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A África de língua espanhola e suas literaturas

De acordo com o crítico literário Mbaré Ngom, a expressão 'literaturas africanas de língua espanhola' daria conta dos textos literários africanos originalmente escritos em castelhano

TEXTO Amarino Queiroz

01 de Julho de 2017

Ilustração Hallina Beltrão

[conteúdo vinculado ao especial da edição 199 da Revista Continente (julho 2017]

Dentre os idiomas europeus que se apresentam como línguas oficiais, de educação e de expressão literária no contexto africano, ou seja, o francês, o inglês, o espanhol e o português, por certo o castelhano se perfila como o mais invisibilizado de todos. Em sua ocorrência na África, este idioma ibérico está concentrado em áreas descontínuas de parte da costa atlântica setentrional do continente, de características marcadamente arábicas, berberes e francesas (Marrocos, Saara Ocidental, Argélia) e num pequeno enclave da zona litorânea ao sul do deserto do Saara, de forte influência banta, correspondente ao território da República da Guiné Equatorial. Não obstante, a considerável ascensão da escrita literária produzida originalmente em espanhol por autores e autoras africanos vem despertando especial interesse em alguns setores das críticas hispanista e africanista ao redor do mundo.

De acordo com o crítico de literatura Mbaré Ngom (2007), a expressão “literaturas africanas de língua espanhola” daria conta do conjunto representado pelos textos literários africanos originalmente escritos e veiculados em castelhano. Em livre interpretação, sugeriríamos que o conceito aponta para um conjunto ainda mais amplo, que compreende textos literários africanos originalmente escritos e veiculados em língua castelhana, mas que, ao ultrapassar os espaços convencionados das fronteiras nacionais ou das oficialidades linguísticas, avança e interage por territórios culturais diversos, assim identificados:

Disposição interna 
Compreende manifestações circunscritas às fronteiras territoriais do continente africano. Nas antigas possessões espanholas das Canárias, Ceuta e Melilha, ainda que suas expressões literárias sejam enquadradas e assimiladas como “literatura espanhola”, encontrando exemplos em Maribel Lacave, das Canárias, ou em Mohamed Toufali, de Melilha. Em alguns territórios afro-arábico-francófonos do Marrocos e região de Tinduf, Argélia, sede dos acampamentos para refugiados políticos do Saara Ocidental: apresentam prosa e poesia fortemente influenciadas pela tradição árabe oral e escrita. Nos dois países oficialmente hispanófonos do continente (Saara Ocidental e Guiné Equatorial), onde é flagrante a convivência e a interação com as literaturas orais e escritas em línguas vernáculas (árabe hassania, no caso do Saara, e fangbisiobubi, crioulo anobonês, no caso da Guiné Equatorial).Em algumas áreas subsaarianas bantófonas/francófonas/anglófonas (Camarões), nas quais, por diversos motivos, é ascendente a utilização do castelhano como língua original de criação na prosa ficcional, na poesia e no ensaio.

Disposição diaspórica
Agrupa regiões do continente americano que têm em comum o passado colonial espanhol e a migração forçada de populações africanas escravizadas. Seus textos tematizam ou referenciam matrizes africanas, mesclando elementos da oralidade tradicional ou contemporânea com o letramento em língua espanhola. 


América Central e Caribe oficialmente hispanófono, com nomes como Nicolás Guillén, Georgina Herrera e Nancy Morejón, em Cuba; Carlos Wilson “Cubena” no Panamá; Sherazada Vicioso, na República Dominicana, ou Quince Duncan e Shirley Campbell, na Costa Rica.

América do Sul, com Manuel Zapata Olivella e Mary Gureso, na Colômbia; Luz Chiriboga, no Equador; Nicomedes Santa Cruz, Lucía Charún Illescas e Mónica Carrillo, no Peru, ou Virginia Brindis de Salas e Cristina Rodríguez Cabral, no Uruguai.


Disposição peninsular
Reúne escritores e escritoras de diferentes nacionalidades africanas que, por razões de ordem pessoal, política ou profissional estabeleceram no território espanhol a sua plataforma de atuação. Dentre estes, Landry Miampika, do Congo; Abdoulaye Bilal Traoré, do Senegal; Boni Ofogo e Inongo Vi-Makomé, dos Camarões, além de vários autores saarauis e equato-guineenses.

Embora o governo espanhol se refira às cidades de Ceuta e Melilha e ao Arquipélago das Canárias na condição de comunidades autonômicas, a situação política dos três territórios apresenta-se delicada. Existem organizações como o Movimiento por la Autodeterminación e Independencia del Archipiélago Canario – MPAIAC, que defendem textualmente a autonomia político-administrativa das ilhas, considerando-as colônias da Espanha a oeste da África. Esses segmentos pela independência encontram, porém, dentro do próprio território canário, setores que tanto defendem a manutenção do atual status político-administrativo como negam a africanidade das ilhas. Já as regiões de Ceuta e Melilha são reivindicadas pelo governo marroquino e por grupos que apoiam sua reanexação àquele país norte-africano. 

Em Tinduf, Argélia, a presença do castelhano se faz sentir na especial condição de idioma de resistência, tanto através da comunicação diária e de sua adoção no ensino como pelo seu cultivo na criação musical e literária. De acordo com Francisco Cenamor (2008), no mundo árabe, o saaraui é conhecido como um povo de poetas e sua atividade apresenta, em síntese, três influências principais: a tradição oral fortemente apegada à natureza e às vivências de seu país, a poesia em castelhano da Espanha e da América e a luta pela sua autonomia e autodeterminação.

A Generación de La Amistad constitui um dos mais ativos grupamentos de escritores reunidos em torno da causa saaraui no exílio. Compõem esse coletivo nomes como Limam Boisha, Chejdan Mahmud, Ali Salem Iselmu, Mohamed Salem, Bahia Awah, Luali Lehsan Salama, Saleh Abdalahi ou Zahra Hasnaui. Divididos, pois, entre os mundos arábico-africano e europeu-ibérico, além de desenvolverem intensa relação com o universo hispano-americano, muitos dos autores saarauis refletem, também ao longo de suas obras, uma multiplicidade de vivências culturais que, por sua vez, reivindicam, real e simbolicamente, a ampliação desses espaços. 

O caráter híbrido flagrado através das expressões literárias guinéu-equatorianas alimenta também as relações que envolvem, ao mesmo tempo, e numa ordem bastante peculiar, a relação dialógica entre o oral e o escrito, o tradicional e o contemporâneo, o hispânico e o africano. O escritor e crítico Donato Ndongo (2006) chama a atenção para o fato de que o universo literário em língua espanhola começaria a encontrar, especificamente nessa produção africana da Guiné Equatorial, a convergência para o terceiro vértice de um eixo que configura, na atualidade, a geografia linguística de um idioma oficialmente partilhado por europeus, americanos e africanos. Isso se não quisermos considerar, diga-se de passagem, a expressão asiática conformada na vasta e igualmente ignorada literatura filipina em espanhol. A aposta de Ndongo-Bidyogo é a de que a literatura guinéu-equatoriana cumprirá o seu papel na tarefa de revitalizar a língua e a cultura em língua espanhola, uma vez que tanto uma como a outra já não poderão ser compreendidas, se as dissociarmos do aporte afro.

Ainda que muitos dos autores camaronenses sejam literariamente bilíngues ou trilíngues, torna-se cada vez mais consistente a presença de ensaístas (Monique Nomo Ngamba, Sosthène Onomo-Abena, Michel-Yves Essissima, Wilfried Mvondo) e de poetas e ficcionistas (Robert Marie Johlio, Alain Lawo-Sukam,Romuald-Achille Mahop Ma Mahop, Germain Metanmo, Michel Feugain, Guy Merlín Tadoun, Marcel Kemadjou, Tikum Mbah Azonga) que escrevem textos originais em castelhano e ao mesmo tempo transitam por gêneros e sistemas literários e linguísticos diferenciados, acumulando, assim, uma expressão significativamente plural.

Essa escrita, caracterizada inicialmente pelo testemunho da emigração e do exílio, vem se ampliando tematicamente e envolvendo escritores das mais variadas procedências, entre os quais poderíamos destacar Agnès Agbotón, do Benim; Jammet Kalilu, de Gâmbia; Sidi Seck, do Senegal; Sukeina Taleb, Ebnu e Fatma Ghalia, do Saara Ocidental; María Nsúe, Remei Sipi e Justo Bolekia, da Guiné Equatorial; Mohamed Rekab, Said Jedidi e Mohamed Sibari, do Marrocos; ou, ainda, Mbol Nang e Céline Clémence Magnéché Ndé, dos Camarões.

Nessa trajetória, evidencia-se o caráter polifônico de grande parte dos discursos identitários e culturais, formatados muitas vezes a partir de experiências literárias à margem, ainda que produzidas em contextos onde também a língua castelhana comparece como protagonista, lado a lado com outros idiomas de literatura. Por esse motivo, a visibilidade dos textos poéticos, ficcionais e ensaísticos africanos em língua castelhana faz-se tanto oportuna como necessária e inevitável, como bem demonstra o contexto americano oficialmente falante de espanhol, cujos exercícios criativos tematizam ou referenciam matrizes abertamente africanas.

Tanto o território nacional espanhol como seu panorama literário vêm sendo ocupados gradualmente por um segmento de cidadãos escritores e escritoras de procedência variada, não se limitando àqueles oriundos das antigas colônias e protetorados espanhóis na África. Toda essa movimentação aliada ao interesse de um curioso público leitor passou a chamar a atenção do mercado editorial, o que teria motivado também a criação, por parte do Instituto Cervantes, de uma biblioteca africana que veicula amostras de obras originais assinadas em castelhano por esses autores e autoras. 

É sobretudo a partir do exílio na Espanha que se desenvolve praticamente toda a atual literatura hispano-saaraui e onde se encontra sediada uma de suas principais plataformas, a anteriormente referida Generación de la Amistad Saharaui. É também a partir da antiga metrópole colonial que os guinéu-equatorianos vêm abrindo um expressivo espaço literário, no qual Donato Ndongo e Juan Tomás Ávila Laurel se perfilam, entre outros, com os conterrâneos Trifonia Melibea Obono Ntutumu e Francisco Zamora Loboch. 

As trajetórias literárias hispano-africanas e afro-hispânicas tem revelado escritores e escritoras hispanógrafos atuantes nos diversos quadrantes do mundo contemporâneo. O exercício de transversalidade cultural e linguística que caracteriza o conjunto sinaliza, individual e/ou coletivamente, distintas motivações estéticas e faz emergir, de forma cada vez mais consubstanciada, uma cartografia cultural que tanto aproxima como distingue essas experiências daquelas operadas a partir da realidade peninsular e mesmo da hispano-americana. Sob essa perspectiva de abertura e ampliação dos caminhos já trilhados, faz-se necessário que o conhecimento e o estudo das produções literárias africanas de língua espanhola não permaneçam relegados à obscuridade e ocupem, efetivamente, seu merecido lugar junto ao público leitor brasileiro. 

 

 

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