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Video Game: Uma metáfora para a vida

Boas narrativas digitais proporcionam experiência imersiva que se assemelha à emoção e à aventura de ler um livro, com a diferença de o jogador se apropriar dela

TEXTO Moema França

01 de Dezembro de 2015

Link, personagem do game 'Legend of Zelda', lançado em 2007

Link, personagem do game 'Legend of Zelda', lançado em 2007

Imagem Divulgação

São 8h no meu celular. Na tela do Nintendo DS, o herói Link segura uma espada enquanto corre por diversos mundos em busca da Princesa Zelda. O jogo Legend of Zelda: Phantom Hourglass, lançado em 2007, conta a história do jovem Link que vai salvar a Princesa Zelda, sequestrada no reino de Hyrule. Quando me dou conta de mim, me dou conta de Link: deitada na cama, eu sou eu, de pijamas, com o gato do lado; mas também sou o menino loiro vestido de verde acompanhado de uma fada que dá dicas. Se o filósofo alemão Eugen Fink, seguidor de Heiddeger, afirmou que o jogo pode ser entendido como uma metáfora especulativa do mundo, então Link é uma das infinitas especulações da minha vida. Fink, o filósofo, dizia ainda que é no jogo que a relação entre a pessoa e o mundo se dá de uma maneira peculiar, pois ela também perde o controle e passa a ser jogada. Em outras palavras, para o filósofo, posso até estar jogando um jogo, mas Link, o herói, também está me jogando.

Ainda estava jogando dentro de Link, quando meu celular tocou e o storyteller Leo Falcão, professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), pediu para mudar o local da nossa entrevista, cujo tema era justamente o potencial das narrativas digitais dentro do video game. Mais tarde, tomando café, Leo Falcão falaria que, “como Paul Ricoeur diz, o ser humano percebe o tempo como uma narrativa, comparando o antes e o depois”. E continuaria: “Então, você chegou, estava pronta para ir à Fundaj, quando eu lhe liguei. Disse que a Fundação estava fechada e a gente combinou de se encontrar no Bogart Café. Estava perto da sua casa, aí você reconfigurou e veio pra cá. Então, comparou o estágio antes e o depois a partir disso. É uma percepção narrativa que temos dos eventos. Da mesma forma, comparo a tela do jogo Tetris vazia com a tela do Tetris cheio. O que tenho que fazer para diminuí-la é a partir dessa percepção narrativa também. Uma história se constituiu para chegar até ali e agora uma outra tem que se constituir para que a tela do Tetris volte a baixar”.


Para muitos críticos, o jogo Heavy Rain também tem elementos cinematográficos.
Foto: Divulgação

Doutor em Design pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Leo Falcão se define como storyteller, apesar de “no Brasil, contador de histórias ter outra conotação”. Ele estuda narrativas digitais aplicadas ao video game, mas não se considera um jogador. “Eu jogo Tetris, Sudoku, Candy Crush também… Mas é curioso que são jogos casuais, não exploram tanto a narrativa. Até tenho curiosidade de jogar um jogo com narrativa (mais aprofundada), mas é que eu não tenho muita paciência”, fala.

Seja o Tetris jogado por Leo Falcão, Legend of Zelda ou um game como Heavy rain: The origami killer, de PlayStation 3, os jogos possuem algo em comum: o poder de criar uma bolha com a narrativa, seja ela complexa ou simples, em torno do jogador. Essa bolha o transporta da realidade em que vive e o deixa imerso em outro mundo, tal qual a literatura e o cinema costumam fazer.

Por também não ser uma jogadora regular, foi apenas depois de ouvir muitas histórias de amigos sobre jogos, como Okami (lançado em 2006 para PS2, Wii e PS3), Shadow of the Colossus (2005, PS2), Fable (2004, Xbox, Xbox 360 e PC), Red dead redemption (2010, PS3 e Xbox 360) ou Mass Effect (2007, Xbox 360, PC e PS3), que percebi que a narrativa de um video game consegue, muitas vezes, proporcionar uma experiência imersiva que se assemelha à emoção e à aventura de ler um livro.

JOGO MENTAL
Explico: ler um livro é estar dentro de uma cabeça que não é a sua, mas que você ganhou a chave para entrar. Com essa chave, você pode abrir as portinhas daquela cabeça. Pode chegar entre o cérebro e os olhos e usar a chave para abrir as pálpebras. É pelas pálpebras que vai enxergar a história que este coletivo de cabeça, cérebro, olhos e outras partes têm para lhe contar.

Quando lemos um livro, vemos através do personagem ou do narrador – somos guiados pelo autor a imaginar pessoas, cenas, lugares, emoções. “Na literatura, como não tem as imagens de suporte, então você as cria na sua cabeça. No jogo, estabelece uma narrativa mental. Apropria-se dela. É como se esse caráter de apropriação da história estivesse mais presente na literatura e no jogo do que no cinema, porque, no cinema, você tem uma imagem objetiva, salvo alguns níveis de cinema”, explica Falcão.


Embora haja ordens pré-estabelecidas, podemos mudar a linha da história. Foto: Divulgação

Jogar um jogo significa que, mesmo com as ordens preestabelecidas e limitações no desenvolver da narrativa, nós podemos mudar a linha da história, o desenrolar dos acontecimentos, de acordo com nossas ações. Não apenas estou vendo Link fazer as coisas, como também decido o que ele fará, porque, até que se prove o contrário, eu sou ele.

O jogo só começará se houver um jogador para a interação, assim como o livro não começa nem termina em si mesmo. Os filmes, por sua vez, também apresentam mecanismos de interatividade específicos, dado que o espectador vai receber, interpretar e incorporar determinada obra da maneira que quiser. “Temos uma interatividade subjetiva, na qual interpretamos aqueles códigos que estão à nossa frente, principalmente se houver um apelo narrativo envolvido. E há uma interatividade objetiva, em que manipulamos o conteúdo, modificando-o”, comenta Leo Falcão. Com o ponto de vista do sujeito, os meios se tornam extensões do corpo com o qual interagem, formando um diálogo orgânico entre a pessoa e a obra. Assim, jogador e jogo são uma só “pessoa”.

Como Legend of Zelda não é um game que oferece um grande arcabouço de escolhas dentro da narrativa, foquemos em outro jogo, Heavy rain: The origami killer, lançado pela Quantic Dreams em 2010. Heavy rain se situa entre jogo e filme para muitos críticos, como se ser “só um jogo” diminuísse a obra. Possui 27 finais, que variam de acordo com as escolhas do jogador, mas nenhum é o principal. A premissa, porém, é sempre a mesma: o filho do arquiteto Ethan Mars morre, após ser atropelado em frente a um shopping. Dois anos depois, seu segundo filho, Shaun, é sequestrado. A trama consiste na busca e nos sacrifícios de Ethan para encontrar Shaun. Nós controlamos Ethan, junto a mais outros três personagens que investigam o desaparecimento – Scott Shelby, o detetive, Madison Paige, a jornalista, e Norman Jayden, o agente do FBI.

IMERSÃO
A pesquisadora de narrativas digitais Janet H. Murray explica que o leitor/jogador/espectador passa a assumir uma função mais ativa na história, quando o autor/designer nela inclui diversas possibilidades, fazendo uma expansão na narrativa. Essa liberdade é somada à experiência de ser transportado a uma realidade simulada, e daí vem o termo imersão. Imersão deriva da sensação física de estar submerso na água, envolvido por um universo que é estranho à nossa realidade. Quando mergulhamos no mar ou na piscina, o fato de estarmos em um ambiente tão alheio ao que nos é peculiar passa a reger todas as nossas sensações. Temos que aprender a nos movimentar naquele meio, a entender como ele funciona, ao mesmo tempo em que saboreamos a experiência de uma nova realidade.

Em Heavy rain, mergulhamos em cada um dos personagens que controlamos – será que Ethan alguma vez será feliz de novo? Como posso ajudar para que ele encontre seu filho e supere os traumas do passado? Como ajo para que Jayden, o agente do FBI, se recupere do vício nas drogas? O que posso fazer para que eles não morram? O que eu faria no lugar deles? Será que, assim como o herói Link, estou sendo jogada por Ethan e outros personagens ao mesmo tempo em que “os jogo”?


O professor Leo Falcão estuda narrativas digitais aplicadas aos games. Foto: Divulgação

Mandei um email para a PhD em Jogos Digitais Arlete dos Santos Petry, perguntando sobre se é possível ser “jogada por um jogo”. Segundo Arlete, “o jogo nos conduz e a consciência que temos de nós, de nossa subjetividade se esvai, revelando facetas de nós mesmos que desconhecíamos; ou então, comportamentos que só adotamos pelo fato de ‘encarnarmos’ um determinado perfil de um personagem. É nesse sentido que logo percebemos, quando achamos que estamos jogando um jogo, dele tendo controle, que é o jogo que nos controla, e, em vez de estarmos exteriores a ele, estamos dentro dele”.

Encarnados em Heavy rain, escolhemos se Ethan se envolverá sexualmente com outra personagem. Esvaídos de subjetividade e consciência de nós mesmos, decidimos se Ethan vai brigar com o filho antes de levá-lo à escola, se vai sair de casa na chuva porque está triste. A construção de personalidade do nosso personagem, somada às ações que praticamos, nos envolve na narrativa e nos “revela” as tais facetas de nós mesmos que desconhecíamos. É assim que o controle do video game se incorpora à nossa pele, nos projetamos no personagem e pensamos por ele. Há uma interação entre o “eu” e o “outro”, visto que estamos nos colocando no lugar de outra consciência que não a nossa.

Por mais que consigamos ter experiências íntimas com personagens e sentir epifanias, como a Macabéa de Clarice Lispector, não somos nós que decidimos, de fato, o que o personagem pode fazer. Em Zelda, eu poderia não falar com as pessoas que me sorriem nas casas da vila Hyrule, assim como ter escolhido ser violento com Shaun, o filho de Ethan, em Heavy rain. Do mesmo modo, optaria por não mentir, no início desse texto, dizendo que meu gato estava no pé da minha cama enquanto eu jogava Zelda. Mas o que você, leitor, ficaria sabendo, seria apenas a minha visão dos fatos. Para você, o gato estaria lá, mesmo sem estar – e a autora dá o ponto final. No jogo, você poderia ter escolhido, dentro do possível, a sua visão – o ponto final é seu. E é aí que mora a grande magia. 

MOEMA FRANÇA, jornalista.

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