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Montez Magno: Bem aventurança temporã, mas justa

Mantendo-se fiel às suas escolhas, o artista chega este mês aos 81 anos num momento especialmente exitoso no reconhecimento de sua obra versátil

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO
FOTOS BRENO LAPROVITERA

01 de Julho de 2015

Montez Magno mantém ateliê em sua casa

Montez Magno mantém ateliê em sua casa

Foto Breno Laprovitera

"Venha, sente aqui, enquanto eu termino isso”, convidou Montez Magno, pausando o pincel e a régua. “Isto que estou fazendo é um estudo de projeção espacial com relevos e sombras. Tá vendo? Esta que estou pintando é uma sombra. É fixa, mas tem outras que não são fixas. Os (trabalhos) menores são muito interessantes, porque, na medida em que você mexe na obra, as sombras vão pra lá, pra cá… Cria uma espécie de cinética”, narra o artista, enquanto uma luz de fim de tarde atravessa seu quintal, incidindo sobre uma das suas mais novas obras, ainda sem título. “Eu fiz três, aí achei muito fácil. Disse que não ia fazer mais, mas ontem, em estado letárgico, de que eu gosto muito, surgiu um negócio na cabeça, um satori dizendo assim: ‘Por que você não faz maior?’ Aí, eu tinha este suporte (de madeira), mandei o rapaz que trabalha aqui dar uma mão de tinta e então já estou terminando.”

O satori a que se refere o artista pernambucano é uma expressão japonesa do zen-budismo, cujo sentido tem a ver com iluminação, compreensão. Na arte, traduz uma espécie de insight para a criação, que, no caso de Montez Magno, acontece muitas vezes durante aqueles momentos de semiconsciência, quando estamos entre o sono e o despertar, e a mente abre as portas para o inesperado. Prestes a completar 81 anos, no dia 27 deste mês, o artista diz apreciar bastante essa “semissonolência” e entrar nela todas as noites. “Às vezes, dou um cochilo em frente à televisão e acordo assim, de repente, assustado. Está vendo aquele anjo?” – aponta para uma de suas pinturas de grandes dimensões, penduradas na parede por trás da TV de sua casa. “Ele já veio pra cima de mim, acredita? E eu disse, espantado: ‘O que é que é isso?!’ É mesmo outro estado de consciência, já fiz várias obras assim; é o que chamo de arte onírica.”


"Isto que estou fazendo é um estudo de projeção especial com relevos e sombras", diz ele sobre sua obra

Os novos trabalhos, mencionados acima, são mais ligados à linhagem geométrica, presente no repertório visual do artista há décadas. A sensibilidade concreta se mostra patente, a ponto de o espectador sequer desconfiar de que há ali qualquer lapso de racionalidade, no sentido estrito da palavra. Os quadrados e retângulos pretos, e em alto-relevo, sobre uma superfície branca não nos fazem perceber que estamos diante de “falsa racionalidade”, para lembrar o termo utilizado pela curadora Lisette Lagnado a respeito da obra de Montez.

Ele, no entanto, não acredita existir separação entre razão e sensibilidade. “Minha mulher diz que eu sou muito cerebral, mas a gente sabe hoje que o cérebro é o centro da razão, da emoção, de tudo; funciona como detonador das emoções, dos sentimentos.” Para ele, na verdade, seu processo criativo é caótico, “uma loucura”, pois mexe com a mente e a imaginação. Montez diz concordar com Mondrian – conhecido, aliás, por suas geometrias coloridas –, quando ele disse que a intuição e a imaginação são as bases do trabalho artístico.

ÂNIMO DE PRODUÇÃO
Ao encontrar Montez a pleno vapor em seu quintal, não restam dúvidas de que o curador Marcus Lontra estava certo. “Um artista é aquela pessoa que não entende muito bem o mundo ao seu redor e cria o seu próprio para poder compreendê-lo”, disse ele, no recente Encontro de Crítica de Arte ABCA, na Caixa Cultural Recife. Lontra fazia uma alusão genérica, procurando sintetizar muito bem aquilo que se passa, no geral, com as mentes criadoras. Mas, ao pegar Montez “no flagra”, com as mãos no tubo de cola, pincel, tesoura, lápis e régua, sabia que aquele momento não era simplesmente corriqueiro. Não estava ali, simplesmente, diante de um nome tarimbado das artes visuais brasileiras, com mais de 60 anos de carreira, mas de um inventor de mundos; que é inventor antes de ser artista, e que sabe muito bem disso, desde menino. Tanto que escreveu, certa vez, no poema Vivo porque vivo, os seguintes versos: “Vivo e não me lamento. O que não sei eu invento”.


O artista estuda conjunto de objetos manipuláveis para serem instalados no Parque Lage

Após enfrentar 80 primaveras, verões, outonos e invernos, Montez Magno encontra-se em uma fase bastante ativa da vida e da carreira. Apesar de lamentar um pouco a idade, tem andado com ânimo para produzir (leia na entrevista a seguir). Isso se mostra evidente tanto em seu discurso quanto em sua prática, testemunhada por esta reportagem. Ele tem pressa, mas não faz questão de trabalhar diariamente – só quando lhe dá vontade. Seu ateliê segue daquele jeitinho: repleto de (um monte de) coisas; uma verdadeira fábrica de mundos, em que pedras não são simplesmente pedras, nem caixas de fósforo, utensílios para atear fogo, embora haja ali muita energia para isso. Em meio às já conhecidas obras do seu arsenal, como a peça Moby Dick (1972) e a instalação Celebração a Duchamp (a cicerone de seu laboratório criativo), estão também trabalhos inéditos, que ele mostra com orgulho.

“Este aqui é bastante interessante. São ímãs e você pode modificar. Tem outro ali semelhante, tá vendo?”, apresenta a sua pintura mural recente, logo na entrada do ateliê. “Este outro é um trabalho de manipulação, que vai ser utilizado como modelo para o Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde a Lisette Lagnado é diretora. Ela perguntou se eu tinha algum trabalho que pudesse ser transformado em alguma coisa para criança, e eu disse: ‘Tenho!’”, contou o artista, referindo-se ao seu conjunto de peças coloridas feitas em madeira, como protótipo para as esculturas interativas que devem passar a ocupar, em breve, os jardins da escola de artes visuais carioca. Os objetos são como traves de futebol, desenhados de uma maneira própria, com linhas retas e bem-definidas. A ideia do artista é de que elas possam ser confeccionadas em tamanho maior (ainda não sabe qual o material), para serem instaladas ao lado, talvez, daquelas bolas grandes, utilizadas geralmente na prática do pilates e da ioga.

A curadora Lisette Lagnado, aliás, contribuiu com o movimento para tirar o artista de um certo ostracismo que viveu entre fins dos anos 1990 e início dos 2000. Essa situação, por sinal, só começou a mudar recentemente, sobretudo após a publicação de livro sobre ele, em 2010, escrito por Clarissa Diniz, Paulo Herkenhoff e Luiz Carlos Monteiro, e da exposição Montez Magno: 55 anos de arte (Mamam, 2011), com curadoria de Bete Gouveia e Itamar Morgado.


Tomando partido de materiais simples, como caixas de fósforos, Montez desenvolve objetos de cunho construtivista

Autora do projeto curatorial da 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, Lisette já havia trabalhado com Montez Magno no Panorama da Arte Brasileira (P33: Formas únicas da continuidade no espaço, MAM–SP, 2013), mostra que deu destaque ao trabalho do pernambucano. “Como um artista dessa grandiosidade e diversidade nunca tinha despontado para a cena pública?”, questionou Lisette, em vídeo produzido pelo Canal Contemporâneo, na época. “Ele foi escolhido por mim, depois que eu vi uma exposição individual dele na Galeria Pilar (Galáxia, SP, 2012) e me encantei por vários aspectos da obra. Naquele momento, mais precisamente pelas maquetes de Cidades imaginárias e por uma série de partituras e de livros de artista (não incluídas no panorama)”, justificou a curadora.

POSTO NO MAPA
Nesse contexto, o díptico Reductio (colagem sobre madeira, de 1971), também exposto na mostra do MAM–SP, ajudou a recolocar Montez Magno na cena e, literalmente, no mapa – do Brasil e de outros países. O artista gosta de lembrar que a obra “anteviu” – de forma simbólica e sob a perspectiva visionária do artista – o que o Google Earth pôs em prática, décadas depois, através de imagens do planeta via satélite. Em outras palavras, a ideia de “redução” do mundo.

Imagine o mapa da América do Sul. Dele, é retirado o Brasil e, deste, nos aproximamos de Pernambuco, que, por sua vez, nos leva diretamente a Olinda, onde Montez morou nos anos 1950–1960. Ao representar parte da discussão sobre arquitetura utópica e crítica, presente no conceito do projeto curatorial de Lisette Lagnado, o trabalho do artista foi não só impresso como obra-ícone do panorama, em seu convite de abertura, como ainda comprado pela própria Galeria Pilar, logo após a desmontagem da mostra. O desejo do espaço é revendê-la para uma instituição cultural.


Com riqueza plástica, o artista elabora quadros e objetos a partir de buchas

Atualmente, há mais de 80 trabalhos sob o domínio da Pilar, galeria paulistana com a qual Montez trabalha. No catálogo, há peças antigas e recentes, como Cidades imaginárias, cidades esféricas, Fragmentos, Partituras visuais musicais e obras nas quais ele homenageia artistas como Mondrian e Rodchenko (referência forte do construtivismo). Em suas andanças pelas feiras de arte do mundo, a galeria mostrou e comercializou obras de Montez. Em Londres, uma colecionadora francesa adquiriu, por exemplo, quatro itens da série Fachadas do Nordeste, pertencentes à categoria de trabalhos “solares”, como ele diz, citando as cores mais quentes desse conjunto de obras. “Porque há também os lunares”, explica ele. “E a Série negra, à qual pertence?”. Ele me respondeu estar mais “para eclipse”…

Pois é justamente este eclipse que deve revelar, pela primeira vez, um conjunto de obras adjetivadas por Montez como “fortes” e, por Bete Gouveia, como “graves”. A Série negra começou a ser produzida em 1961, indo até 2007, por meio de tempos espaçados que suscitaram na crítica Clarissa Diniz o desejo de chamá-la “intermitente”. A série deverá vir a público até o ano que vem, caso o projeto para a exposição Série negra e outras obras seja aprovado pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura). “Nós fizemos uma pré-seleção de 50 trabalhos. Esta é uma série que perpassa toda a carreira de Montez e à qual ele dá uma importância grande. Diz mais respeito à subjetividade, é sombria, introspectiva. Ele é um cara um pouco circunspecto e agora está se expondo mais, então acho que é por isso que resolveu mostrá-la”, conta Itamar Morgado, convidado pelo artista para fazer a curadoria do projeto, cujo local de realização deverá ser o Museu do Estado, no Recife.


Sucata de informática também é utilizada na criação de algumas obras, num exercício de arte povera

Itamar nos adianta, todavia, que um novo projeto com o artista, sob sua curadoria, já está engatado: o livro Soma, uma reunião de poesias de cinco dos 11 livros publicados por Montez Magno, de forma independente, ao longo de sua vida. O volume, aprovado pelo Funcultura, deverá ser lançado até o fim do ano. Antes disso, contudo, podemos ter em mãos uma nova publicação sobre o artista, que acaba de sair da gráfica: uma versão da dissertação de mestrado de Bete Gouveia, resultado de uma pesquisa na qual estabelece uma relação entre Montez e Duchamp, o “grande guru” do pernambucano, ao lado de Leonardo Da Vinci, como diz o próprio artista. O escritor Marco Lucchesi também sinalizou que poesias inéditas de Montez devem ser publicadas na revista da Academia Brasileira de Letras.

Quando perguntado sobre o “porquê” de nunca ter exposto sua Série negra, Montez respondeu simplesmente não saber o motivo. Mas nós bem sabemos que, mergulhando a fundo em seus mistérios, descobrimos um homem que age sob um tempo particular, cujo desejo de contemporaneidade se equilibra entre a densidade da existência e a inquietação, por vezes quase pueril (no melhor sentido da palavra), da criação artística capaz de suplantar o peso de qualquer calendário ou realidade. E para trazer de volta seus versos, ele de novo nos diz: “Vivo e não me lamento./ O que não sei eu invento./ Tudo que vem eu enfrento, às vezes com desalento./ Tudo que sei vem no vento,/ e vivo porque vivo/ só do meu talento”. 

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