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Utopias para sobreviver ao caos

Festival de teatro chega à sua quinta edição com espetáculos que trazem a inquietação e a busca por compreender o homem na contemporaneidade

TEXTO Márcio Bastos

01 de Maio de 2017

Grupo português Circolando propõe uma investigação sensorial no espetáculo

Grupo português Circolando propõe uma investigação sensorial no espetáculo "Noite"

Foto José Caldeira/Divulgação

[conteúdo da ed. 197 | maio 2017]

Em um momento
no qual o conceito do real é cada vez mais poroso (vide a proliferação das fake news), o absurdo pode se tornar a regra sob o manto da salvação, de um futuro que olha para o passado e promete resgatar valores “fundamentais”, cuja função parece ser manter privilégios e barrar o avanço da pluralidade. Uma descrição que parece capturar a essência do Brasil em 2017.

Buscar formas de problematizar e transformar esse cenário tem sido a preocupação cada vez maior dos artistas de teatro do país. Norteado pelo conceito de distopias e realidades, o Trema! Festival de Teatro, em sua quinta edição, que ocorre de 3 a 14 de maio, no Recife, endossa esse movimento e propõe olhares múltiplos sobre o Brasil e os “Brazis”.

Fundado em 2012 com o intuito de ser um festival voltado para a produção de grupos, o Trema! vem conseguindo, em um curto espaço de tempo, se firmar como um dos mais importantes eventos de artes cênicas do Nordeste. Em Pernambuco, a mostra tem assumido um lugar que se afasta da necessidade de promover uma grade extensa (porém, sem muito conteúdo), preferindo montar uma programação enxuta, com diretrizes curatoriais claras e voltadas para a pungência da produção contemporânea.

“Percebíamos que o teatro de grupo, configurado pela pesquisa continuada, acabava sendo relegado em alguns festivais. Isso se dava pelo caráter destes trabalhos, que não estava amparado pela figura de ‘grandes nomes’ ou celebridades que fariam encher os teatros facilmente, mas pela pesquisa e experimentação de linguagem. Eu me deparava com trabalhos maravilhosos e me perguntava ‘como isso nunca chegou ao Recife?’. Então, resolvemos encarar esta batalha de sermos agentes atuantes para viabilizarmos estes encontros”, explica Pedro Vilela, que integra a plataforma Trema! junto a Mariana Rusu e Thiago Liberdade.

Desde o ano passado, porém, o festival aboliu as restrições para produções individuais, entendendo que o conceito de pesquisa continuada não se restringe à criação coletiva. Esse movimento se deu também pela própria trajetória de Vilela, que, antes, integrava o Grupo Magiluth. “Ao sair de um grupo, percebi que esse recorte poderia ser um agente excludente. Isso também se relacionava a uma conjuntura nacional de diferentes artistas que ou iniciavam novos processos distantes de seus antigos grupos (caso da Grace Passo com o Espanca) ou de grupos que se associam com produtores para viabilizar sua manutenção. Percebi também que a tão falada continuidade de pesquisa e experimentação de linguagem não se reduzia aos grupos teatrais, ainda que, em sua maioria, ainda estejam neles”, pontua.

CRISE E ARROCHO
É de se destacar o papel do Trema! no cenário de artes cênicas de Pernambuco. Se, antes, eventos como o Festival Recife do Teatro Nacional, promovido pela Prefeitura do Recife, cumpriam o papel de trazer à cidade um recorte vigoroso do que está sendo produzido no nível local e nacional, ajudando também a formar público, hoje, o que se vê é um esvaziamento dessas iniciativas. O FRTN, inclusive, chegou a não acontecer em 2014, por uma opção da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura da Cidade do Recife de torná-lo bienal.

Posteriormente, a decisão foi revogada, mas seus efeitos danosos permanecem. A mostra, que chegou a ser uma referência no Nordeste, hoje perdeu força e credibilidade (vários cachês da última edição, realizada em novembro de 2016, ainda estão com previsão de pagamento para este mês, sob protesto dos artistas).

A situação, no entanto, não é sintomática apenas em Pernambuco. Diante do arrocho financeiro pelo qual atravessa o país, os festivais de artes cênicas têm passado por um profundo processo de reformulação.“A ‘crise’, que automaticamente fez reduzir os recursos para suas realizações, obrigou a todos repensarem seus modelos, seus objetivos e formatos. E disto fez surgir o investimento em festivais com menor duração, mas com grande potência em suas curadorias, privilegiando questões básicas que andavam esquecidas, como o encontro, o diálogo”, acredita Vilela.

Orçado em R$ 230 mil, o festival tem apoio do Ministério da Cultura e do Itaú, que entrou com 50% do valor total. Para Vilela, o incentivo financeiro por parte da administração pública deveria ser, por essência, uma baliza para os produtores, diminuindo o preço dos ingressos e, assim, popularizando o acesso.

“Acho que nós artistas devemos ser referências no que fazemos, principalmente por lidarmos cotidianamente com dinheiro público. Criou-se a falsa ideia de que somos ‘mamadores’ de dinheiro público e isso é uma leitura inconsequente. O grande problema é como a Lei Rouanet vem sendo empregada, principalmente, em produtos que por si só possuem capacidade de viabilização no mercado. Quando um festival recebe milhões para sua realização e não cumpre o princípio básico de acesso à população, democratizando os valores de ingressos, para mim há algo errado nessa cadeia. Para que realizarmos um festival de teatro com ingressos a R$ 70? Para retroalimentarmos quem tem condições de acesso a essas obras em qualquer momento do ano? Nosso pensamento é contrário: queremos ingressos a preços acessíveis, porque queremos mudar paradigmas, desmontar estruturas e sabemos que o teatro é potente para isso”, reforça.

UTOPIAS DIÁRIAS
Para esta edição, o Trema! usa como referência curatorial uma indagação de Aldous Huxley, autor do distópico Admirável mundo novo: e se esse mundo for o inferno de outro planeta? Assim, sua grade congrega espetáculos que têm em seu cerne a inquietação e a busca por compreender o homem inserido na contemporaneidade.

Entre os destaques, está a Trilogia abnegação, do Tablado de Arruar (SP). Escritos por Alexandre Dal Farra, os espetáculos abordam as estruturas políticas do Brasil através da investigação da história de um partido político de esquerda, formado por trabalhadores, da sua fundação à chegada ao poder. Também direcionando uma lente de aumento em busca das minúcias do ethos nacional, o Club Noir (SP) traz Leite derramado, adaptação do livro de Chico Buarque. Na peça, o protagonista, descendente de portugueses escravocratas, de políticos corruptos e aliados à ditadura militar, passa seus últimos dias abandonado em uma maca de hospital público, precisando lidar com as consequências de injustiças que ajudou a perpetuar.

A convivência e a opressão do homem pelo Estado também norteiam a dramaturgia de Máquina Fatzer– Diga que você está de acordo, do Teatro Máquina (CE), que acompanha quatro soldados confinados em um local à espera de alguma revolução. Em Cabeça (Um documentário cênico), o Complexo Duplo (RJ) leva ao palco as canções do álbum Cabeça de dinossauro, dos Titãs, lidas como reflexo de seu tempo, os anos 1980, e dos dias atuais.

No campo que permeia mais o abstrato, dois espetáculos destacam-se por sua investigação do sensorial: Noite, do Circolando (Portugal) e dois trabalhos de Flávia Pinheiro (PE), Diafragma 1.0: Como manter-se vivo e o inédito Utopias to everyday life, em parceria com Carolina Bianchi (SP). Orgia, do Teatro Kunyn (SP), também permeia o campo do simbólico, adaptando para o palco narrativas do argentino Tulio Carella, em que relata o desabrochar de sua homossexualidade no Recife dos anos 1960, fornecendo um retrato delicado sobre a natureza humana e a cidade da época, com seus cheiros, cores e tipos.

“O teatro, mais uma vez, se coloca como um agente de entendimento de nossa humanidade, antevendo questões ou jogando lupas para dados concretos de que teimamos fugir; olhando mais fundo nosso próprio país. Porque,no fundo, o teatro serve para refletirmos sobre o nosso próprio estar no mundo”, enfatiza Vilela. 

 

 

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