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Crowdfunding: O estímulo das vaquinhas virtuais

Financiamentos coletivos contribuem para injetar mais criatividade e autonomia no nicho das histórias em quadrinhos

TEXTO Rodrigo Casarin

01 de Março de 2016

HQ 'Pétalas' precisava de R$ 5 mil para se concretizar e conseguiu R$ 53 mil

HQ 'Pétalas' precisava de R$ 5 mil para se concretizar e conseguiu R$ 53 mil

Imagem Divulgação

Os quadrinistas Gustavo Borges e Cris Peter estavam em busca de financiamento para Pétalas, livro que fizeram em parceria, uma delicada narrativa gráfica sobre as mudanças que o inverno provoca em uma família de raposas. Em vez de seguirem um caminho independente – isto é, bancarem tudo do próprio bolso para depois apostarem nas vendas –, ou procurarem por uma editora, resolveram “testar uma plataforma diferente”, como conta o artista. Fariam uma vaquinha virtual para levantar a grana que bancaria os custos do projeto e recompensariam os financiadores de acordo com a quantidade de dinheiro “investida” – em troca, dariam desde um arquivo digital do trabalho até um pacote com 10 itens. No total, pediam R$ 5 mil para que Pétalas se concretizasse, um valor irrisório, perto do que realmente obtiveram: em 60 dias, pouco mais de R$ 53 mil estavam à disposição da dupla para que a ideia fosse adiante.

No Catarse, maior site de financiamento coletivo do país – e justamente o escolhido por Cris e Borges –, os quadrinhos vêm fazendo muito sucesso. Em números de projetos, a categoria é a quinta maior da plataforma – fica atrás de música, cinema e vídeo, teatro e literatura – e, por lá, 64% das 256 iniciativas propostas por quadrinistas obtiveram êxito. Olhando somente para as cifras, entretanto, as HQs sobem ao pódio: até aqui, seus projetos arrecadaram mais de R$ 3,15 milhões, oriundos de quase 29 mil apoiadores, ficando atrás apenas do dinheiro já investido em música, cinema e vídeo.

“As plataformas de crowdfunding são uma maneira de conectar pessoas para tirar ideias do papel; nos quadrinhos, isso ocorre de maneira bastante prática e eficiente, possibilitando publicações que antes dificilmente seriam aceitas por editoras”, analisa Rafael Cruz, estrategista de campanha do Catarse. “A importância da categoria não para de crescer. Uma possível explicação para isso é a força da comunidade. Cerca de 2% dos seus apoiadores já ajudaram a financiar mais de 10 histórias em quadrinhos. Quase 25% dos membros possuem pelo menos dois projetos apoiados. É uma taxa de recorrência altíssima. É uma comunidade autorregulada, que troca informações o tempo todo e que soma esforços para continuar forte”, continua, sobre o financiamento de HQs.


Gustavo e Cris são so responsáveis pelo livro financiado via Catarse. Foto: Divulgação

O estrategista lembra também que o impacto desses financiamentos já repercute em importantes eventos das HQs brasileiras. Em 2014, por exemplo, o Catarse levou o Troféu HQMix na categoria Maior Contribuição ao Quadrinho Nacional, e, em 2015, no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), ao menos 27 lançamentos tinham sido financiados pela plataforma.

COM A EDITORA
Pela experiência que teve junto a Cris, Borges acredita que o financiamento coletivo é uma ferramenta interessante, mas faz ponderações. “Existe, sim, mais liberdade, porém existe também toda a responsabilidade em cima de você. Se algo der errado, a culpa é só sua. Quanto maior for a proporção que seu projeto tomar, maior vai ser o tempo que terá de despender após a campanha, embalando, enviando e gerenciando todos os livros, e atendendo os apoiadores. Isso, sem planejamento ou ajuda, se torna o caos na Terra”, diz ele, que, além de encarar a empreitada com profissionalismo, não acredita que haja fórmula para ser bem-sucedido. No entanto, insiste que é importante tratar bem os financiadores. “Eles não estão só comprando seus quadrinhos, estão lhe dando um voto de confiança.”

Outro que recorreu à vaquinha virtual foi Theo Szczepanski. Desde 2011, ele vinha produzindo A grande cruzada, que chegou às mãos dos leitores no final de 2015, após o artista arrecadar quase R$ 6.500 – a meta era R$ 4.500 – para conseguir publicá-la em parceria com a editora Devaneio, que bancou uma parte da obra. Para executar a narrativa gráfica, inspirada no episódio histórico do século 12 chamado de A cruzada das crianças, Szczepanski apostou no formato misto, após ser ignorado por algumas casas editoriais. “Não sei se é em função do volume de material que recebem ou é puro desinteresse, mas a caixa de entrada das editoras para novos autores parece ser ligada diretamente à lixeira”, critica.


Autores têm buscado a plataforma que, só em 2015, viabilizou pelo menos 27 projetos de quadrinhos. Imagem: Divulgação

Ao cabo, o artista achou a experiência positiva, pela “liberdade total” que lhe propiciou. “Acredito que essa liberdade varia de acordo com a editora e o peso do nome do autor envolvido, mas, se tiver muito cerceamento, é melhor ir cortar cana, virar pedreiro, abrir uma igreja. No caso específico de material autoral, se a editora se impuser muito, é melhor que feche.”

O otimismo com relação aos financiamentos coletivos não se restringe aos quadrinistas, mas se estende também a especialistas na arte. Sidney Gusman, jornalista e editor da Mauricio de Sousa Produções e do Universo HQ, site focado no assunto, por exemplo, explica que o recurso dá “a muita gente que está produzindo quadrinhos a chance de se autopublicar e, mais do que isso, permite ao autor perceber o tanto de trabalho que dá colocar uma edição no mercado”.

Para ele, no entanto, isso não representa necessariamente uma mudança na arte, mas apenas uma forma de dar vazão às produções, o que acaba por complementar e dialogar com o trabalho feito pelas editoras. “Complementa, no sentido de publicar autores que possam chamar a atenção do próprio mercado. E dialoga, porque já há editoras publicando materiais oriundos de financiamentos coletivos”, argumenta.


Sidney Gusman lembra a importância do cuidado editorial nas produções independentes. Foto: Divulgação

Já Raphael Fernandes, editor da Draco e roteirista da HQ Apagão e ditadura no ar, vê o sistema causando mudanças. “Os financiamentos coletivos ajudaram o quadrinho nacional a ganhar mais fôlego, de uma forma bem mais democrática do que as leis de incentivo. Afinal, até mesmo um projeto maluco que nunca seria aprovado em um ProAC (Programa de Ação Cultural de São Paulo), por exemplo, pode levantar uma bolada em uma campanha bem-feita”, diz.

COMPROMISSOS
Mas nem tudo é maravilhoso no mundo da vaquinha virtual, evidentemente. Sidney Gusman lembra que muitos artistas fazem projetos que, apesar de se destacarem no aspecto gráfico, são editorialmente péssimos. “Hoje, é possível um autor produzir uma edição que, graficamente, nada deva a uma lançada por uma grande editora, dependendo do valor arrecadado, claro. Mas o lado editorial precisa acompanhar esse requinte, senão o que se vê é um produto ‘meia-boca’ embalado com papel de luxo. O que tem de HQ que saiu via financiamento coletivo com uma revisão medonha é uma grandeza.” O editor também recorda que muitos quadrinistas prometem recompensas a seus financiadores, mas depois não cumprem o acordo. “Isso queima não apenas o autor, mas muita gente simplesmente desiste de apoiar outros projetos com medo de levar calote de novo”, alerta.


A grande cruzada mesclou recursos da vaquinha virtual com
o trabalho da editora Devaneio. Imagem: Reprodução

Szczepanski vai além e relembra que, em muitos casos, o ambiente virtual leva o artista a focar mais na própria figura do que na obra em si. “Desde que a ideia de financiamento coletivo foi colocada, o que me preocupou foi esse fenômeno pós-internet de todos construírem personagens de si mesmos nesse ambiente. Redes sociais, perfis, avatares, exibicionismo, superficialidade, é uma lama na qual um processo como o Catarse está inserido – todos estamos. Quando eu era pequeno, desenhar e gostar de HQ dava tanto status quanto ter lepra; mas, hoje, não, então tem uma movimentação de pessoas posando de artistas – e essa pose frequentemente parece contar mais do que o trabalho em si. O que acho desagradável é esse clima de autopromoção, uma certa babaquice institucional que me dá vontade de vomitar. Por isso, fiz a campanha no Catarse com ênfase no trabalho. Surpreendentemente, deu certo.”

As críticas do autor de A grande cruzada não se encerram aí, apesar de ver as ferramentas de financiamentos coletivos como uma saída, talvez a única, para muitos artistas, o que pode levar a mudanças. “As grandes editoras vão se ocupar da versão do Harry Potter pelo Paulo Coelho. Nós, a plebe, temos de nos virar. Eu não seria tão otimista quanto ao poder transformador de tais ferramentas. É um cenário mais amplo e complexo, que depende muito do público educar a si mesmo, desenvolver uma mentalidade crítica. Essa conversa de transformação e revolução eu já ouvi quando surgiu a internet, e o que temos são hordas de zumbis replicando comportamentos. E é aí que está a importância dessa ferramenta, ela é uma picareta bem pequena que pode fazer uma microscópica rachadura no muro – o que é mais do que tínhamos antes. Isso permite que pessoas como eu, que querem falar umas abobrinhas antes de morrer como mendigos, possam ser ouvidas por dois ou três pares de orelhas interessadas.” 

RODRIGO CASARIN, jornalista, mantém no UOL o blog de literatura Página Cinco.

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