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A ocupação de um campo inóspito

Localizada aos pés da Cordilheira dos Andes, a região desértica de Mendonza, antigo domínio do Império Inca, foi passagem de missões libertadoras e hoje abriga turismo de aventura

TEXTO Mariana Camaroti

01 de Outubro de 2016

A Cordilheira dos Andes se estende do Caribe à Península Antártica

A Cordilheira dos Andes se estende do Caribe à Península Antártica

Foto Mariana Camaroti

[conteúdo da ed. 190 | outubro de 2016]

Conhecido destino turístico na Argentina pela neve, esportes de aventura e seu delicioso vinho Malbec, a província de Mendoza vai além disso: sua importância histórica, a beleza das suas paisagens e sua icônica geografia convidam a visitá-la com outras intenções. Essa desértica região, localizada aos pés da Cordilheira dos Andes, que alberga o pico mais alto das Américas – o Aconcágua –, guarda em seu passado parte do Império Inca e um dos mais espetaculares capítulos da narrativa latino-americana.

Após gestar a libertação da Argentina do domínio espanhol, o general San Martín cruzou os Andes para a mesma empreitada no Chile e no Peru e para se encontrar com Simón Bolívar, que vinha do norte da América do Sul libertando a Colômbia e a Bolívia. Missão homérica – devido à altitude da travessia e às baixas temperaturas – que, no ano que vem, completará 200 anos e que definiu o futuro do continente.

Mendoza sempre desafiou civilizações por sua localização e sua difícil geografia. Ao longo do seu período pré-colombiano, de colônia espanhola e atual, foi continuamente um importante lugar de passagem; quem quisesse explorá-la tinha que se reinventar. Por ela cruzava o Caminho do Inca, uma extensão de 23 mil quilômetros que passa pela Argentina e outros cinco países, usado pelo Império Inca para o comércio, tombado há dois anos pela Unesco como patrimônio mundial da humanidade.

“A história de Mendoza, ou seja, dos que a ocuparam no passado e dos que vivem lá hoje, sempre foi a de brigar contra o deserto, com seu terreno pedregoso, plano e de cordilheira, com vegetação espinhosa típica de territórios áridos”, contextualiza o historiador e professor mendocino Rodrigo Antonio Alvarez.

Ocupar essa área inóspita, que em alguns períodos do ano recebe o sufocante vento zonda que desce das montanhas, só foi possível graças à sábia técnica dos indígenas, habitantes da região na época pré-colombiana. Os huarpes – povo sedentário, pacífico, que fazia uso da agricultura – desenvolveram um inteligente e sustentável sistema de canais cordilheira abaixo, usando o derretimento do gelo dos Andes para distribuir água e irrigar plantações.

Esse povo entregava tributos aos incas e por isso compunha o organizado império que ocupou parte do continente antes da chegada dos europeus. Em troca, recebiam proteção na luta contra os indígenas puelches (que habitavam o leste da Cordilheira dos Andes e Chile) e os mapuches (que até hoje vivem na Patagônia argentina e chilena).

Essa secular técnica das canaletas foi ensinada aos espanhóis pelo cacique Guaymallén e é utilizada até hoje em toda a província, chegando até a capital, também chamada Mendoza. As calhas ocupam parte das calçadas, irrigando árvores e abastecendo as casas. Quem passeia por lá chega a se surpreender quando as comportas se abrem e a água começa a correr. O escorrimento direcionado também ladeia as estradas que percorrem a cordilheira.

Esse conhecimento permitiu não apenas que esses indígenas povoassem e cultivassem o árido norte da província, como também, a partir do período colonial, cultivassem vinhedos e produzissem vinhos. Até hoje, são poucas as vinícolas que usam irrigação por gotejamento. A maioria da indústria vitivinícola, bem como a população, se serve desse sistema de comportas.

CAPÍTULO DA HISTÓRIA
Antes de fazer a travessia dos Andes com seus homens, o general San Martín, que havia servido à Espanha na luta contra o avanço de Napoleão Bonaparte, governou por três anos a região de Cuyo, composta por Mendoza, San Luis e San Juan. Administrava de maneira equitativa e liberal o território, fomentando a educação popular, fundando bibliotecas e escolas; incentivando a agricultura e a produção de vinho; e fortalecendo a metalurgia, para a produção de canhões e fuzis.

Ao mesmo tempo, mobilizava a população e formava o exército com os habitantes locais, recebendo financiamento dos próprios cuyanos, já que o governo de Buenos Aires não enviava recursos. A administração central não estava totalmente convencida em defender a fronteira do norte argentino e em expulsar definitivamente os ibéricos pela conveniência da relação com a coroa para a elite do país.

“O empenho do povo cuyano foi fundamental para essa empreitada, tanto como integrante do exército como doando recursos. Os abastados doavam parte da sua fortuna e os pobres entregavam o pouco que tinham”, conta Rodrigo Antonio Alvarez. “A campanha de San Martín é o melhor capítulo da história de Mendoza”, ressalta o historiador. A combinação de liderança e estratégia do grande herói argentino permitiu que seu exército, dividido em cinco colunas, lutasse sobre mulas e em condições inferiores e adversas.

A maior parte dos 5,2 mil homens cruzou pelo caminho mais difícil e mais alto, já que era baixa a probabilidade de encontrar os espanhóis à sua espera. Essa passagem, conhecida como do Cristo Redentor, é hoje uma das duas habilitadas para chegar ao Chile e costuma ser fechada pelas nevadas.

“É terno e comovente chegar a Mendoza e pensar que aqueles homens malvestidos, mal-alimentados, mas que possuíam tudo mais que era necessário (determinação, liderança e estratégia), puderam realizar tal façanha. Eles tinham um líder que não dormia, pensando em como complicar a vida do inimigo”, comenta o historiador e escritor Felipe Pigna. Com a emblemática frase “Sejamos livres. O resto não importa nada”, San Martín deu o triunfante impulso final para que sua tropa cruzasse o caminho que até hoje parece impossível.

IMPONÊNCIA ANDINA
Mendoza é majestosa pela imensidão e suntuosidade da Cordilheira dos Andes, pelas geleiras, os picos nevados o ano todo e o contraste da paisagem desértica e rochosa com o verde dos vinhedos e olivares irrigados, protegidos do vento pelos álamos trazidos a essa região.

Viajar de carro de Buenos Aires até lá (pouco mais de mil quilômetros) é um show à parte e muito recomendado. Algo que parecem ser nuvens carregadas se vislumbram ao longe no horizonte, enquanto se avança pela estrada. À medida que se aproxima, essa visão vai se modificando e o que parecia algo flutuando no céu se mostra erguido sobre a terra: um paredão ora marrom, ora verde, ora branco, que finalmente se define como essa extraordinária coluna vertebral que corta a América do Caribe até a Tierra del Fuego, na Argentina, e a Península Antártica.

De acordo com o Guia YPF de turismo e estradas, a Cordilheira dos Andes é a parte visível de um dos fenômenos geológicos mais colossais do nosso planeta, comparável apenas ao Himalaia, e resultado do movimento tectônico de placas da crosta terrestre. O erguimento dos Andes provocou o surgimento de vários vulcões – alguns em extinção e outros em atividade – e uma mudança climática brutal, que extinguiu vastos bosques de Araucárias que cobriam a Patagônia.

Os Andes somam vários recordes: um dos vulcões mais altos do planeta (Serra Nevada de Santa Maria, na Colômbia), a maior geleira do mundo fora da Antártida e a montanha mais alta dos hemisférios sul e ocidental: Aconcágua.

A imensidão dos vales, os vulcões que povoam a paisagem, diques com águas de vivas cores e o espetáculo oferecido por diferentes cores degradês das paredes de algumas montanhas fazem desse território argentino uma beleza ímpar para o viajante que desfruta da natureza.

ALTA MONTANHA
Percorrer o circuito de Alta Montanha, da cidade de Mendoza até a fronteira com o Chile (passagem do Cristo Redentor) pela Rodovia Nacional 7 é um dos mais recomendáveis passeios, que leva um dia completo. Ao passo que o viajante vai subindo a cordilheira em um caminho sinuoso, picos com neve vão aparecendo na paisagem. Se a estação é de inverno, a neve vai cobrindo as encostas das montanhas e aparecendo ao lado do trajeto na medida em que o viajante ganha altitude.

Uma parada recomendada é o dique Potrerillos, com 1,3 mil hectares de superfície e uma água impressionantemente azul, ressaltada pelo contraste com o marrom das montanhas e os bosques de pinheiro ao redor.

A 20 quilômetros dali, está a estação de esportes Vallecitos, na qual se pode aprender a esquiar no inverno e fazer caminhadas no verão. Se o que se busca são esportes, pelo leito do Rio Mendoza que passa por perto, pode-se descer em botes (mais emocionante no verão por ter maior vazão) ou praticar raffiting.

Entre muitas curvas e alguns túneis, a paisagem vai se modificando até Uspallata, uma localidade encravada entre a chamada pré-cordilheira (formação mais antiga e já desgastada pelo tempo) e os Andes (parte mais elevada), que convida a uma parada para algumas compras de artesanato e a se deliciar com chocolate quente, churros e brioches.

Seguindo rumo à fronteira, chega-se ao Aconcágua, pico de 6.962 metros, dentro do parque de mesmo nome. Além das atividades de trekking para aventureiros – no período mais quente, e as escaladas quando as temperaturas são baixas –, quando há neve, um dos programas é fazer divertidos bonecos e deslizar em plataformas plásticas, praticando uma espécie de esqui sentado, indicado para iniciantes e crianças. As roupas e acessórios adequados devem ser alugados em lojas especializadas na capital.

A próxima parada é a Puente del Inca, uma passagem curiosamente natural sobre o rio Las Cuevas, formada pelos sedimentos das águas termais e utilizada pela civilização pré-colombiana para seguir seu caminho milenar. Essa passagem, a 2,7 mil quilômetros de altura, mereceu a visita do naturalista Charles Darwin, que a descreveu em 1836. Segundo arqueólogos, a Puente del Inca e a passagem ao Chile foram utilizadas pelo menos a partir de 4 mil anos a.C.

Vale a pena continuar avançando na estrada sinuosa em direção à fronteira com o Chile. Esse caminho é ladeado pelas ruínas de uma antiga linha ferroviária que parece desafiar o equilíbrio e a gravidade. Chegando à localidade de Las Cuevas, há uma pequena vila, um encrave como que perdido no tempo, que abriga restaurantes em que os visitantes encerram o passeio e se preparam para o caminho de volta.

TURISMO
A província de Mendoza oferece diferentes atrativos turísticos por estação e por região. Entre os lugares mais procurados, está a cidade de San Rafael, que possui um oásis formado por uma confluência dos rios Diamante e Atuel. Nos seus arredores, estão o dique Valle Grande e o Canion del Atuel, formação única na América do Sul.

O fluxo de turistas em Mendoza – quarta província mais populosa da Argentina, com 1,8 milhão de habitantes, e sétima em extensão – é composto em sua maioria por argentinos (86%), os demais são quase na totalidade brasileiros e chilenos. A última temporada de inverno, com grande quantidade de gelo, teve 80% da rede hoteleira ocupada. Só em julho deste ano, recebeu 320 mil turistas. “Foi uma das nossas melhores temporadas”, comenta o responsável pelo setor de Turismo da Casa de Mendoza, Adrián Zorrero.

As estações de esqui Penitentes, a 120 quilômetros da capital Mendoza, e Las Leñas, a 450 quilômetros, são os dois mais procurados centros de esportes de inverno da província, contando com hospedagem, restaurantes, aluguel de roupas, equipamentos e toda a estrutura para quem deseja se aventurar.

Emoldurada pela Cordilheira, a cidade de Mendoza foi criada por imigrantes espanhóis e italianos, no final do século XIX. Da cidade colonial, restaram apenas ruínas, já que o terremoto de 1861, que arrasou o local, obrigou a população a reconstruir a capital, prevenindo-se de novos episódios de tremor.

Com um traçado cartesiano de quadras, ruas e avenidas, Mendoza possui cinco praças construídas em lugares estratégicos para servirem de refúgio, em caso de novo terremoto. A cidade dispõe de passeio gratuito de bonde, ideal para fazer um tour sem pressa, descendo em praças e cafés. Uma de suas peculiaridades é a siesta, período da tarde em que a cidade dá uma pausa, com o fechamento de estabelecimentos, que voltam a funcionar por volta das 17h. Na “terra do sol e do bom vinho”, como é conhecida a província, a parada para o descanso é bem-vinda, principalmente nos meses de intenso calor.

 Além do aspecto natural, dos parques e das praças, a cidade também conta com instituições culturais que valem a visita, como o Museu de Ciências Naturais e o Museo del Pasado Cuyano, que, montado num casarão de finais do século XIX e com quatro pátios internos, oferece uma volta no tempo por meio de sua biblioteca e salas dedicadas à história local e às batalhas pela independência. Recomendado também é o Museo del Area Fundacional, que oferece um panorama da história local desde a época dos aborígenes, com achados arqueológicos que percorrem a cultura daqueles povos. Em seu acervo, há a múmia inca de uma criança sacrificada e encontrada congelada nos Andes, algo comum durante o Império Inca.

O Aquário Municipal, o Serpentário Anaconda, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus – conhecida como igreja jesuíta – e a Basílica de São Francisco completam as principais atrações da cidade. 

 

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