Arquivo

Farofa: Uma grande companhia

Usada sobretudo como acompanhamento de pratos com molho, a iguaria à base de mandioca é feita em diferentes versões e está na nossa memória afetiva

TEXTO RENATA DO AMARAL
FOTOS RAFAEL MEDEIROS

01 de Junho de 2016

Farofa de bolão, ovo e jerimum integram os acompanhamentos do Cozinhando Escondidinho

Farofa de bolão, ovo e jerimum integram os acompanhamentos do Cozinhando Escondidinho

Foto Rafael Medeiros

Na praia, ao lado de um galeto assado, ela dá nome ao pejorativo adjetivo de “farofeiro”. Mas também pode ser muito chique nas mesas natalinas, com direito a castanhas, passas e outras frutas secas. Quando se fala em farofa, versatilidade é a palavra-chave. Por aqui, a pesquisadora Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, autora de História dos sabores pernambucanos, ressalta a importância da iguaria em terras maurícias: “Farinha, farofa e pirão acompanham quase todos os pratos pernambucanos”. E, além do sabor, ela pode vir guarnecida também de boas memórias e histórias.

Apesar de a farinha de mandioca ter origem indígena, a receita da farofa não era conhecida pelos índios. “Farofas são farinhas temperadas, refogadas em geral em cebola e alho, e outros condimentos. Índio não comia farofa nem nada refogado. O tempero (pimenta e, raramente, sal) vinha por adição à comida já pronta”, esclarece o sociólogo Carlos Alberto Dória, no texto Churrasco com farofa. Por ser uma guarnição de característica mais ressecada, ela nunca vem sozinha no prato. “Ela sempre é um complemento a algo caldoso, uma adição. Como o pão na açorda portuguesa, amolece”, completa.

O autor acredita que a farofa seja uma adaptação da paçoca, usada como método de conservação para alimentar os bandeirantes que desbravavam novas terras em busca de ouro e prata. “A utilização da farinha na culinária brasileira dá o mingau e o pirão, primeiramente. Dá também a paçoca, de onde deve ter derivado a farofa. O uso da paçoca, assim como do cuscuz paulista, foi para respaldar as entradas no sertão, o bandeirismo, assim como a lida com o gado, quando se levava o farnel já pronto. Aí, quanto menos umidade, maior longevidade da comida”, justifica.


No Altar Cozinha Ancestral, a farofa, bem como outros pratos, tem origem na cozinha dos orixás

Dória propõe uma classificação culinária diferente em seu livro Formação da culinária brasileira: escritos sobre a cozinha inzoneira: em vez de ordenar os pratos de acordo com o momento da refeição (entrada, prato principal e sobremesa), técnica ou ingrediente, ele opta pela diferença entre secos e molhados, numa espécie de gradação. “Se acompanharmos a sequência dos pratos brasileiros onde a água vai rareando, o alimento ficando mais seco, quando se tempera o ‘pirão’ sem acrescentar água, chegamos à farofa – seja de mandioca, seja de milho”, defende.

O Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define que a palavra vem de falofa, da língua africana quimbundo, falada em parte de Angola, e indica uma mistura de farinha com gordura ou água, e eventualmente outros alimentos. Maria Lecticia afirma que os escravos já faziam farofa e que a primeira referência ao termo surge no livro Reminiscência de viagens e permanência nas províncias do Norte do Brasil, de Daniel Parish Kidder (1815–1892), que dizia: “Usava-se muito a farinha de mandioca preparada com gordura, pimenta e vinagre, ao que chamam farofa”.

EXPERIÊNCIA
Responsável pelas panelas do restaurante Altar Cozinha Ancentral, Carmen Virginia Santos se considera uma amante da farofa e ressalta os vínculos de afetividade que ela desperta. Para o lado positivo e para o negativo, inclusive: na infância, caso não raspasse a comida do prato, sua avó a obrigava a comer uma tigela cheia de farofa como castigo, acompanhada de charque salgado, sem escaldar. Por outro lado, na hora de agradar, a farofa vinha com charque escaldado, manteiga e coentro, moldada nas mãos e oferecida na boca das crianças. “Muita gente já teve essa experiência”, lembra.

Como acredita que a farofa complementa algo que falta na refeição, Carmen Virgínia quis criar um capítulo só para elas no restaurante, no qual a maioria das carnes aparece ladeada por essa guarnição. São várias as opções: a farofa de bolão vem ao lado da galinha de cabidela; a de batata-doce tem um aspecto mais molhado por causa do tubérculo amassado; a de dendê, com cebola e frango desfiado, é para as moquecas; a de cachaça é feita “dando um susto” com a bebida na panela; e a de banana-comprida é lembrada com carinho pela chef porque foi a primeira receita que ela apresentou em um programa de televisão.

Carmen Virgínia aprendeu a cozinhar fazendo comida de santo – é iabassê, ou seja, filha de santo responsável por cuidar da cozinha dos orixás – e aperfeiçoou a técnica na Faculdade Senac. Segundo ela, o santo que mais gosta de farofa é Exu, cuja oferenda mais comum é o padê, feito com metade de farofa branca e metade de farofa de dendê. Seus irmãos Ogum e Odé também comem, mas sem grandes exigências, com mais simplicidade. “Exu come tudo que a boca come”, explica ela, que prefere comprar farinha do tipo “quebradinha” e considera que Vicência e Lajedo têm boas casas de farinha tradicionais.


Serviço de entrega de refeições da Möer Confort Food tem a iguaria como carro-chefe

No Möer Confort Food, serviço de entrega de refeições que completou um ano em maio, a farofa é a estrela. Todos os pratos podem vir acompanhados por ela ou por uma minissalada. O chef Romero Petribú conta que, desde que se iniciou na cozinha, sempre gostou de preparar o prato, que era muito pedido pelos colegas quando ele morava em Águas de São Pedro, em São Paulo, onde fez o curso de cozinheiro do Senac em 2003. A Farofa Möer, desenvolvida por ele ao longo dos anos, leva farinha de pão e de mandioca, “temperos secretos” e carnes e presuntos picados na ponta da faca.

Quando morou em Marselha e Lion, na França, há 10 anos, já trabalhando na área de gastronomia, Romero tentou introduzir a farofa em alguns locais, mas não houve boa aceitação. A dificuldade em encontrar a farinha foi superada com idas a lojas de brasileiros, mas os franceses consideravam o prato muito seco para seu paladar. De volta ao Recife, ele optou por abrir o delivery em vez de um restaurante, para não precisar administrar o salão da casa. Em breve, também pretende vender os pratos prontos em lojas, fazendo a empresa funcionar como uma mini-indústria.

SUSTANÇA
O chef Rivandro França, do Cozinhando Escondidinho, também vai além das propriedades gustativas do prato. Ele conta que foi criado em uma família muito humilde, na qual a farofa era a guarnição principal à mesa – muitas vezes, era ela que complementava o feijão no lugar do arroz, em forma de farofa de bolão, também conhecida como farofa d’água. “Ela foi meu sustento por vários anos quando eu era pequeno”, rememora. “Há um sentimento maior envolvido.” Seus avós tinham uma casa de farinha no município de Pedra de Fogo, na Paraíba, mas ele não gostava da versão produzida por eles porque era uma farinha mais bruta, com muitos resquícios de goma.

Hoje, ele compra uma farinha de textura média de um vendedor que está há 45 anos no Mercado de Casa Amarela, que funciona como “despensa” do seu restaurante, a poucas ruas dali. O cardápio traz farofa de dendê acompanhando moqueca e sururu e farofa de bolão ao lado do bode, galinha de cabidela e pratos com molho. O menino que se deliciava com papa de farinha com leite na infância defende que a farinha é o início de tudo e responsável por dar “sustança” às refeições. “É um dos primeiros grandes produtos da mandioca”, diz, lembrando que o folclorista Luís da Câmara Cascudo a chamava de “rainha do Brasil”.

Para preparar a farofa de bolão, ele ferve a água, adiciona manteiga de garrafa, apaga o fogo, acrescenta a farinha e deixa ela hidratar para depois “ciscar” com um garfo e separar os grânulos. Na hora de servir, põe pimenta biquinho para enfeitar e coentro para temperar – há quem coloque o coentro na água, mas ele prefere fazer isso depois, para conservar o frescor e o aroma da erva. Além de vir na companhia dos pratos principais, a receita também pode ser pedida separadamente. Rivandro chega a se emocionar quando pedem 15 porções extras no fim de semana. “Hoje, as pessoas comem por gostar”, afirma. 

RENATA DO AMARAL, jornalista, professora doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: Prato do dia do jornalismo cultural.

 

Publicidade

veja também

Céu: a força da delicadeza

Mulheres: o gênero por trás do filme

Amazônia: quatro dias no Rio Negro