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Obra de uma vida interrompida

Assassinado na ditadura militar, o artista e militante ítalo-brasileiro Antonio Benetazzo tem sua memória e obra recuperadas em exposição, livro-catálogo e documentário

TEXTO Luciene Leszczynski

01 de Julho de 2016

O artista e militante ítalo-brasileiro Antonio Benetazzo

O artista e militante ítalo-brasileiro Antonio Benetazzo

Foto Reprodução

[conteúdo da ed. 187 | julho de 2016]

Que a passagem da ditadura militar no Brasil foi marcada pela censura e forte repressão à liberdade de pensamento e expressão, desde o campo político ao artístico, muito já se descobriu hoje em dia. Os impactos daquele período, porém, ainda se avolumam para o estudo e entendimento da história recente e futura deste país, como a violência perpetrada contra a cultura brasileira ao cercear e, por vezes, até extinguir a manifestação de artistas desafetos ao regime. No campo das artes, o assassinato do artista e militante político Antonio Benetazzo pelo aparelho da ditadura é um cruel exemplo dessa violência, que extrapola o crime contra a vida, atingindo a cultura artística. 

A fim de recuperar parte dessa história e revelar o trabalho desse artista, a inédita obra de Benetazzo foi recentemente descoberta pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) de São Paulo, sendo apresentada em exposição, livro-catálogo de arte e documentário. “Até hoje, mesmo quem pesquisa a obra artística do período ditatorial desconhece a existência de Benetazzo. Esse projeto, mais do que uma reparação ao indivíduo, que teve sua vida, memória e produção suprimidas da história devido a uma opção política, permite dar amplo acesso à obra dele para a população”, diz Marie Goulart, da Coordenação de Direito à Memória e à Verdade da SMDHC.

Nas cerca de 200 obras encontradas em posse de amigos e familiares pelo curador do projeto, Reinaldo Cardenuto, é possível identificar o estilo singular do artista Antonio Benetazzo, que era um pesquisador voraz, apaixonado pela arte, história e filosofia. O material compilado refere-se ao período de apenas nove anos, entre 1963 e 1972. “Em pouco tempo de produção, a partir de uma intensa pesquisa estética que notamos presente, Benetazzo alcançou tal singularidade, que entra como um componente da história da arte do Brasil”, aposta Cardenuto.

Da mesma geração de Claudio Tozzi, sua obra guarda influências do trabalho de Sergio Ferro, que foi seu professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), e também alguma proximidade com a obra de Wesley Duke Lee, todos artistas plásticos brasileiros que despontavam numa trajetória artística na época da produção de Benetazzo. “A gente não pode esquecer que era alguém muito jovem, que morreu aos 30 anos, e ainda estava num processo de formação”, comenta Cardenuto. De acordo com ele, o artista experimentava a influência de uma grande chave modernista, como da obra realizada por Kandinsky. Numa série de desenhos com nanquim, identificada pelo curador da mostra no processo de pesquisa da estética de Benetazzo, é possível constatar tal proximidade com a obra do artista russo a partir do uso de pontos, linhas e planos.

Após recolher dezenas de quadros, desenhos, fotografias e objetos espalhados em vários lugares, e a partir da identificação do conjunto de obras encontrado, Cardenuto organizou o material em grupos, procurando atribuir um sentido cronológico, estilístico e poético. A catalogação rendeu então 13 séries distintas – mas não necessariamente isoladas entre si – do que foi o processo de criação do artista identificado pelo curador. Com isso, na medida em que o trabalho artístico de Benetazzo começa a ser estudado, passa a adquirir lugares estéticos e históricos.

O CAMARADA BENÊ
Nascido na Itália em 1º de novembro de 1941, Benetazzo imigrou ainda pequeno, aos nove anos, com a família para o Brasil. Na infância, morou no Litoral Norte de São Paulo, e já esboçava seu lado artístico, chegando a ganhar um concurso para a criação do brasão da cidade de Caraguatatuba. “Ele desenhava o tempo todo, fazia parte da persona dele”, conta a irmã quatro anos mais nova, que prefere não ser identificada. Na adolescência, em busca de maior proximidade com a capital paulista, foi morar com um tio em Mogi das Cruzes, onde cursou o ensino técnico-científico, atual Ensino Médio. Nessa época, desenhava-se também o seu engajamento político, com a sua participação na constituição ou direção dos grêmios estudantis dos colégios em que estudou. Em 1962, entrou para o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e aprofundou sua militância estudantil. Trabalhou para a criação do Centro de Cultura Popular, ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), sendo logo após eleito como um dos dirigentes da entidade. Foi morar em São Paulo, onde ingressou na USP, cursando simultaneamente as faculdades de Filosofia e Arquitetura, enquanto dava aula em cursinhos preparatórios para o vestibular.

“O Benê era um cara brilhante, inteligentíssimo e muito estudioso. Aos amigos e, sobretudo, aos alunos, buscava passar tudo o que sabia”, recorda o artista plástico e escritor Alípio Freire, com quem Benetazzo manteve amizade no final da década de 1960. Alípio conta que conheceu Benetazzo em 1966, quando foram escalados para prepararem juntos o material de divulgação para o Congresso da União Estadual dos Estudantes (UEE). Nesse primeiro contato, percebem uma grande afinidade com relação à visão de mundo e ao interesse pelas artes. Posteriormente se reencontram, quando Alípio vai para o cursinho preparatório de Arquitetura, e a amizade se solidifica. 

Em uma passagem narrada por Alípio, eles seguiam de carona em um carro pela Av. Paulista e, ao cruzarem a esquina da Rua Augusta, Benetazzo pede para descerem, pois queria mostrar explicar ao companheiro a concepção das cadeiras Barcelona (assinadas por Mies van der Rohe) que haviam chegado ao Brasil e compunham o mobiliário no Conjunto Nacional. “Ele era assim. Nessa época, dava aula no Instituto de Arte e Decoração (Iadê), era um cara ocupadíssimo, estava a par de tudo o que acontecia no mundo e fazia questão de compartilhar esse conhecimento”, relembra o amigo, que diz ter conhecido as ideias do pensador Michel Foucault através dele. 

Quando Benetazzo quis utilizar um texto do livro As palavras e as coisas nos cursos em que dava aula, pediu ao amigo que traduzisse para ele. “Não que ele não soubesse, pois falava bem o francês, bem como outras línguas, mas porque estava mesmo sem tempo. E foi assim que eu conheci Foucault. Acho que fui o primeiro tradutor de Foucault no Brasil”, brinca Alípio, já que o livro havia sido publicado na França apenas um ano antes desse episódio, ocorrido em 1967.

Nessa época, Benetazzo se desliga do PCB para militar na Dissidência Estudantil de São Paulo (Disp). Em 1968, participa do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, onde é preso com cerca de 800 delegados e dirigentes do movimento estudantil. Em julho de 1969, já integrando a Ação Libertadora Nacional (ALN), abandona as aulas no cursinho preparatório e na universidade e passa a viver na clandestinidade.

CLANDESTINIDADE 
“É o momento em que Benetazzo toma uma decisão sem volta na sua vida. É a hora em que ele entra na clandestinidade, vincula-se à luta armada e decide sair do país”, destaca Cardenuto. “Nesse período, a sua trajetória se torna um pouco obscura, porque a gente não sabe qual foi esse percurso fora do país”, acrescenta. 

O que se sabe é que, em 1970, ele esteve em Cuba e viveu por lá cerca de um ano, voltando em 1971 ao Brasil, onde seria torturado e morto um ano depois, em outubro de 1972, numa ação do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). “Mas o dado é que, quando ele tomou a decisão de viver clandestinamente, espalhou suas obras, distribuindo-as entre os amigos. É um movimento simbólico e significativo da vida dele porque é alguém que está no limite, sabe do risco de sua decisão e, de certa maneira, procura espalhar sua memória e seu processo criativo. Ele doa um pouco da sua própria identidade para outras pessoas”, reflete Cardenuto.

No Brasil, de 1971 até sua morte, Benetazzo integra a direção nacional do Movimento de Libertação Popular (Molipo) e trabalha ainda como redator do jornal Imprensa Popular, órgão oficial de comunicação do movimento. Na clandestinidade, Benetazzo se distancia, pelo menos aparentemente, de sua produção artística, evitando ser reconhecido como tal.

Para a irmã de Benetazzo, era tão forte a identificação dele como artista plástico, que tirar isso da sua vida era mesmo uma forma de disfarce. Nessa época, ele se restringia a desenhar na casa da amiga Zuleika Alvim, que fez questão de lhe comprar material de pintura para que pudesse extravasar seu lado artístico enquanto frequentava a residência dela nos seus momentos de descanso. Na opinião de Cardenuto, essa bifurcação da vida de Benetazzo entre o militante e o artista fica mais evidente nesse período, já que o grupo de atuação política que frequentava não tinha conhecimento do seu trabalho artístico, enquanto que a família e antigos amigos de escola não sabiam da sua militância política.

ABSTRAÇÃO E FIGURAÇÃO
É a partir do trabalho de pesquisa e curadoria realizado por Cardenuto que se aprofunda a dimensão artística da obra de Benetazzo, pois, apesar de sua profícua produção, essa faceta do artista mantinha-se restrita aos amigos e familiares que zelavam por seu legado. No conjunto da obra compilada por Cardenuto, os primeiros trabalhos lembram o uso de técnicas impressionistas, que aos poucos são abandonadas pelo abstracionismo. “Era alguém que estava experimentando muitas possibilidades, procurando uma identidade artística que é localizada a partir de 1968”, afirma o curador. 

De acordo com ele, até certa altura da vida como artista, a abstração e a figuração se encontram separadas na obra de Benetazzo. Até os anos de 1966 e 1967, o trabalho pendia ora para o figurativo, como nas obras identificadas explicitamente como políticas, ora tonava-se mais abstrata, apontando para um lugar fora do tempo histórico, com características do Absoluto, como na série intitulada Haikai. “Para mim, o Benetazzo ficou muito dividido entre esse dois polos da abstração e figuração, até o dia em que juntou tudo numa mesma obra”, comenta o curador.

Essa união entre o figurativo e o abstrato se evidencia na série Gestação dos monstros, que inicia abstrata e termina figurativa, com a apresentação de criaturas evidentemente influenciadas pelos desenhos de Goya. Ou no conjunto denominado Corpo e sexualidade, em que os trabalhos mesclam a abstração com traços impressionistas. Nesta série, Benetazzo explora o nu feminino em desenhos de evidente erotização, mas que também pendem para a abstração. 

Característico do trabalho de Antonio Benetazzo, o experimentalismo evidencia-se a cada descoberta do curador, como quando encontra na biblioteca do militante (preservada na casa da irmã) um catálogo do artista alemão Julius Bissier, cuja obra guarda relação com várias produções de Benetazzo. “Era alguém que estava numa pesquisa constante, principalmente influenciado por artistas do modernismo europeu”, constata o curador. 

“Além desse lado pesquisador, podemos dizer que ele foi um artista que trabalhou no papel, e não em madeira, por isso que a gente fala de desenho e não de pintura. Ele usava vários tipos de papéis, como o pardo usado para embrulhar carne no açougue.” Em algumas obras mais recentes, também é possível notar que Benetazzo ensaiou uma convergência com a pop art, mas não se pode dizer até onde isso iria, porque há essa ruptura da produção com a sua morte.

LIVRO-CATÁLOGO
A expressão Permanências do sensível, que dá título ao livro-catálogo lançado pela SMDHC e à exposição que esteve em cartaz até 29 de maio no Centro Cultural São Paulo, sintetiza a história de Antonio Benetazzo, unindo o lado político ao estético no trabalho de sua obra. “Procurei vincular memória e estética, para dar conta da necessidade da permanência e do sensível, que são de fato a grande intenção desse projeto”, explica o curador da mostra, que também é codiretor do documentário Entre imagens (Intervalos), que trata da ausência causada pelo apagamento da memória de um artista.

Para Marie Goulart, da SMDHC, o resgate do trabalho artístico de Benetazzo é uma forma de contribuir para esclarecer sobre a produção de um artista que se tornou invisível em decorrência da violência de Estado, largamente promovida no período da ditadura. “Além do crime de homicídio, a morte de Benetazzo foi um crime contra a cultura brasileira, aspecto que a exposição também faz questão de evidenciar. A ditadura promoveu uma severa perseguição política contra aqueles que resistiam e se levantavam contra ela, mas as arbitrariedades do regime também atingiram todos, indiscriminadamente, ao censurar, perseguir e impedir que a produção e expressão cultural circulassem livres”, ressalta Marie.

Além da importância artística, o resgate da obra de Antonio Benetazzo é também considerada política hoje em dia, pois está vinculada à memória do país e tomada de significados para o aprendizado do contemporâneo. “Enquanto houver uma pessoa levantando na rua um cartaz pedindo a volta da ditadura, o resgate dessa memória vai continuar sendo fundamental, pois, como nação, ainda não tivemos uma verdadeira superação desse processo”, opina Cardenuto. 

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