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Ensaio

TEXTOS E FOTOS COLETIVO LUZ DE JANELA

01 de Janeiro de 2015

Ednaldo Caboclo Bonifácio

Ednaldo Caboclo Bonifácio

Foto Coletivo Luz de Janela

Nós somos pessoas cheias de riqueza e insignificância. Somos qualquer um, anônimos, a despeito das nossas idiossincrasias e do desejo de diferenciação. Mesmo assim, fazemos pequenos gestos importantes, todos os dias. Nos portraits destas páginas, pessoas como nós, que a cada dia plantam suas histórias na balbúrdia dos dias.

EDNALDO CABOCLO BONIFÁCIO (foto acima),
51 anos

Ednaldo tem dois motivos bem peculiares de orgulho: um está na sua certidão de nascimento, no sobrenome Caboclo, herança direta da mãe. Também se orgulha de carregar no corpo o alforje de atleta, maturado durante anos de dedicação ao trabalho braçal, que lhe exigiu a construção civil. “Eu nunca fiz exercício físico, nunca fiz musculação, meu corpo é resultado do esforço do meu trabalho.” Hoje, ainda envolvido com trabalhos manuais, Ednaldo resolveu ser autônomo. Construiu uma oficina para concertos de bicicletas na Rua da Glória, centro do Recife. E se anima ao constatar que, apesar de modesta, sua oficina tende a crescer com o avanço das ciclovias na cidade. “Acho que isso aqui ainda vai mudar tanto, e eu vou junto, com minha oficina.”

IRACI QUITÉRIA DA CONCEIÇÃO,
76 anos


É como se fosse uma espécie de mistério. Aquela mulher acompanha, em silêncio, do velório ao enterro. Poderia ser uma carpideira, mas não é, não cobra nada pela atividade, não precisa ser chamada pela família do morto, nem precisa conhecê-los. Iraci Quitéria da Conceição tem nos cortejos fúnebres sua mais intrigante missão. A senhora costuma seguir, incansável, até mais de um enterro por dia, colhendo as flores que vão caindo pelo caminho. “Eu gosto de enterro”, declara a senhora, dona de um discurso tão eloquente quanto delirante. Costureira de mantas e colchas de fuxico na cidade de Sanharó, agreste pernambucano, a simpática Iraci justifica sua sina, dizendo que é essa sua forma de estar quite com Deus. “Não tem gente que dá esmola, que dá sopa pros pobres, né? Eu não, eu acompanho os enterros tudinho, faço isso por todos. Deus tá vendo.”

PERSEU BASTOS,
24 anos



Perseu Bastos aprendeu cedo, no próprio núcleo familiar, a importância da educação para a formação do cidadão. Mas não se tornou ele um educador. Foi por outros caminhos, até encontrar uma demanda que dialogasse com a área. Designer e empresário, Perseu desenvolveu um jogo eletrônico que auxilia na identificação de distúrbios e problemas de aprendizagem, voltado para crianças de seis a 10 anos. “Percebi que havia uma lacuna na área de saúde no mercado de jogos e pensei em algo voltado para educação. O jogo não é uma espécie de detector, mas sim uma ferramenta de auxílio no diagnóstico. Dura em média 30 segundos e possui narrativas educacionais em seu conteúdo.” O projeto, com três anos, é acompanhado por uma neurocirurgiã, que avalia cada resultado.

VERA LÚCIA DE LIMA, 
52 anos


O som reverberava longe, como um diapasão, e atraía os olhares para a fachada da casa da loira de cabelos escovados que arrumava a soleira, enquanto ouvia Carlos Alexandre no pequeno som de caixas potentes. Era Vera Lúcia Leal de Lima. Tão acolhedora ela é, que, para entrar em sua morada, a permissão vem do olhar sorridente, seguido de um “Pois bem, bom dia, entre!”. Já na sala, está seu universo: fotos-pinturas da família, plantas, o reincidente quadro do Sagrado Coração de Jesus e um gato preguiçoso. Vera celebra a vida simples que leva. Em pouco tempo de prosa, conta ter conhecido Brasília, São Paulo, Recife, João Pessoa e Campina Grande. Mas garante que não tem lugar melhor pra viver que o Sertão, no seu vilarejo de Pernambuquinho. Ao ser indagada sobre sua ocupação, a resposta vem tão brejeira quanto o seu sorriso: “Eu sou Vera hahaha… e cuido da minha casa”.

MANOEL FRANKLIN,
65 anos


Quem frequenta a abrasante Rua do Veiga, no Bairro de Santo Amaro, centro do Recife, tem o hábito de se perguntar: “Mas quem é aquele senhor tão elegante, que flana pela rua ao pino do meio-dia, sem se importar com esse calor vulcânico? É Manoel Franklin, sindicalista, doutrinador espírita e um dos poucos homens que conseguem usar suspensórios de forma tão natural quanto uma camisa de botão. Franklin era motorista rodoviário, da extinta linha dos ônibus elétricos. Há pelo menos 25 anos, dedica-se ao sindicalismo. No final da década de 1980, entrou na Ordem Vale do Amanhecer, no Córrego da Fortuna. É lá que exerce seu trabalho de Doutrinador ou Mestre Sol, cujo papel é conversar e orientar energias mais sutis de espíritos desencarnados. O gosto pelo estilo diferenciado de vestir vem da educação que recebeu de seu pai. “Eu gosto muito de suspensórios, desde menino que uso… meu pai que usava – e gravata – e queria que a gente usasse também”, explica o distinto cavalheiro reluzente.

IRMÃ DÉBORA GEOVANA BEZERRA,
34 anos


Uma real intercessão entre igreja e política é o maior sonho da assertiva Irmã Débora Geovana. Nascida e criada na cidade de Pesqueira, a moça de voz calma e ideias revolucionárias sempre teve em mente sua real vocação: atuar publicamente. Doar-se, a partir da igreja, para atingir sua maior meta: o poder ao povo. “Fazer políticas públicas é o meu caminho”, enfatiza, com um jeito de falar lento e firme. A mesma força que emprega nas orações e na fé em Deus coloca em seu corpo e mente na hora de se mobilizar em torno de causas sociais, como o pleito pelo fim da violência contra as mulheres e a reforma agrária. Ao responder sobre sua escolha pela vida religiosa, a freira arremata: “Eu queria dar mais da minha vida. Ser mais pelas pessoas. Não queria dar um pedaço só de mim. Queria me dar por completo. Amar. Amar. Amar. E servir”.

EDICLEIA SANTOS,
57 anos


Desde que Edicleia foi apresentada à luta feminista, ainda no final dos anos 1990, seu corpo se tornou uma espécie de árvore com galhos enormes e generosos, que passaram a abarcar outras causas que lhe foram apresentadas. Quinze anos depois, Cleia, como é conhecida no Bairro de Passarinho, dedica seus dias ao papel de mãe, trabalhadora, esposa, conselheira, militante e amiga. Dá conta de tudo e do mais que surgir. “Aqui, nossa porta está sempre aberta para a comunidade.” E a comunidade sabe disso, tanto que já esteve presente em pleitos que vão desde a questão do lixo do bairro, passando por discussões acerca das drogas, violência, adolescência e sexualidade, além do combate ao racismo. A mais recente bandeira encampada por ela foi a luta pela permanência de 25 mil famílias que seriam despejadas da Vila Esperança, ocupação com mais de 40 anos no bairro. Ao se articular com diversas entidades, conseguiu, junto com os moradores do lugar, manter a vila. Quando perguntada por que sempre respondia às perguntas usando a primeira pessoa do plural, Cleia foi enfática: “Não consigo me empoderar sozinha, só junto com o outro”.

JOSÉ OZIVAN CORDEIRO DA SILVA (PALHAÇO POQUITO),
idade não revelada


“Vieram umas quatro vezes, sem minha mãe querer deixar. Depois eu disse: - Eu vou, mãe, passar um mês ou dois, só. Passei foi 13 anos no circo.” Ozivan é o anão que costuma jogar dominó com concentração inabalável junto aos amigos de Sertânia. É sério, tem voz firme e rosto austero. Mas quando veste o uniforme e usa a maquiagem de palhaço, Ozivan é Poquito, de andar engraçado, de sorriso generoso e voz de criança. A vida no circo não foi fácil, mas Poquito tinha a palhaçada como vocação na vida. “Eu sofri. O que o cara mais sofre em circo é de não ter onde morar, eu morava no ônibus, mais o dono do circo.” E mesmo diante dos percalços que a vida mambembe lhe conferiu, só existe uma tarefa que o faz suar frio: “Fazer os outros rir é muito difícil…” Quando perguntado sobre o que significa ser palhaço, a resposta é curta e objetiva: “É tudo alegria.”

JÚLIO ADEODATO,
25 anos


“Eu adorava futebol brasileiro, mas a cartolagem me decepcionou.” Júlio Adeodato é fã de futebol, mas é ainda mais de boas condutas éticas. Encontrou a união dessas duas vertentes ao realizar um intercâmbio, em 2004, então com 15 anos, nos EUA, mais precisamente no estado de Louisiana, onde a cultura do futebol americano é forte. Só via pela TV, mas não gostava não. “Só quando

comecei a jogar senti que gostava.” Tanto gostou, que, hoje, aos 25, é presidente de um time da modalidade, o Recife Mariners. O trabalho que Júlio desenvolve para tornar o esporte popular em Pernambuco tem se tornado cada vez mais abrangente. A última empreitada foi uma final disputada na Arena Pernambuco para cerca de sete mil pagantes, recorde de público no Brasil. “Deixamos de ser uma novidade para sermos um time do Recife. Defendendo a cidade”, orgulha-se. Mas não descansa: “Ainda vamos conseguir construir um centro de treinamento para o time.”

MARIO CHIEN E SUNA CHENG,
60 e 57 anos


Desde a primeira vez que pisou em solo brasileiro, em 1978, Mario Chien teve o trabalho como meta. Primeiro em São Paulo, onde administrou restaurantes de comida chinesa. Em seguida veio para o Nordeste, para as cidades de Olinda, João Pessoa e Fortaleza. Em 1990, retornou para Taiwan. Um compromisso inadiável o esperava. Os familiares haviam encontrado uma moça com forte vocação para ser sua noiva. Era a doce Suna, uma habilidosa cozinheira, tão tímida quanto concentrada. E, como se existisse uma ponte imaginária ligando Taiwan ao Recife, imediatamente o casal veio para a cidade, onde vive desde 1992. Aqui eles mantêm um elogiado restaurante taiwanês. Aliás, o único do Nordeste. O casal garante sua união em tudo que faz: enquanto Mario prepara a massa dos pratos, Suna, com mãos hábeis, confecciona cada iguaria. A união do casal é o ingrediente que torna o simples restaurante Comaqui um dos lugares mais agradáveis do Recife.

URILEIDE MARIA DA SILVA,
46 anos


“Tava querendo mesmo falar com vocês, é sobre minha filha.” Não fomos nós que encontramos Urileide Maria da Silva, foi ela quem nos escolheu para ser retratada. Leide, como é conhecida no Bairro da Cidade Universitária, reivindica um sonho: conhecer a filha que entregou assim que deu a luz, à época com 16 anos. Lembra com detalhes o parto, feito dentro de casa, pelas mãos de uma parteira no Engenho Galo, em Palmares, mata sul pernambucana. Da filha, sabe quase nada de concreto, apenas que estaria hoje com 25 anos, e que moraria em São Paulo. Mas, quando perguntada sobre como imagina um reencontro, vem de pronto um roteiro nada modesto: “Ah, eu penso que seria assim… ao vivo, todo mundo vendo na TV, eu a abraçaria e nós ficaríamos sorrindo”. Para Leide, o encontro com a filha é algo tão avassalador, que só mesmo um evento midiático pode dar conta.

CIRLEIDE CRISTINA DA SILVA,
45 anos


À primeira vista, Cirleide é uma mulher comum. Poderia ser quase invisível no meio da multidão que vai e vem todos os dias no centro do Cabo de Santo Agostinho, onde ela mantém uma modesta banca para comercializar acessórios como relógios e pulseiras. Mas Cirleide não é uma anônima comum. Foi dela que partiu a primeira denúncia no Brasil, quando foi oficializada a Lei Maria da Penha. Desde que fez esse ato, sua vida mudou. E muito. A explicação não poderia ser mais assertiva, senão pelas palavras dela: “A Lei Maria da Penha, quando a conheci, pra mim era como um presente bem grande, bem embalado, com muitas caixinhas pequenas dentro. E cada uma que eu abria era uma surpresa. Era a liberdade, era alegria, felicidade. A vida. Cada caixinha daquela que eu abria tinha uma coisa boa pra mim”.

JOSÉ PLÍNIO VARJÃO,
63 anos


“Já falam em dividir as pedras daqui, as escrituras que eu li nenhum profeta previu. De um tempo desses pra cá, até o Tebas sumiu. Já estão de olhos também no canto do bem-te-vi”. Os versos vão ressoando na paisagem da cidade alta, em Olinda, enquanto um homem de macacão e cabelos crespos prateados dedilha carinhosamente seu violão. É Varjão, nome de artista, layout de artista, um autêntico anônimo célebre. Aos 63 anos, José Plínio Varjão, natural de Paulo Afonso, na Bahia, já trabalhou com quase tudo. É soldador de formação, mas já no ambiente de trabalho aproveitava para soltar sua verve artística para os colegas de obra. Tem dois CDs gravados e uma vida dedicada à música. “Desde sempre que sou músico, nunca fui famoso, mas tô aí.” Alguns minutos depois de proferir essa frase, um cidadão, conduzindo um Pálio Weekend vermelho, baixa o vidro e diz: “Ei, Varjão, olha!”, e exibe orgulhoso seu exemplar do último CD do artista.

CHARLES FERREIRA (CHARLES WELSON),
37 anos


“O divertido naquele tempo era que a gente não tinha dinheiro, não tinha nada, mas era herói dos pivetes.” Charles Welson (o Welson é sobrenome artístico presenteado por uma criança. Na certidão, consta Ferreira) é um artista do grafite. É jovem, mas já profere frases nostálgicas e é uma grande influência para os artistas que despontam em Camaragibe, onde nasceu e se criou. Começou a desenhar aos 23, em aulas de escola aberta. Não demorou muito para ensinar o que aprendera para os mais novos. As lembranças das primeiras tentativas no grafite são guardadas por ele como uma lição: “Não sabia o que pintar no primeiro grafite, não tinha experiência nenhuma com spray, lembro que ficou horrível. Horrível mesmo”. Hoje, Charles mantém intimidade com a arte de pintar em muros. “Eu curto pintar pra maloqueirada, pra rua mesmo.”

LUIZ HENRIQUE PINTO RAMOS,
21 anos


Foi no balanço de uma rede, na companhia de sua avó, que Luiz Henrique teve seus primeiros contatos com a poesia. Era assim: Augusto dos Anjos, Casimiro de Abreu e de seu próprio avô, Jayme Dias, o Vovô Jayme. “Eu era uma criança e não entendia aquela poesia como entendo hoje. O que me atraía era a musicalidade que eu sentia que vinha dali.” A veia autoral despertou aos poucos, primeiro com a prosa. Mas foi na internet que Luiz começou a exercitar textos mais curtos. Quando se deu conta, estava arrebatado pela poesia. Já lançou seu primeiro livro, cujo título é Tenho uma página em branco. A obra é totalmente artesanal e Luiz participou de cada uma das 15 etapas de confecção sua. Tão leve quanto o seu livro, só mesmo a forma de ele pensar a poesia: “Gosto de me emocionar tanto quanto emocionar o outro.” 

COLETIVO LUZ DE JANELA, formado pelos fotógrafos Alcione Ferreira, Everson Verdião e Ivan Melo, documenta o universo dos anônimos.

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