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O menino da tarde

Prestes a completar 70 anos no dia 1º de julho, o maior artista vivo da música pernambucana fala sobre novos projetos e os bastidores de sua intensa carreira

TEXTO Débora Nascimento

01 de Junho de 2016

O inquieto Alceu Valença completa 70 anos em julho

O inquieto Alceu Valença completa 70 anos em julho

Foto Hélia Scheppa

No começo da tarde de uma bem-vinda e ensolarada sexta-feira, depois de uma semana de maio em que o clima brincou de sol e chuva, a cidade alta de Olinda, indiferente ao barulho e à agitação de sua parte baixa, se comporta como se estivesse em um tempo longínquo. Os poucos automóveis que circulam pelas ruas estreitas e seculares interrompem o silêncio que permeia as casas coloridas. Uma delas, situada à Rua de São Bento, abriga um morador-símbolo desse lugar impregnado de história, música e alegria: Alceu Paiva Valença.

Assim que passou pela porta de entrada da residência, a reportagem da Continente avistou o artista sentado no sofá posicionado no lado esquerdo da sala. Empertigado e altivo como um cacique, Alceu ainda estava se refazendo do cochilo que tirara alguns minutos antes. De óculos Ray-Ban estilo aviador, camisa preta de manga longa, concedia entrevista ao primeiro dos três veículos de comunicação que receberia naquele turno. Ao redor, Júlio Moura, seu assessor de imprensa há mais de sete anos, se encarrega de acompanhar os ponteiros e lembrar a passagem das horas ao loquaz assessorado.

Ao final da primeira entrevista, o cantor atende à nossa equipe. Para aproveitar a luz das quatro da tarde, mais propícia à fotografia, a sessão de fotos é feita de imediato. Ele não nega nenhum pedido da fotógrafa Hélia Scheppa: tira a camisa, bota a camisa, deita no chão, sobe na janela. O fotografado ideal. Ao sentar para a conversa, o compositor não espera a primeira pergunta e já vai falando – um sinal de que o roteiro de mais de 30 perguntas seria fatalmente alterado.

Em cada uma de suas respostas, o artista aproveita para contar histórias hilárias, declamar poemas, cantar e/ou imitar alguém, praticamente uma performance. A função de um repórter, nessa hora, é se esforçar para sair da quase irresistível condição de espectador e tentar trazer o entrevistado de volta à questão e, assim, conduzir de alguma forma a entrevista. “Sempre fui muito tímido. Estou falando muito pra acabar com a minha timidez, mas eu fico com vergonha. Tenho duas pessoas dentro de mim. Uma que diz, ‘Alceu, fale!’ E outra, ‘Alceu, Psssiu!’ Tem um outro que diz, ‘Alceu, por favor, está querendo aparecer?!’”, conta, entre gargalhadas, já na metade da entrevista.


Em 1972, Alceu Valença e Geraldo Azevedo estrearam em LP feito em parceria.
Imagem: Reprodução

Essa hiperatividade foi percebida logo cedo por sua mãe, Dona Adelma, quando residia em São Bento do Una, cidade de cinco mil habitantes a 213 quilômetros de Olinda. Em pleno Agreste, na porta do Sertão, o garoto era uma espécie de Tom Sawyer. Assim como o personagem de Mark Twain, sempre estava aprontando alguma travessura e, principalmente, observando e absorvendo a cultura ao redor: os causos acerca de Lampião, os alto-falantes da feira, as quadrilhas juninas, os violeiros, os aboiadores, a literatura de cordel, os familiares que tocavam instrumentos em casa…

Quando Alceu tinha sete anos, a família mudou-se para Garanhuns, e, três anos depois, para o Recife. Ele trouxe à capital pernambucana a formação cultural do interior e nunca mais abandonou essas referências sólidas, mesmo tendo contato com as transformações musicais dos anos 1960, mais ligadas ao rock. Seu primeiro disco, lançado em 1972, em parceria com o amigo Geraldo Azevedo, é uma prova disso. O álbum foi gravado no Rio de Janeiro, cidade para onde migrou em 1970 com a intenção de viver de arte. Viajou sem dinheiro e sem apoio de Seu Décio. Ao contrário da mãe, que incentivava o filho e até o presenteou com o primeiro violão, o pai insistia em que ele fosse advogado. Alceu tentou, formou-se em Direito em 1969, mas o interesse durou poucos meses. “Meu irmão Decinho ajudou a alugar apartamento para mim. Eu não tinha dinheiro pra nada, andava quilômetros. Por isso que ando até hoje 10 mil metros por dia. Eu ia do Leme até a Glória encontrar Geraldo Azevedo. Ia a pé pra não gastar o dinheiro do ônibus”, revela.

Um dos produtores do disco, o italiano Cesare Benvenuti, ofereceu seu apartamento para os dois nordestinos morarem e ensaiarem. Como a verba da gravadora Copacabana era curta, o que significava poucas horas de gravação, o produtor teve uma ideia que combinava com o espírito peralta de Alceu: acertou com o técnico de som que deixasse a chave do estúdio debaixo do tapete para que os dois músicos pudessem chegar de madrugada, na surdina, para gravar.

O resultado dessa iniciativa é que Alceu e Geraldinho tiveram mais tempo para burilar seu trabalho e entraram no mercado fonográfico com o pé direito: seu disco de estreia, lançado em 1972, é um dos mais inventivos da década, com faixas de arranjos complexos, como Planetário, 78 rotações, Mister Mistério, Seis horas, Virgem Virgínia (que parece uma música da Belle and Sebastian, banda escocesa que surgiria 20 anos depois), e já trouxe, de cara, um hit, Talismã, que estava na trilha sonora da novela da TV Globo Irmãos Coragem. Nos seus créditos, o álbum ainda incluía arranjos de cordas do maestro Rogério Duprat, o mago por trás de gravações emblemáticas, como Tropicália ou Panis et circenses (1968), dos Tropicalistas, e Construção (1971), de Chico Buarque, respectivamente 2o e 3o lugar na lista da Rolling Stone dos maiores discos da música brasileira.


Alceu, ladeado por ex-membros da banda Ave Sangria e mais Zé Ramalho. Foto: Reprodução

Apesar de funcionarem como dupla, os artistas pernambucanos tinham estilos diferentes. Por isso, decidiram não seguir juntos no mercado fonográfico. Dois anos depois, Alceu atuou em A noite do espantalho e participou de sua trilha sonora, feita em parceria com o diretor e compositor Sérgio Ricardo. A atuação foi elogiada, mas o pernambucano acabou enveredando mesmo pela música. Ainda em 1974, lançou, pela Som Livre, o primeiro disco solo, Molhado de suor, bastante elogiado pela crítica. Dentre as faixas, está Papagaio do futuro, que se tornaria uma das composições icônicas do seu cancioneiro.

Nesse mesmo ano, outros músicos pernambucanos também estiveram no Rio de Janeiro para gravar seu primeiro disco: os membros da Ave Sangria, contratada da gravadora Continental. Após o álbum ser lançado, houve um imbróglio com relação à faixa Seu Waldir e o disco foi censurado, o que provocou o fim precoce do grupo. Alceu, então, convidou os integrantes para que o acompanhassem. Com exceção dos vocalistas Marco Polo e Almir de Oliveira, todos aceitaram o convite. E Alceu passava a ser ladeado pela melhor banda de rock de Pernambuco, que incluía instrumentistas brilhantes como o guitarrista Ivson “Ivinho” Wanderley e o baterista Israel Semente. No entanto, dos remanescentes só permaneceu o guitarrista Paulo Rafael.

Em 1975, com esse pessoal, que incluía ainda o percussionista Agrício Noya e Zé da Flauta, e mais Zé Ramalho e Lula Côrtes, Alceu participou do Festival Abertura, da TV Globo, com a música Vou danado pra Catende, poema de Ascenso Ferreira que ele musicou. A interpretação rendeu um vídeo, hoje disponível no YouTube, extraordinário único registro ao vivo dos músicos da Ave Sangria na época. Alceu, cinco anos antes de estourar com seu primeiro grande sucesso, Coração bobo, que seria lançado em 1980, aparece, nessa espécie de videoclipe, esbanjando toda a sua presença cênica e a “energia dos doidos”, como um Mateus hippie e roqueiro.

Sem dúvida, começa a ser erguida uma lenda. Numa época em que o mercado fonográfico já tinha os seus gigantes, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Alceu engata uma carreira com músicas inusitadas, que não se pareciam com nada que tocava no rádio e nem com o trabalho de contemporâneos como Zé Ramalho e Fagner. Canções como Tropicana, Como dois animais, Pelas ruas que andei, Anunciação, Solidão, Estação da Luz trouxeram, além da pernambucanidade na melodia, expressões pitorescas, como “olhar agateado”, e frases poéticas, como “Pele macia, ai, carne de caju!”.

O músico não formatou um gênero, como o fez Luiz Gonzaga, mas criou um estilo que só faz sentido com ele próprio. Por isso, ninguém das novas gerações de músicos trilhou seu caminho. O manguebeat, por exemplo, não se referia a ele. Das bandas da década de 1990, só a Jorge Cabeleira regravou Sol e chuva em seu primeiro disco, e, há três anos, a banda de hardcore de Surubim Hanagorik realizou um disco tributo com versões de algumas composições suas.


Alceu Valença. Foto: Hélia Scheppa

Até 1985, com pouco mais de 10 anos de profissão, Alceu Valença já possuía canções que fariam outros artistas, menos inquietos, se darem por satisfeitos. Nesse ano, mesmo realizando um som chamado de “regional”, foi convidado para integrar a programação do Rock in Rio. Algo bastante pertinente. Afinal, nenhum bandleader brasileiro possuía a postura rock’n’roll que ele transbordava no palco. Naquele ano em que o Brasil fazia sua transição da ditadura para a democracia, o músico encarava, no Maracanã, sua primeira grande plateia, algo que depois seria recorrente, principalmente quando começaram a ser promovidos os shows carnavalescos no Marco Zero e no Galo da Madrugada, bloco no qual costuma entoar seus frevos e os de J. Michiles, exibindo o seu talento como o melhor cantor de frevo de rua.

A propósito, o seu lado intérprete sempre é algo que fica em segundo plano, quando sua obra é abordada. Com sotaque carregado, voz rascante, ele se tornou um dos mais representativos cantores do Brasil, assim como foram Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, ambos de maneira completamente diversa. Sabe impor a uma canção sua personalidade, dando ênfase a palavras específicas, pulsando as frases curtas de suas estrofes.

Em quatro décadas de carreira, o artista lançou 36 discos (24 de estúdio, 10 ao vivo e duas trilhas sonoras), mais de 300 composições, dentre elas dezenas de sucessos. Tropicana, por exemplo, em menos de um ano, vendeu 1,6 milhão de cópias; o disco Anjo avesso, que tinha Anunciação, mais de 1,5 milhão; e La belle de jour, 800 mil unidades.

Alguns desses álbuns lhe renderam prêmios e honrarias, como Amigo da arte (2014), indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Regional. Com o disco ganhou, em 2015, o 26º Prêmio da Música Brasileira na categoria Melhor Cantor Regional. Por ano, realiza espetáculos de diferentes formatos: para o Carnaval, para o São João, para teatro (Valencianas, realizado junto à Orquestra Ouro Preto, com a qual fez shows em Portugal e na França) e para festivais de rock, como o Psicodália e o Rock in Rio. Por conta desses shows, o cantor viaja bastante. “A minha vida é o trem, é a estrada, eu vivo o tempo todo andando pra cima e pra baixo, sou um caminhador.”

NOVOS FEITOS
Hoje radicado no Rio de Janeiro, onde, inclusive, vota, ele diz que tem vontade de voltar a residir nessa casa onde concedeu a entrevista à Continente. “Gostaria de morar em Olinda, mas meus filhos todos moram lá (no Sudeste). Um mora em São Paulo e três no Rio, aí é meio complicado. Eu queria morar aqui. Eu gosto daqui, adoro meus amigos daqui”, ressalta.

No segundo semestre deste ano, será lançado o DVD Vivo! Revivo!, baseado no repertório do álbum Vivo!, de 1976, e que terá o acréscimo de canções de outros discos; e serão relançados em vinil Molhado de suor (1974), Vivo! (1976) e Espelho cristalino (1977). Para o próximo ano, está previsto o lançamento do documentário Vivo - Na embolada do tempo, roteirizado por Hilton Lacerda e dirigido por Cláudio Assis e Lírio Ferreira.

Além do talento como compositor, cantor e ator (exibido também na novela Mandacaru, de 1997), Alceu finalizou o seu primeiro filme, A luneta do tempo, cuja ideia nasceu há 14 anos. O longa, musical narrado em cordel, é protagonizado por Irandhir Santos e Hermila Guedes, que interpretam Lampião e Maria Bonita. O elenco traz familiares, como o filho Ceceu Valença, e amigos do diretor, como o cantor Tito Lívio. A história se passa em São Bento do Una e resgata suas memórias de infância. “Pra todo mundo que chegava perto de mim, eu lia o roteiro. Era gente em avião, em tudo que é canto”, conta, aos risos.

A ligação com o cinema começou em São Bento do Una, onde havia duas salas de projeção, as quais frequentava com a mãe (leia mais sobre isso na entrevista a seguir). No Recife, ia ao São Luiz para assistir aos filmes do neorrealismo italiano e da nouvelle vague, como Acossado. De tanto imitar o protagonista, interpretado pelo ator francês Jean-Paul Belmondo, que passava a lateral do polegar nos lábios enquanto segurava o cigarro entre os dedos, Alceu se tornou fumante, o que provavelmente contribuiu para que fosse submetido a uma cirurgia cardíaca aos 52 anos.

O nome Alceu Valença pode ser pronunciado assim, com nome e sobrenome, pelo Brasil afora. Em Pernambuco, basta dizer “Alceu”, que já se sabe de quem se está falando e o que isso representa. Falar “Alceu” é lembrar, em poucos segundos, sua figura irrefreável no palco, num trio elétrico ou na sacada de sua casa em Olinda, onde sua aparição saudando os milhares de foliões é uma das tradições e atrações não previstas na programação oficial, mas na programação afetiva do carnaval pernambucano. A passagem rápida do tempo talvez não tenha nos dado a exata dimensão de que esse bicho maluco beleza é hoje o maior artista vivo da música pernambucana.

Por baixo da cabeleira branca que insiste em empurrar a parte tingida (“A mulher pinta o cabelo, por que eu não posso pintar?”), das rugas de incontáveis expressões faciais, das marcas na pele de tantos raios de sol e da cicatriz da cirurgia no coração bobo, vive um jovem. Logo ao saber do motivo da entrevista, ele não espera a primeira pergunta e começa: “Eu não me sinto jamais com 70 anos, mas 70 é preocupante (risos). Nunca fiquei pensando nesse negócio de idade, agora é que tem essa coisa de 70. Fiquei com vontade de botar 70 07, porque eu posso ter 7 anos como ter 70. Eu sou um menino a vida toda”.

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