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“Acreditamos que podemos controlar nossas imagens”

Psiquiatra e psicanalista de orientação lacaniana, Marcus André Vieira afirma que a psicanálise precisa achar estratégias para lidar com questões contemporâneas surgidas com as redes sociais

TEXTO Carolina Leão

01 de Agosto de 2015

Marcus André Vieira

Marcus André Vieira

Foto Leo Caldas

Imagine as primeiras gerações que habitaram o planeta. Naquele universo inóspito, o olhar tinha uma função primordial. A escuta, de pássaros, trovões ou rugidos de predadores, apenas as indicava que algo, um fenômeno natural ou um ataque, poderia acontecer. O olhar não. Ele estava lá confirmando, sem ambivalências, o que se poderia esperar, de melhor ou pior, naquele momento. Nem sempre as imagens eram claras – dentro de uma caverna, por exemplo. Por isso, a necessidade da exploração sinestésica do mundo: a escuta, o paladar, o tato, o olhar. Desde as eras mais remotas, no entanto, o olhar representou um sentido fundamental, mas não o único e hegemônico.

Atualmente, ele é soberano. Se precisarmos de uma “certidão de nascimento” para legitimar o contexto em que a imagem se tornou um elemento social dominante, coloquemos, então, as tecnologias de reprodução como essa virada, a partir da invenção da prensa, no século 15. Durante a modernidade, a fotografia, a litografia, o cinema, por exemplo, deixaram a sociedade cada vez mais distantes da tradição oral. As imagens ganharam espaço, status e poder, ampliados cada vez mais com a cultura da convergência, na qual uma nova linguagem de comunicação e informação vem determinando a vida cotidiana.

Selfies, avatares, filtros de fotografia e aplicativos de interação social, cuja dinâmica está centrada na edição de imagens, pessoais e coletivas, chegam aos divãs do analista. O tema é central no Encontro Americano de Psicanálise da Orientação Lacaniana (ENAPOL), que acontece em setembro, em São Paulo, sob o título O império das imagens, e no qual participa o psiquiatra e psicanalista carioca Marcus André Vieira. Autor de A paixão, Marcus, que esteve em julho no Recife, em palestra na Escola Brasileira de Psicanálise, aponta: a psicanálise também precisa investigar o fenômeno da superexposição imagética, no âmbito coletivo, para entender individualmente os pacientes neste contexto inserido. Em entrevista exclusiva à Continente, ele falou sobre essa questão.

CONTINENTE Desde a sua disseminação, no início do século 20, a psicanálise se mostrou como um meio de analisar a relação entre sujeito e cultura. Partindo dessa perspectiva, o senhor nota uma mudança na clínica, atualmente, por conta do excesso de exposição às imagens, com as novas tecnologias de edição e interação social, por exemplo?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA Sim. Todas as novas questões culturais forçam a psicanálise a entender melhor a dinâmica e mudanças da sociedade e como trabalhar com ela a partir da experiência na clínica. O que percebemos e discutimos hoje é a exposição de imagens como mosaicos fixos, que se acumulam na vida cotidiana gerando um imediatismo muito grande no consumo de narrativas imagéticas (YouTubeselfies, redes sociais, TV). Essas imagens produzem certezas, mesmo tendo a possibilidade de serem editadas o tempo todo. Certezas são narrativas fixas. E o paradoxo é que a nossa cultura está vivendo uma ilusão. A diversidade das imagens nos leva a crer que existem múltiplas escolhas de decisões. Mas não. Vivemos em um binarismo. Ou sim ou não. Esse binarismo oculta os dégradés, os vários tons de cinza que existem em nossa personalidade, em nossa cultura. Essa é a grande dificuldade em fazer com que as pessoas percebam as diversas nuances existentes na personalidade delas e ao redor delas. Porque, no final das contas, elas vão ter a tendência de escolher entre sim e não. No Facebook, esse binarismo é ampliado pela própria lógica matemática do programa, pelo próprio algoritmo. Dia desses assisti ao filme sobre a origem do Facebook, criado para escolher a garota mais sexy da universidade, e o que a gente vê é que o mais importante era gostar ou não daquela imagem exibida, mesmo que as amostras fossem infinitas.


Imagem: Reprodução

CONTINENTE A imagem tem também um caráter de síntese. Ela resume. Os emoticons, por exemplo, acabaram funcionando como um resumo visual dos sentimentos. O excesso de exposição às imagens e a utilização delas como hábito pode, de alguma forma, influenciar na habilidade das pessoas falarem de si como mais propriedade?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA A análise é sempre alguém contando uma história. Uma criança num jogo, com o terapeuta, também fala, é uma forma de contar uma história. Mesmo histórias fragmentadas, como os sonhos, que são feitos caleidoscópios, ou seja, não fazem muito sentido, representam uma forma de contar uma narrativa pessoal. Não é preciso ter uma boa retórica para se fazer análise, mas apenas consentir em falar. Atualmente, não é que eu veja uma baixa capacidade em articular as informações, em falar de si, de sua história. Mas o consumo de imagens surge sem interrogações. Sem questionamentos. Estamos aceitando o binarismo, como a máquina. É um mundo polarizado e uma montagem hierarquizada entre sim e não.

CONTINENTE Qual o efeito dessa tendência no comportamento pessoal e coletivo?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA Esse binarismo oculta as diversas camadas, os outros que precisamos conviver. Estamos, de certa forma, expostos a porcentagens, como no Big Brother, em que temos a escolha de deixar ou tirar quem aceitamos. Mas essa escolha é sempre positiva ou negativa. Ou sim ou não. Querer ou não querer não é uma escolha infinita, é uma escolha limitada.

CONTINENTE A que o senhor atribui essa hegemonia e potencial comunicativo das imagens na cultura contemporânea? Estamos passando por uma nova fase de narcisismo cultural?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA A imagem guarda em si uma nitidez muito grande. Ela tem um poder totalizante. Mas não vejo uma grande mudança do que chamamos de modernidade. São consequências de uma sociedade que já vem desenvolvendo essa relação há bastante tempo. Há outras formas de se editar, de escolher, aquilo que vamos mostrar da gente para as pessoas, socialmente. A diferença é que necessitamos das imagens mais do que em outras épocas. Precisamos nos mostrar, ser visto e ter controle sobre isso. E quem se recusa a participar de redes sociais, por exemplo? Quem não participa, está fora. Está no limbo. De certa forma, somos compelidos o tempo todo a controlar nossa imagem, o que é exposto. É um outro modo de narcisismo: compulsivo e compulsório. Muito se falou na questão de uma pós-modernidade. Mas não vejo que houve uma ruptura de uma outra lógica e sim uma mudança de ênfase. Acredito que estamos numa nova etapa da hipermodernidade, que tem amplificado o poder atribuído à imagem.

CONTINENTE De que forma, por exemplo, a relação com as novas tecnologias de socialização, bastante influenciadas pelo poder das imagens, tem surgido na experiência psicanalítica?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA Vivemos uma clínica diferente. Há uma crise grave. Primeiro, as pessoas estão com dificuldade de se posicionar como indivíduos e entender os matizes que fazem parte da vida delas. Exatamente por conta desse binarismo, que descarta os dégradés da personalidade. Por outro lado, a necessidade desse controle gera ansiedade e angústia, que gera pânico. Essas questões surgem cada vez mais nos consultórios. É comum as pessoas se angustiarem com a imagem que elas estão passando para as outras pessoas ou com o excesso de exposição. Muita gente paralisa e não consegue assumir uma posição mais pessoal. Com a polarização, aliás, fica mais difícil assumir um posicionamento pessoal, distante da coletividade. A autorreferência, inclusive, pode ser coletiva, pois o coletivo é o somatório de uns. As pessoas estão o tempo todo esperando ou “sim” ou “não”, curtiu ou não curtiu. Artefatos técnicos como oTinder não mostram outra possibilidade do que “sim” ou “não”. Ou eu pego aquela imagem que me atraiu ou eu não pego. Não tenho outra chance, porque uma vez passada a imagem não posso pegá-la mais. É imediato. É confuso, paradoxal. Há a ilusão de múltiplas escolhas. Mas as escolhas são limitadas.


Imagem:Reprodução

CONTINENTE Os selfies deixaram de ser uma moda passageira. São um hábito corriqueiro. Como o senhor observa essa superexposição da imagem pessoal?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA Virou uma obsessão. Uma obsessão que tem por objetivo o controle, o autocontrole da imagem que se quer mostrar. Não é que não houvesse uma edição de nossa imagem antes. A questão, agora, é que acreditamos que podemos controlar permanentemente nossa imagem e nos frustramos quando isso não acontece. O loser, por exemplo. Quem não teve sucesso, fracassou. E aí vem toda a pressão por ter um pensamento positivo, para superar as dificuldades. Para enfrentá-las, é preciso sair do binarismo e perceber que somos feitos de vários tons, de dégradés.

CONTINENTE Tira-se selfie em qualquer lugar, de restaurante a funeral. Vejamos, por exemplo, o caso do presidente Barack Obama, do qual foi divulgada uma selfie no funeral de Nelson Mandela. Há, ainda, sites focados especialmente em selfies de funerais. O senhor acredita que com esse autocontrole perdemos o limite ético?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA Não é simplesmente uma perda de ética, não vejo dessa forma. Não vivemos mais num ambiente sagrado. Isso acabou. Naquele contexto, a selfie de Obama tinha uma representatividade. A imagem captada representava a figura máxima da política americana, sociedade conhecida por sua perseverança, confiança, que deveria estar nesse funeral. Nesse sentido, é preciso garantir a imagem. O que não deixa de ser um controle. Nesse caso, o controle da imagem da autoridade máxima dos Estados Unidos.

CONTINENTE Com toda essa necessidade de controle ou autocontrole obsessivo, estamos caminhando para uma regressão intelectual?
MARCUS ANDRÉ VIEIRA Não vejo de uma forma apocalíptica. É um modelo de sociedade que precisamos entender. O que a psicanálise precisa encontrar são estratégias para lidar com essa nova dinâmica e possibilitar às pessoas o entendimento do que eles são, para além desse binarismo. 

CAROLINA LEÃO, jornalista, professora universitária e doutora em Sociologia pela UFPE.

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