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Coletivo Angu: Sobre o que vai do sangue aos ossos

Novo espetáculo do grupo fecha trilogia com texto recriado para o palco por Marcelino Freire, a partir do seu próprio romance, 'Nossos ossos'

TEXTO ALLAN NASCIMNENTO
FOTOS ERIC GOMES

01 de Junho de 2016

Montagem conta com cinco atores em cena, preparados para atuar em grandes ou pequenos espaços

Montagem conta com cinco atores em cena, preparados para atuar em grandes ou pequenos espaços

Foto Eric Gomes

Urubus têm no olfato um aliado para a sobrevivência. Por terem garras pequenas, são aves sem habilidades para a caça, e identificar a matéria em decomposição é a alternativa na busca por alimento. Em Ossos, espetáculo do Coletivo Angu a partir do primeiro romance de Marcelino Freire, urubus são tipos que surgem nas passagens mais fétidas das vidas encenadas, alimentando-se dos piores sentimentos dos personagens ao passo da condução narrativa. Comem tudo aquilo que é abominado, descartado, mas, em uma das cenas, deixam claro: urubus também amam. Assim, a morte, o abandono, a fuga e o suicídio compõem o cardápio do que é servido a eles no palco, na montagem que marca o reencontro entre o grupo e o autor, com estreia marcada para 11 de junho, no Teatro Apolo, no Recife.

Invocadas, as aves pretas são recorrentes, mas não alcançam, isoladas, o status de narradoras da história. Em Ossos, outra figura que dá norte à trama é um escritor, que, a princípio, numa espécie de prólogo, se apresenta como Marcelino Freire e, em seguida, surge como o dramaturgo Heleno de Gusmão, pernambucano de Sertânia, que desiste de tentar a carreira nos tablados do Recife para ir atrás do grande amor em São Paulo – em um projeto frustrado que desencadeia toda a tragédia subsequente.

Em Nossos ossos, romance que serve de base à peça, o êxodo de Heleno se revela falho em sua principal motivação, mas a cidade que o abriga reserva para ele uma trajetória artística de reconhecimento internacional. Desprezado pelo homem por quem se aventurou, o escritor passa a procurar consolo nos michês da Estação da Luz, construindo uma relação de afeto (pelo menos de sua parte) com Cícero, conterrâneo cujo destino é ser assassinado e ter seu corpo registrado como indigente no Instituto Médico Legal (IML). Para garantir uma morte digna ao rapaz, Gusmão decide localizar o paradeiro dos familiares dele e entregar-lhes o cadáver, um périplo que se revela uma viagem também ao seu universo interior e às suas paisagens de origem.


Com direção de Marcondes Lima, espetáculo foi montado a partir da premissa de levar literatura pernambucana aos palcos

Na versão teatral do livro, a adaptação é assinada pelo próprio Marcelino, que voltou à obra e incluiu contornos à condução da trama. Se é possível identificar passagens autobiográficas na história (o autor é também nascido em Sertânia e construiu carreira em São Paulo), ele brinca com esses elementos no texto cênico. Em Ossos, essas semelhanças são postas de forma mais explícita, mais até do que no romance. “Quando escrevo um conto, é uma outra pessoa que fala. Já aqui tem muito de mim. Vocês entendem?”, questiona, ainda no prefácio da peça, o Marcelino vivido pelo ator André Brasileiro, que também dá vida a Heleno – dando a ilusão de que um é o alter ego do outro.

“No livro já existe essa confusão entre mim e o protagonista Heleno de Gusmão. No palco, quis reforçar isto. Quis dar corpo, alma e osso a esses elementos reais e inventados. Quis fazer um certo ‘teatro’. Ironia pura. E confissão, de alguma forma. Confesso: ele, Heleno, sou eu no palco. Creiam nisto…”, diz o escritor em entrevista por e-mail à Continente.

TEXTO DRAMÁTICO
Ossos é o primeiro espetáculo do grupo a ser montado a partir de um texto teatral, além de ser também o primeiro a partir de um romance. “Nas outras montagens, fazíamos o que chamamos de transcriação, que era criar em cima do próprio autor. Não havia uma adaptação. Agora, há um texto dramático e foi preciso se debruçar sobre ele, mas, claro, fazendo isso dentro da filosofia do grupo”, explica Marcondes Lima, diretor da peça. “Marcelino escolheu transformar a história em texto teatral, sem manter o texto integral. Ainda na fase de leituras, ele fez interferências na adaptação e decidiu incluir a figura do autor”, conta.

O processo de composição dos personagens, então, foi conduzido de uma maneira diferente da que o coletivo está habituado. Nos espetáculos que compõem o repertório do grupo – Ópera, a partir de contos de Newton Moreno; Essa febre que não passa, dos contos de Luce Pereira; e Angu de sangue e Rasif – Mar que arrebenta, estes dois também de Freire –, todos os atores interpretavam, na fase de ensaios, todos os personagens da peça, e, a partir desses experimentos, eram extraídos elementos para a criação dos papéis. Para Ossos, esses experimentos foram deixados de lado, mas mantendo a improvisação na etapa de desenho das figuras.

Outra novidade na elaboração do espetáculo foi um workshop para escolher dois novos atores que pudessem dar vida aos michês da trama. Uma chamada foi divulgada nas redes sociais do grupo procurando um ator jovem de 18 a 25 anos, com as seguintes atribuições: “másculo, bonito e sensual, ou que aparente isso; sem pudores em cena, ou que aparente isso; desencanado com nudez, ou que aparente isso”. Dessa convocatória, foram escolhidos 20 atores para os testes e, destes, cinco foram chamados para a etapa final. “Os cinco passaram uma semana com a gente, em um processo que não apenas foi de escolha, mas também de formação. Passamos juntos uma semana experimentando cenas e percebendo o sentimento dos atores”, detalha Marcondes. Dessa experiência, passaram a compor o elenco de Ossos Daniel Barros, que recentemente estreou pa(IDEA) – Pedagogia da libertação, apresentado no último Trema! Festival, ao lado de Júnior Aguiar; e Robério Lucado, do elenco do Cabaré Diversiones, do Vivencial.

ESPETÁCULO COMPACTO
O Coletivo Angu se mantém fiel à sua proposta inicial de levar a literatura pernambucana para os palcos. Na nova montagem, são mantidas a dicção e a fluidez do romance, mas sem seguir tudo o que está no livro, alternando a estrutura da trama e a maneira de contar a história. A agilidade oral e as figuras humanas que caracterizam toda a obra de Marcelino – e que foram absorvidas pelo Angu em 12 anos de estrada – estão presentes no espetáculo. “Quis ser um autor diferente: um no romance, outro na peça. Esse jogo me seduziu. A grande dificuldade foi não tornar o texto literário demais. Criar outras situações. Imaginar a cara e o trejeito de cada personagem. Limar alguns personagens na hora da adaptação. E inaugurar, na peça, um novo narrador. Daí a criação dos urubus. Eles que costuram, fúnebres, a narrativa”, conta o autor, que pela primeira vez adaptou uma obra sua para o teatro.

“Eu já havia escrito o livro. Tudo o que quis compor, contar, dizer já está lá no livro. Como escrever e viver tudo de novo? Precisei contar por uma outra ótica, inventar outros impulsos. O difícil foi encontrar o tom, uma nova história a partir do corpo do romance. O bom é que, se alguém disser assim ‘Gosto mais do livro’, fui eu quem escreveu. ‘Gostei mais da peça’, fui eu também quem escreveu”, pontua Marcelino, que explica, no entanto, que a construção dramatúrgica em Ossos não é fruto de um voo solo. “O grupo foi fundamental para a costura do texto. Todos me ajudaram dando dicas, apontando caminhos. O Coletivo Angu de Sangue é muito lindo. Tenho muito o que agradecer a eles. Esta peça fecha uma trilogia de trabalhos meus com eles que começou com sangue (do Angu de sangue) e agora vai aos Ossos. Sempre com a alma deles, lá dentro, no meio, guiando tudo.”

Do texto extenso, Marcondes buscou construir um espetáculo compacto. São seis atores em cena. Além dos já citados André Brasileiro, Robério Lucado e Daniel Barros, fazem parte do elenco Arilson Lopes, Ivo Barreto e o próprio Marcondes, que interpreta Estrela, a transexual que faz performances evocando grandes divas da música brasileira – como Carmen Miranda, que ganha citação em um número de Taí.“Precisávamos fazer um espetáculo que pudesse se adequar tanto ao palco de grandes teatros quanto aos espaços alternativos. É uma montagem mais seca, até porque não teríamos como subsidiar um elenco maior”, justifica o diretor da peça, que tem Ceronha Pontes na assistência de direção e trilha sonora assinada pelo músico Juliano Holanda.

O espetáculo também provoca reflexões políticas. Traz para o palco aqueles que Marcelino define como “defuntos sociais”, mas com a perspectiva de que é preciso sempre ir até o fim. “O livro já era uma discussão do Brasil enquanto nação. Cada um, digamos, fazendo a sua parte para erguer o país, levantar uma pátria verdadeira, juntar os ossos dela. Heleno de Gusmão faz a parte dele. Diante do atual cenário político brasileiro, Ossos ganha ainda mais relevância em cena. Apesar de tudo, do fracasso no amor, da morte da utopia, da perseguição reacionária, resistiremos.” 

ALLAN NASCIMENTO, estudante de Jornalismo, na Aeso, e Letras na UFPE.

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