Arquivo

O frustrado resgate de Napoleão Bonaparte em 1817

TEXTO Isabel Lustosa

01 de Março de 2017

Napoleão: dos muitos retratos do imperador, este evoca o estado de exílio aqui referido

Napoleão: dos muitos retratos do imperador, este evoca o estado de exílio aqui referido

Pintura Napoleon Bonaparte, de Benjamin Robert Haydon/acervo national portaria gallery, London

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 195 | março 2017]

Depois da sensacional volta de Napoleão Bonaparte da Ilha de Elba e de seu reinado de 100 dias e com a certeza de que havia ainda um contingente respeitável de admiradores seus que se mobilizaria ao primeiro chamado do imperador deposto, as monarquias europeias mais do que escaldadas, resolveram tomar providências drásticas. Napoleão esperava ou fingiu que esperava ficar na Inglaterra como hóspede da Coroa inglesa. Sua decepção foi grande, quando lhe informaram que ele ficaria prisioneiro para sempre em uma pequena ilha, quase inexpugnável, no meio do Atlântico.

E, de fato, viveria na Ilha de Santa Helena até morrer em 1821, doente e deprimido, desejando antes ter sido executado do que definhar naquele lugar nenhum. No entanto, durante os seis anos em que viveu ali, mesmo sob a maior vigilância, Napoleão e seus admiradores encontraram meios de se corresponder e até mesmo de tramar um possível resgate. Um desses projetos envolveu brasileiros e um momento importante da História do Brasil: a Revolução Pernambucana de 1817.

A CONSPIRAÇÃO
Os Estados Unidos da América, única democracia de fato que então havia no mundo, era um grande atrativo para os antigos oficiais do império francês. Humilhados com a exclusão do exército e com a perspectiva de viver a meio-soldo, poucos meses depois de Waterloo, cerca de mil oficiais franceses de várias patentes tinham partido para os EUA. Além de buscar novas oportunidades, boa parte dessa gente continuava a sonhar com a volta do imperador, nem que fosse para reinar em algum pedaço das Américas. O malogrado rei de Espanha, José Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão, também se estabelecera nos Estados Unidos e era um verdadeiro ímã a atrair toda a sorte de conspiradores com planos para o resgate do ex-imperador.

Assim, quando tiveram notícia de que uma revolução republicana estourara em Pernambuco, o ponto da costa americana mais próximo de Santa Helena, as esperanças dos bonapartistas foram renovadas. A notícia dessa revolução que pretendia instalar no nordeste brasileiro uma república chegou aos jornais americanos por intermédio de um de seus líderes, Antônio Gonçalves da Cruz, mais conhecido como Cabugá. Ele promovera em sua casa muitas das reuniões que impulsionaram a rebelião que eclodiria em 6 de março de 1817. Poucos dias depois, em 25 de março, ele embarcava para os EUA como embaixador do governo revolucionário junto às autoridades daquele país. Tal como para os mineiros de 1789, para os revolucionários de Pernambuco, os EUA representavam o modelo ideal de nação. Ainda mais naquele momento em que as monarquias da Europa tentavam destruir a herança da Revolução Francesa e voltar às práticas do Antigo Regime.

Se o ministro dos Negócios Estrangeiros, Richard Rush, que recebeu Cabugá em caráter informal, não prometeu que seu governo daria suporte aos revolucionários, também não impediu suas idas e vindas. Sob o pretexto das leis liberais e democráticas que regiam a vida no país, o governo norte-americano fez ouvidos moucos aos rogos do embaixador de Portugal, o padre José Correia da Serra, para que Cabugá fosse impedido de comprar armas, fretar navios e contratar homens para levar ao Recife.

O PLANO
Os bonapartistas franceses viram na revolução pernambucana a situação ideal para finalmente ter uma base de apoio próxima de Santa Helena. O plano fora concebido por José Bonaparte e dele teria conhecimento o próprio Napoleão, que enviara cartas geográficas detalhadas da ilha. Um milhão de dólares estariam reservados para as despesas da expedição que teria como base Fernando de Noronha. Ali se reuniriam duas escunas com aproximadamente 80 oficiais franceses e 700 marinheiros americanos, além de um navio armado pelo almirante Cochrane, tendo a bordo 800 marinheiros e 200 oficiais. Os navios seguiriam com destino à Santa Helena, atacariam a ilha por vários lados e resgatariam Napoleão. Não é preciso dizer que Cochrane, que nada tinha de bonapartista, só estava nessa pelo dinheiro.

Como os planos e os recursos comparativamente modestos de Cabugá se casavam com os dos franceses, é um ponto que permanece obscuro. De qualquer maneira, um dos navios fretados por ele, o Paragon, saiu da Filadélfia no dia 15 de junho de 1817, trazendo um grupo formado pelo coronel Paul-Albert-Marie de Latapie, Louis-Adolph Le Doulcet – futuro conde de Pontécoulant – e pelos soldados Artong e Raulet. Ao chegarem a Natal e descobrirem que a revolução pernambucana tinha sido subjugada, traçaram um plano B. Eles sabiam que poderiam contar com o novo cônsul dos Estados Unidos no Recife, o comerciante Joseph Ray, perfeitamente informado da conspiração.

O conde de Pontécoulant apresentou-se em Natal como naturalista e, sendo homem refinado, de vasta cultura e de grande charme pessoal, logo estabeleceu amizade com o governador daquela província, obtendo passaporte para poder circular livremente por todo o Brasil. Seus companheiros que preferiram seguir para a Paraíba não tiveram a mesma sorte e, quando ali chegaram, foram logo detidos e enviados para o Recife. As notícias de possíveis conspirações bonapartistas associadas a Cabugá já tinham chegado à região através das desesperadas cartas do padre Correia da Serra que, não encontrando apoio do governo norte-americano, concentrara seus esforços em alertar o governador de Pernambuco sobre os movimentos de Cabugá.

O PAPEL DO CÔNSUL
Apesar das suspeitas, o governador Luis do Rego Barreto não viu irregularidades nos documentos dos franceses e os liberou, mantendo-os, no entanto, sob rigorosa vigilância. Todos se reuniram na casa de Joseph Ray, à espera de Pontécoulant, que já chegava de Natal. Dois dias depois, por iniciativa própria, o coronel Latapie foi ao governador e relatou os verdadeiros motivos de sua viagem: ele e seus companheiros tinham vindo ao Nordeste por ordem de José Bonaparte, para estudar o terreno e averiguar as possibilidades de, dali, procederem ao sempre sonhado resgate de Napoleão. Luis do Rego sugeriu, então, que o próprio coronel fosse ao Rio de Janeiro contar essa história às autoridades. A atitude de Latapie deixou em maus lençóis os companheiros que continuaram no Recife. A proteção que lhes deu do cônsul americano foi decisiva para que se mantivessem em liberdade.

No entanto, em fevereiro de 1818, chegava à costa da Paraíba o segundo navio contratado por Cabugá, o Pengouin, trazendo uma carga de pesados armamentos. A situação se complicou para Joseph Ray, que teve a casa revistada e viu seu secretário, que não tinha imunidades diplomáticas, ser submetido a interrogatórios bastante reveladores. Artong tinha acompanhado Lapatie ao Rio de Janeiro, de onde partiram para a Europa. Raulet foi preso, e só com a ajuda de Joseph Ray conseguiu fugir da Fortaleza de Brun. Foi para o Rio de Janeiro e, percebendo que ali também teria dificuldades, seguiu para Buenos Aires, de onde participou com destaque nas campanhas pela independência da América espanhola, morrendo no Peru em 1829. Pontécoulant nada sofreu, mas também teve que deixar o Brasil, fazendo depois, na França, uma longa e bem-sucedida carreira de autor de livros sobre música e sobre a fabricação de instrumentos musicais.

Da documentação existente a respeito desse episódio, ressalta o cuidado maior das autoridades portuguesas com os suspeitos estrangeiros, especialmente os de mais elevada patente como Pontécoulant e o general Latapie. O governador Luís do Rego Barreto, em seu relatório final, concluiu que a presença de bonapartistas franceses no Recife fora mais uma questão de oportunidade do que de real comprometimento com os improvisados revolucionários pernambucanos, a seu ver. Isso se comprovava pelo fato de que os contatos internacionais para buscar apoio só foram iniciados depois do 6 de março.

As dúvidas de Luís do Rego se concentravam, na verdade, sobre o verdadeiro papel que o cônsul dos Estados Unidos tivera no desenrolar dos acontecimentos. Na verdade, ele desconfiava das reais intenções dos norte-americanos com relação ao Recife. Mas era grande o receio das autoridades brasileiras de contrariar, de qualquer forma que fosse, o governo dos Estados Unidos, e nada foi feito contra Joseph Ray, que continuou no posto até 1820. Posto que voltaria sintomaticamente a ocupar entre 1836 e 1842, últimos anos da Regência e primeiros depois da Maioridade. Período igualmente agitado. Na verdade, se, oficialmente, não interessava ao governo dos EUA se meter com os assuntos do governo português, com o qual tinha bons contratos comerciais, também não lhe cairia mal ter na América do Sul uma república amiga que lhe acenara com a abertura total de seu mercado. Manter na praça do Recife um agente que pudesse informar a seu governo sobre as reais oportunidades que se apresentassem era uma situação muito conveniente para os interesses dos EUA. 

 

X

Publicidade

veja também

Gabriel García Márquez

Laerte: um olhar sobre si mesma

Moçambique: relato de uma mzungu