país tem como público-alvo as crianças; em Pernambuco, não é diferente. Porém, a Produções Ordinária investe em séries e filmes para adultos, com humor nonsense, sempre dialogando com a cultura regional, e, em plena era digital, utilizando a técnica de recorte analógico, ou seja, imagens de papel recortadas e animadas quadro a quadro. Entre as principais obras, estão Noisé, que disseca expressões locais como “pirangueiro” e “fuleiro”; e a série Lá vem, que desconstrói figuras mitológicas locais, como a Perna Cabeluda, a Comadre Fulozinha e a LaUrsa. A Produções Ordinária acabou de lançar seu primeiro curta-metragem, Fazenda Rosa.

Assim como na conjuntura nacional, a animação pernambucana nunca esteve tão produtiva. Olhando para a frente, as perspectivas são muito positivas. Pernambuco tem um dos melhores editais de fomento do Brasil, além de um riquíssimo repertório cultural a ser explorado. De 2010 até o momento, já se produziram mais filmes do que em toda a década passada, então podemos esperar muito da produção pernambucana nos próximos anos. O desafio agora é fomentar mais o mercado para manter os bons profissionais no estado e possibilitar que eles se dediquem integralmente à área de animação. É preciso formar melhores animadores, mais especializados e capacitados, e elevar o nível das animações, tanto tecnicamente quanto conceitualmente. A superação desses desafios poderá transformar a animação periférica pernambucana em um dos principais centros produtores do país.

MARCOS BUCCINI, é designer, doutor em Comunicação pela UFPE e professor do Núcleo de Design e Comunicação da mesma instituição. Desde 2002, trabalha com cinema de animação, produziu e dirigiu diversos curtas-metragens, que somam mais de 50 prêmios. Em novembro de 2017, Buccini lançará o livro Trajetória do cinema de animação em Pernambuco

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