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Bienal de Veneza: A semelhança das feiras de arte

Inaugurada em maio, exposição mostra a rearrumação do campo da arte no que diz respeito à sua economia, geopolítica, formas de apresentação e organização de seus agentes

TEXTO Cristiana Tejo

01 de Agosto de 2015

Bienal alterou sua própria data para ajustar-se ao frenético calendário mundial

Bienal alterou sua própria data para ajustar-se ao frenético calendário mundial

Foto Stefano Marchiante/Bienal de Veneza/Divulgação

Durante quase 50 anos, as bienais e trienais de arte e a Documenta de Kassel foram as principais balizas, instâncias de legitimação do campo artístico e a forma de se atualizar com o que estava sendo feito, discutido e pensado em algumas partes do mundo. Estudantes de arte, artistas, críticos, jornalistas, colecionadores e o público mais familiarizado com as artes visuais viajavam para Veneza, São Paulo, Kassel, Paris, para verem a novidade desse campo do conhecimento e poderem fazer parte de discussões que reverberavam por anos. Ser artista participante destes eventos significava um passo importante para a consagração imediata. A partir dos anos 1980, e mais fortemente nos anos 1990, o número de bienais cresceu exponencialmente, gerando uma economia de exposições mais complexa e internacionalizada, que tornou praticamente impossível acompanhar todas elas, já que há bienais em todos os continentes. Para se ter uma ideia, se alguém quiser ver todas as que ocorrem em 2015, terá que se deslocar para Nova Orleans, Taipei, Montreal, Xangai, Bruge, Nova York, Havana, Thessaloniki, Osaka, Lyon, Gotemburgo, Lituânia, Nova Zelândia, San Juan, Indonésia, Cantão, Curitiba, Porto Alegre e Veneza, a cidade que abriga a mais antiga e prestigiosa do mundo. Há muitos motivos por trás da crescente “bienalização” do mundo da arte, mas poderíamos ficar nos três mais evidentes: o interesse de dar visibilidade a um país ou a uma região (literalmente colocar uma cidade no mapa não apenas das artes, mas também do turismo), a luta de uma elite local por prestígio internacional e a enunciação de outras visões de mundo.

Em paralelo à proliferação de bienais, corre o fenômeno das feiras, que também cresceram em número e em importância no campo da arte nos últimos 20 anos. Grosso modo, esses acontecimentos artísticos existem desde o início das bienais (não podemos esquecer que o próprio modelo de Veneza foi inspirado nesses eventos universais em que os países imperiais ou mais industrializados apresentavam suas “últimas invenções”). Entretanto, as feiras tentavam ajustar-se ao calendário das bienais como eventos satélites e atraíam apenas colecionadores e curadores institucionais que buscavam fazer aquisições para suas coleções. Com o fortalecimento do mercado global da arte contemporânea e a reinvenção dessas exposições, começou a haver o contrário. A Bienal de Veneza deste ano alterou a data de sua abertura para se compatibilizar à frenética agenda desses eventos. A horda de especialistas saiu da abertura da prima donna direto para Nova York a fim de acompanhar a Frieze Art Fair. Há 10 anos, o máximo que aconteceria eram algumas pessoas seguirem de Veneza para a Feira de Basel, que ajustava o seu funcionamento ao redor da bienal.


Pepo Salazar reinterpreta Dalí sob um olhar contemporâneo.
Foto: Divulgação/Bienal de Veneza

Trazendo para um exemplo brasileiro, antes de haver a SP Arte, houve a chamada Paralela (2002–2010), evento das mais fortes galerias de arte de São Paulo durante a época da bienal paulista. As galerias convidavam um curador para fazer uma exposição a partir dos artistas de seus times e a mostra ocorria num lugar alugado especialmente para o evento. Em algumas edições, o resultado teve melhor repercussão crítica do que a própria bienal, porém o mais importante de se notar, olhando para trás, é que já estava em marcha o sutil borramento de fronteiras entre algo que se fincava no território da esfera pública da arte e por sua vez mais “desinteressada” dos desejos imediatos do mercado (a bienal) e um outro terreno do campo do privado (o mercado propriamente dito). A Paralela sobreviveu alguns anos ao surgimento da SP Arte, a feira propriamente dita, até seus organizadores compreenderem que não era mais pertinente bancar dois eventos com propósitos iguais. O mundo da arte já havia absorvido a feira em seu calendário anual, ela havia se profissionalizado e se internacionalizado e contava com mostras curadas por jovens nomes, supervisionadas por curadores de renome.

A questão é que tem ocorrido uma rearrumação do campo da arte no que diz respeito à sua economia, que se reflete na geopolítica da arte (o que pode ser aferido pela inclusão cada vez maior de artistas e curadores de regiões não hegemônicas como uma tentativa de expansão de mercado), nas formas de apresentação da arte e de organização de seus agentes. O conceito de mercado foi expandido, pois, na complexa ecologia atual das artes, mercado não diz respeito apenas à venda e compra de obras, mas a um amplo espectro de capitais (simbólicos, sociais, culturais etc.) que gera valor. Portanto, eventos mercadológicos ganham cada vez mais caráter crítico e curatorial e as regras do mercado ficaram mais sutis e multifacetadas, gerando a percepção de que feiras de arte estão ficando cada vez mais parecidas com bienais e as bienais com as feiras de arte.


Obras de Joan Jonas discutem a mudança climática. Foto: Divulgação/Bienal de Veneza

QUESTÕES URGENTES
Este preâmbulo é importante para compreendermos o contexto no qual se situa a Bienal de Veneza. Sua 56ª edição – que segue até 22 de novembro – tem como mote norteador Todos os futuros do mundo, escolhido por seu primeiro curador africano, o prestigiado Okwui Enwezor. Entretanto, trata-se de uma exposição que se baseia em grandes nomes da arte, sem um caráter prospectivo, o que era de se esperar de uma mostra que leva em seu título a palavra “futuros”. O curador apresenta uma mostra elegante com obras que mapeiam diversas questões urgentes da nossa contemporaneidade, como imigrações, precarização do trabalho e da vida, a fragilidade das identidades e das certezas, mas sem muitos riscos, sem grande frescor, quase uma versão esmaecida de sua potente edição da Documenta de Kassel, que revirou paradigmas do mundo da arte há 13 anos.

Teria Enwezor ficado mais conservador ou seria o estado das coisas que não permite bienais mais vivazes e imprevisíveis? Há algumas pistas que podemos seguir para elucidar essa questão. Como a bienal não possui orçamento fixo para bancar seu projeto curatorial, a participação de artistas tem que ser garantida por galerias e instituições privadas, situação que favorece a presença de artistas, mesmo jovens, representados por galerias mais estabelecidas. Além disso, numa época de mundo artístico globalizado, pesquisar artistas tornou-se um périplo mundo afora e muitos curadores passaram a basear suas investigações em suas visitas pagas às feiras de arte (muitos são convidados para eventos teóricos, mas também para simplesmente figurarem na lista de participantes e verem as galerias) ou mesmo em consultas às grandes galerias de arte. Poucos têm financiamento ou tempo para realmente viajar para os cinco continentes a fim de conhecer artistas sem galerias ou sem reconhecimento institucional internacional e seus contextos. Como resultado, notamos pouca renovação no que é mostrado internacionalmente.


A instalação The key and the hand, do artista Chiharu Shiota, é destaque no pavilhão do Japão. Foto: Divulgação/Bienal de Veneza

Num mundo da arte ainda eurocêntrico e branco, é de se destacar e de se celebrar a maior presença até então de artistas africanos (14%) e a participação do primeiro curador negro na mais antiga e tradicional bienal de arte do mundo. Porém precisamos fazer uma breve ressalva ao escrutinarmos as estatísticas. Se olharmos mais atentamente os currículos dos participantes, notamos que eles estudaram ou moram ou tem galerias no eixo Europa/EUA, o que nos leva a supor que a chamada virada global na arte contemporânea não é necessariamente uma descentralização do circuito da arte, mas o reposicionamento do mercado de arte e a expansão de seus horizontes geográficos. A inclusão de agentes oriundos de regiões não hegemônicas não tem significado a ampliação das formas de se fazer, se apresentar e falar sobre arte, mas uma reacomodação da gramática já instituída. É como um idioma que se alastra e começa a ser falado por muitas pessoas de lugares distintos, em vez de uma situação em que uns começam a falar a língua dos outros, acabando por gerar uma confluência poliglota. Devemos saudar, por certo, que ao menos os sotaques deste idioma estão sendo mais aceitos, mas não devemos nos dar por satisfeitos.

A nova virada pós-colonial e global que notamos em bienais (como a última edição de São Paulo) e projetos institucionais (Museu Georges Pompidou, Tate Modern, MoMA, MACBA, Museu Reina Sofia e Guggenheim) é o resultado de um longo processo de revisão teórica que está em curso desde os anos 1960, como consequência das epistemologias do sul, das desconstruções, dos movimentos civis, mas também do novo estágio de mobilidade global. Há algumas diferenças entre o que se via nos anos 1990 com o multiculturalismo, por exemplo, e o novo estágio desta virada. Nota-se que neste momento a discussão foi alargada para temas globais que são discutidos por agentes de várias origens. Já não se aceita tão facilmente que um evento teórico reúna apenas profissionais europeus, por exemplo. Ao mesmo tempo, novas metodologias e aportes teóricos têm sido criados para revisionar a história da arte, a exemplo da observação das artes da África, América Latina, Oceania e Ásia não mais como uma derivação da arte europeia ou norte-americana, mas como simultânea e inter-relacionada. Isso tem levado a novas narrativas da arte e ao interesse em se saber o que ocorria pelo mundo em épocas semelhantes. Não à toa, a recepção crítica de Todos os futuros do mundo tem gerado desagrado nas mais diversas vertentes do mundo da arte. Grosso modo, os partidários de uma arte mais “transcendental” e “estética” repudiam o tom político e por vezes panfletário dos trabalhos escolhidos por Okwui Enwezor. Os especialistas mais voltados para o paradigma pós-colonial, por sua vez, esperavam uma abordagem mais radical e acutilante. É que estamos bem no meio de um processo de transição de valores e de disputa de visões da arte. O interessante é notar que o mercado da arte já capitalizou isso e sejam quais forem os lados que apareçam numa bienal, galeristas rentabilizarão. 

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