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Crítica: Entre o jornalismo e a leitura

Autores e críticos levantam ponderações acerca do texto analítico literário, suas possíveis características e seus constantes desafios

TEXTO Priscilla Campos

01 de Junho de 2015

Ilustração Renato Alarcão

Quando se propõe debater a crítica literária brasileira contemporânea, uma espécie de tabuleiro automático de temas é aberto. Nele, são travados pequenos e sagrados conflitos, movimentos teóricos e opinativos que variam entre as repetições de aprendizados antigos e a procura por um ponto fraco inédito no que já foi dito por outros.

Harold Bloom, Afrânio Coutinho, Leyla Perrone-Moisés, João Cezar de Castro Rocha, José Castello, Antonio Candido, Claudio Magris, Enrique Vila-Matas, Virginia Woolf. Esses são apenas alguns nomes, entre acadêmicos, críticos e escritores, que podemos citar como vozes condescendentes na busca por repostas para tais temáticas espontâneas: linguagem, crise, formatos, relação da crítica com o leitor, personalismo e la nave va.

Aqui, compreende-se, em especial, a crítica como um ponto limítrofe entre a linguagem performativa jornalística e a linguagem maldita literária. Na abertura de Jornalismo e literatura, o escritor Antônio Olinto afirma: a prática comunicativa tem, fundamentalmente, as mesmas possibilidades que a literatura para produzir obras de arte.

Em Texto, crítica, escritura, Leyla Perrone-Moisés disserta sobre as possibilidades da crítica literária ser considerada escritura, termo definido por Roland Barthes “como uma realidade formal situada entre a língua e o estilo, e independente de ambos”. Ou seja, Perrone-Moisés pergunta-se se é possível que a crítica seja um tipo de obra artística que desperte o gozo como a literatura. Mikhail Bakhtin e Tzvetan Todorov, ambos filósofos do formalismo russo, encaminharam as questões de gênero para além da literatura e da linguística, ao elucidar que os gêneros discursivos estão sempre associados às dimensões de “atos da comunicação”.

Essas ponderações são factíveis no texto crítico, que existe como intersecção entre jornalismo e literatura. Deixemos para trás as pomposas perguntas que pareciam ser direcionadas a uma esfinge (Qual o futuro da crítica literária brasileira? Por que a crítica está em crise?) e nos proponhamos dúvidas pragmáticas acerca do assunto: Como podemos pensar a construção textual de uma crítica? Quais elementos devemos destacar nesse processo criativo? Onde o texto crítico literário será encontrado?

Em 1955, na obra acima referida, Olinto defendia que, para o gênero jornalístico ser (grifo do autor) literatura, o importante, de início, era a linguagem. No manuseio das palavras, então, localiza-se a primeira parte do quebra-cabeça que resulta nessa tábua de esmeralda das discussões sobre literatura: o exercício da crítica.


Para Bolívar Torres, literatura brasileira vive numa bolha. Foto: Divulgação

AUTOR X CRÍTICO
No livro Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Kelvin Falcão Klein), o autor catalão declara que uma diferença entre a crítica literária feita por escritores e críticos é a preocupação dos primeiros com “a técnica da linguagem, mais do que propriamente com a interpretação” da obra. Ele afirma que essa falta de abordagem acontece porque é muito difícil escrever a respeito da estrutura linguística de uma obra.

A escritora gaúcha Luisa Geisler, discorda, com fervor, da premissa exposta pelo catalão. “Acho um pouco complicado separar linguagem da interpretação. A linguagem ajuda a construir a história, seus contextos simbólicos. Assim, a história está dentro (no meio e fora) da linguagem. Alguns críticos, como José Castello, fazem esse diálogo muito bem nos seus textos. É difícil escrever bem sobre linguagem, qualquer um pode falar algumas bobagens e ficar por isso mesmo”, observa a autora de Quiçá e Luzes de emergência se acenderão automaticamente.

Já o jornalista pernambucano Diogo Guedes, setorista de literatura do Jornal do Commercio, concorda com Vila-Matas no aspecto da importância de um texto crítico que analise a estrutura linguística explorada pelo autor. Porém, ele lembra a dificuldade de tecer comentários sobre esse elemento numa crítica veiculada em- jornal diário. “O que tento é me forçar a falar da linguagem sempre, mesmo que de forma precária. Gosto de buscar algo que ilustre bem isso, um trecho que revele o ritmo ou até o vocabulário do escritor, para poder destacar o que me interessou na obra”, afirma.

Sobre a tríade crítico/escritor/leitor, o repórter do Prosa, suplemento literário do jornal O Globo, Bolívar Torres, chama a atenção para o fato de que a literatura brasileira contemporânea vive numa bolha, fechada em si mesma. “Isso acontece porque o grupo que produz é tão pequeno, que os autores acabam fazendo também o papel de leitores e de críticos. Os jornais chamam escritores para falar sobre livros de outros escritores em suas páginas – muitas vezes, eles se veem obrigados a resenhar obras de amigos ou de desafetos. Não é que haja corporativismo ou falta de isenção. É mais complexo do que isso: a literatura precisa de um olhar de fora, que possa oferecer uma observação menos viciada. Pessoas que não reproduzam os mesmos códigos, referências e anseios que já dominam uma determinada produção”, sugere.

Todavia, o diminuto círculo literário brasileiro mencionado por Bolívar sofre recorrências ao longo do século 20. Em Pena de aluguel – escritores jornalistas no Brasil 1904-2004, a professora da UFRJ Cristiane Costa traz informações que apontam a dificuldade que havia em se separar, no país, autores e críticos. No tópico Linguagem condicionada x liberdade criativa, a autora escreve: “(…) a linguagem literária se oferece como o espaço da experimentação por excelência. Mas não se pode esquecer que, ao longo dos últimos 100 anos, a imprensa foi, em muitos casos, o laboratório da poesia e do romance nacional”. De acordo com Costa, foi o cenário jornalístico que propiciou aos escritores ferramentas narrativas, como “manipular ritmos, cortar palavras, dominar a língua, aproximar-se do coloquial e comunicar-se com o leitor”.

Nesse cenário, importa a lembrança da figura do crítico literário acadêmico, como destacou o poeta carioca Victor Heringer. “A crítica está bem-equipada para lidar com esse recurso (linguístico). Não há melhor ‘técnico de linguagem’ do que um acadêmico – o que não é necessariamente um elogio. Mas os exemplos de crítica inventiva são muitos. Basta pensar nas Passagens, de Benjamin, ou nos Fragmentos (de um discurso amoroso), de Barthes. Não estão à altura dos melhores poetas? Gosto de uma frase de Agamben que diz que a função da crítica não é interpretar um texto, iluminá-lo, torná-lo palatável, mas sim ‘garantir as condições de sua inacessibilidade’.”


A escritora Luiza Geisler não separa a linguagem da interpretação. Foto: Divulgação

Na publicação Crítica literária – em busca do tempo perdido?, o professor de Literatura Comparada da UERJ João Cezar de Castro Rocha investiga uma polêmica da qual os críticos Afrânio Coutinho e Álvaro Lins foram protagonistas, na década de 1950. A peleja envolvia os processos críticos inseridos num tom mais tradicionalista universitário (cátedra) e em outro inventivo, impressionista, publicado na imprensa (crítica de rodapé).

Castro Rocha argumenta que “nas condições históricas da formação da vida cultural no Brasil, e mesmo na América Latina como um todo, não estamos condenados a uma solução binária simples” e “aceitar tal disjunção equivale a ignorar o espaço que determinados suplementos culturais e cadernos de livros abriram e abrem para professores universitários, tanto para a escrita de resenhas quanto para a divulgação de ensaios”.

A jornalista paranaense Gisele Eberspächer, resenhista do suplemento literário Jornal Rascunho e responsável pelo vlog Vamos falar sobre livros?, aponta uma dicotomia que deve ser observada também no comportamento dos leitores. “Para alguns, a crítica pode servir como uma espécie de curadoria, uma ajuda na decisão do que ler ou não. Para outros, ela é o meio de se aprofundar em uma leitura, aprender mais sobre determinado momento ou estilo, entrar em contato com interpretações diferentes.”

De acordo com Gisele, essa escolha está inserida, entre outros fatores, numa questão de tempo. “Assim como as pessoas não têm tempo para ler todos os livros, não terão tempo para ler todas as críticas. Elas vão escolher a categoria de texto que lhes parecer mais adequada, com o tipo de informação e aprofundamento que procuram”, reflete.

Sobre uma das querelas literárias mais discutidas no Brasil, Luisa Geisler é categórica: “Achar que a opinião de alguém é mais ou menos qualificada por conta de uma formação acadêmica é um pouco de elitismo. Literatura não é uma torre em que apenas os honrados (e formados) podem entrar”.

CORPO DE UM DISCURSO
Na construção de sua teoria, Castro Rocha disserta sobre um esgotamento do formato comum à crítica e sustenta a necessidade de que qualquer tipo de reflexão sobre literatura deva “partir da teorização das consequências da centralidade dos meios audiovisuais e digitais na definição da cultura contemporânea”.

No prefácio de Aos sábados, pela manhã – compilação de textos assinados por Silviano Santiago –, o pesquisador Frederico Coelho escreve que, talvez, o crítico não possa mais oferecer ao leitor algo novo e, sim, “organizar de forma inovadora as informações”.


A blogueira Camila Holdefer evita hermetismos, mas não subestima o leitor.
Foto: Divulgação

As ideias de Castro Rocha e Santiago convergem para uma observação da estrutura textual (formato), e colocam no centro do debate a pergunta sobre qual espaço recebe a crítica literária brasileira hoje.

A gaúcha Camila von Holdefer, autora do blog Livros Abertos, surge como um exemplo contemporâneo certeiro para as questões levantadas pelos professores. A estudante de Filosofia começou o projeto em 2011. Na época, criou um blog que estava inserido nos sites do grupo de mídia em que trabalhava como redatora. Com o grande número de acessos e a alta frequência de atualização, o Livros Abertos não se encaixou mais no perfil da empresa, que, de acordo com Camila, não tinha cultura como foco. “Depois do estupendo pé na bunda, levei o projeto para um domínio próprio, em que tive, e ainda tenho, liberdade para selecionar o conteúdo. O tamanho do texto não me preocupa, mas ajustei o discurso. Busco regular o tom de maneira a não subestimar o leitor, mas evitando o hermetismo”, afirma.

Em janeiro deste ano, a gaúcha publicou algumas notas sobre o calhamaço Graça infinita, de David Foster Wallace. Estruturado como dodecaedro – um dos poliedros de Platão –, a iniciativa foi bastante discutida no meio digital e nas redes sociais. No mês de maio, foi a vez de uma extensa série sobre a crítica literária contemporânea movimentar o site. Os textos foram recomendados e elogiados por escritores, acadêmicos, editores e leitores.

Na contramão da teoria apresentada por Frederico Coelho, Camila acredita que o crítico sempre pode apresentar algo diferente, sobretudo porque os novos autores ajudam a redefinir a própria literatura. “Mesmo a organização das informações em uma forma original é, por si só, uma maneira de inovar. Sobre o espaço da crítica hoje no Brasil, não compro a ideia de marasmo, mas concordo que há pouco espaço na mídia tradicional para a reflexão mais ponderada. A consequência é que certos textos tendem a migrar para a internet ou para publicações específicas. O molde a ser buscado, pelo menos no meu caso, é justamente a falta de molde”, avalia.

De acordo com Derrida, em Essa estranha instituição chamada literatura, toda escrita e toda leitura participam de “uma dupla injunção do acaso e da necessidade, da necessidade que se deixa também guiar pelo acaso, para poder efetivamente reinventar o destino”.

Quando se lança um olhar narrativo discursivo na direção do texto crítico literário, pode-se empreender a tentativa de pontilhar essa reinvenção do destino, proposta pelo filósofo francês. Independentemente dos caminhos e respostas encontrados, o importante é escutar dentro desse futuro desconhecido o murmúrio incessante do qual fala Maurice Blanchot. Afinal, a crítica, assim como a literatura e o jornalismo, é capaz de promover encontro entre a necessidade e o acaso desses que “uma vez ouvido, não poderá deixar de se fazer ouvir”. 

PRISCILLA CAMPOS, jornalista.

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