Em Era o Hotel Cambridge, nomes de estrangeiros, como Isam Ahmad Issa, Qaedes Khaled Abu Thana, Treson Mukendi Muteba e Guylain Muskendi Labobo, dividem os créditos com atrizes e atores como Suely Franco e José Dumont – ator predileto da diretora, protagonista de seus longas Kenoma (1998) e Narradores de Javé (2003) – e com a própria Carmen Silva. É “um jogo de ficção”, na definição de Eliane Caffé, sem se importar com as fronteiras entre documentário e construção ficcional. Aos 15 minutos de narrativa, Carmen, a protagonista fílmica, preside uma assembleia com os moradores para informar a decisão judicial de reintegração de posse. “Se agora nós recuarmos, vamos aceitar a sentença do juiz, então, pessoal, é hora de estarmos unidos e juntos”, brada, seguida de aplausos. Hassam, personagem de Ahmad Issa, intervém: “Eu sou refugiado palestino no Brasil, vocês são refugiados brasileiros no Brasil”. Irrompem vaias e aplausos e Carmen se pronuncia com voz firme: “Brasileiros, estrangeiros, somos todos refugiados”. Em outubro de 2016, Carmen, uma das líderes do MSTC, resumia: “Nós, trabalhadores de baixa renda, estamos cansados de ser atingidos. Não queremos saber quem ganhou a eleição, quem tomou golpe e quem deu golpe, e, sim, que aqui somos cidadãos brasileiros e estamos cansados de ter nossos direitos violados. Vamos à luta. Somos todos iguais”.
Para Eliane Caffé, o filme integra a produção imagética de “resistência”. “É preciso criar uma narrativa diferente. Movimentos de luta pela moradia e a existência esse universo fértil e politizado do Cambridge são fundamentais para mostrar que houve golpe no Brasil, mas que existem avanços também”, pontua a diretora, que mesclou às imagens captadas na ocupação vídeos feitos por coletivos como Jornalistas Livres e Mídia Ninja. “Aproveitamos imagens da reintegração de posse de um outro edifício no centro de São Paulo para configurar a reintegração do Cambridge, que nunca foi reintegrado”, detalha.
Era o Hotel Cambridge é um dos desdobramentos culturais oriundos da ocupação. No bojo da experiência criativa desencadeada pelas filmagens, ocorridas em 2014, a curadora Juliana Caffé, sobrinha de Eliane, idealizou, ao lado de Yudi Raffael, o projeto Residência Artística Cambridge. A partir de março de 2016, os artistas Ícaro Lira, a dupla Jaime Lauriano e Raphael Escobar e Virginia de Medeiros e o escritor Julián Fuks se tornaram parte da diversificada paisagem humana que frequenta, habita e fortalece o edifício. “Estamos em um microcosmo da cidade. O Estado não tem como dar conta dos refugiados e é a ocupação que faz isso. Pensamos em como seria interessante aprofundar a pesquisa sobre as articulações entre arte, política e sociedade, vias com muita força e potencial para, ao serem cruzadas, criar novas possibilidades para a cidade”, comenta Juliana Caffé.
Virginia de Medeiros percebe no filme uma “potente tradução do rico universo” que encontrou no Cambridge: “Além da matéria e da arte, existe o lugar da vida e a maneira como também vamos nos construindo nesses processos. Não consigo mais me pensar, como artista e cidadã, fora dos processos de entrega e das questões humanitárias urgentes. Não podia chegar aqui com um projeto fechado, e, sim, me deixar atravessar pelo desejo de viver essa experiência. Era o Hotel Cambridge, para mim, é sobre direitos, amor e união. É sobre conviver com diferentes realidades, diferentes pessoas, bagagens e sonhos, e se deixar afetar por elas. Antes mesmo de iniciar a residência, conheci Carmen e percebi como ela era afirmativa e forte e, ao mesmo tempo, generosa demais. Foi para dentro de uma zona de crack para ajudar as famílias que lá estavam sem ter onde morar. Quero ser uma força também para o movimento. Acredito nessa luta”.
Em novembro de 2016, Era o Hotel Cambridge foi escolhido pelo júri popular o melhor dos mais de 300 longas-metragens da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O número 216 da Avenida 9 de Julho é, hoje, um imóvel classificado como HIS – Habitação de Interesse Social. O Movimento Sem Teto do Centro venceu o edital 002/2015, lançado pela Prefeitura de São Paulo, e hoje tem “documentação e escritura em cartório” para não ser tratado como uma invasão. “Mas o temor não cessa, porque não sabemos o que se passa na cabeça do atual prefeito. Vivemos à mercê da política partidária e temos que seguir batalhando”, constata Carmen Silva, do MSTC. A diretora Eliane Caffé não dissocia a sua obra do contexto que a fez possível e, ao mesmo tempo em que se prepara para levar o longa a festivais europeus, monta, junto à Frente de Luta por Moradia, uma estratégia paralela de exibição. “Vamos organizar uma ação conjunta com os movimentos de luta. Queremos levar o filme para ser exibido nas ocupações”, antecipa. No Brasil de 2017, é essencial cavar novos espaços para as narrativas de resistência. Afinal, como dizem os personagens fictícios e os moradores reais do Hotel Cambridge, “quem não luta, está morto”.