Arquivo

Araripe: Na chapada, a primeira floresta nacional

Quase 40 mil hectares de mata verde abrigam espécies da fauna e flora típicas dessa região, além de importantes sítios arqueológicos e paleontológicos

TEXTO E FOTOS AUGUSTO PESSOA

01 de Outubro de 2014

Cachoeira pontua a riqueza aquática local

Cachoeira pontua a riqueza aquática local

Foto Augusto Pessoa

Localizada entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, a Chapada do Araripe é um santuário natural que resguarda, em seus mais de 10 mil quilômetros quadrados, parte importante da biodiversidade do nordeste brasileiro. Considerada um oásis no coração geográfico do Nordeste, a primeira floresta nacional, criada em 1946, reúne, em pleno semiárido, centenas de sítios arqueológicos com pinturas rupestres, jazidas de fósseis únicas do mundo e um rico repertório de lendas e mitos que se materializam em monumentos naturais. Todo esse ambiente propicia o surgimento de um patrimônio imaterial formado por bandas cabaçais, vaqueiros, repentistas, penitentes, reisados, cordelistas, xilogravuristas, poetas populares e outras manifestações da cultura popular que transformaram a região numa espécie de relicário da tradição nordestina.

Com quase 40 mil hectares de mata verde, a Floresta Nacional do Araripe abriga espécies da fauna e da flora típicas dessa região do Nordeste, além de importantes sítios arqueológicos e paleontológicos. Cortada por trilhas bem-sinalizadas e repleta de fontes de água cristalina, a floresta é hoje o cartão-postal do ecoturismo local, guardando em seu ecossistema os biomas mata atlântica, cerrado e caatinga. Ali encontramos a maior bacia fossilífica do Brasil, território dos dinossauros e das plantas pré-históricas que o tempo conseguiu conservar no arenoso solo da região, que hoje faz a festa dos pesquisadores e, infelizmente, também dos traficantes internacionais de fósseis. Dezenas de coleções particulares espalhadas pelo mundo exibem peças extraídas das encostas cearenses.


Biodiversidade da Mata Atlântica está preservada na Chapada
do Araripe

Do alto dos imponentes paredões, é possível visualizar o tempo em que a região era um imenso lago onde animais viviam em plena liberdade. O lugar tornou-se um importante refúgio para as espécies que buscavam comida em suas margens. “Quando houve a separação dos continentes, as águas do oceano, que depois virou o Atlântico, invadiram a área, aumentando a salinidade do lago e dizimando toda a vida aquática”, conta o professor Álamo Saraiva, paleontólogo que há vários anos estuda as jazidas do Araripe. Calcula-se que milhões de espécies animais e vegetais tenham desaparecido. Seus fósseis, no entanto, foram preservados pelos milênios. No Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, cidadezinha incrustada no alto da Chapada, uma libélula de milhões de anos conserva detalhes de suas delicadas asas.

ÚLTIMAS ÁGUAS
Em termos geográficos, a chapada permite a observação de todas as fases da evolução do continente sul-americano, sendo por isso utilizada como laboratório por diferentes universidades nacionais e internacionais. Na Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Araripe, a natureza sedimentar de seu solo deu origem a centenas de fontes, formando um dos mais importantes aquíferos do país. Entre 50 e 13 mil anos atrás, ocorreram flutuações que resultaram em uma mudança climática, obrigando o homem pré-histórico, caçador e coletor, a migrar. Esse período, que culminou em uma fase seca e fria, fez desaparecer toda a fauna e obrigou os homens a se movimentarem em busca de novas áreas.


Antigas formaçoes rochosas integram repertório mitológico dos índios cariris

A Chapada do Araripe é das poucas porções verdes preservadas pela natureza e se tornou de vital importância para o homem pré-histórico, sendo batizada pelos índios cariris como “O lugar das últimas águas”. Foi trilhando o caminho das águas, perseguindo o leito dos rios secos, nos brejos úmidos habitados pela “mãe d’água”, que o retirante pré-histórico alcançou a região do Cariri em períodos ainda não definidos, deixando sobre rochas documentos em forma de gravuras e pinturas rupestres.


Ossada de dinossauro raro encontrada na bacia de fósseis da Chapa do Araripe

Esses registros, através de seus signos e códigos de comunicação visual, se em boa parte são indecifráveis – como na distante pedra do convento –, em outros casos são facilmente reconhecíveis, como as figuras humanas e as mãos em carimbo impressas nas rochas dos leitos dos rios. No Sítio Santa Fé, raras gravuras de grandes pássaros, pintadas em perspectiva, embevecem os pesquisadores e desafiam a imaginação. “Em toda a área da Chapada do Araripe, esse é um dos raros exemplos em que temos uma gravura que posteriormente foi pintada, unindo num só painel duas técnicas distintas”, diz a arqueóloga Rosiane Lima Verde, que há quase duas décadas estuda os sítios do Araripe.


Nas árvores, as marcas dos comboios no caminho das boiadas

MULTICOLORIDO
Além da natureza e da riqueza arqueológica e paleontológica, a Chapada do Araripe é profusa em cultura popular. Fruto das mais diversas influências, a região é uma vasta combinação de cores e ritmos. Tudo por ali sugere a conexão entre o passado e o presente. Se os antigos habitantes eram exímios artistas – o que pode ser comprovado nos belos painéis com pinturas rupestres –, o mesmo se pode dizer dos atuais moradores, muitos dos quais possuidores de dons artísticos.


Os Karetas de Potengi é um dos últimos reisados a manter tradição das máscaras de madeira

Um desses é Espedito Veloso, mais conhecido como “Espedito Seleiro, o homem das sandálias de couro”. Herdeiro de uma tradição centenária, o artista expressa a qualidade do trabalho artesanal do Araripe. “Meu avô fazia sandálias para Lampião. O próprio Virgulino era quem desenhava as peças e mandava ele fazer”, diz Seleiro, enquanto confecciona o calçado que já virou marca registrada. A partir de novembro de 2014, o mestre terá a trajetória contada num museu em sua homenagem, na pequena Nova Olinda.


O artesão Espedito Seleiro tem sua história contada em memorial

Bem perto dali, na cidade de Potengi, um grupo de reisado resiste e, segundo quem estuda o assunto, é hoje o único representante da tradição de confeccionar máscaras em madeira, outra herança dos índios cariris. O grupo é mantido pelo Mestre Antônio Luiz, um agricultor apaixonado pela arte e que hoje ensina ao seu neto a brincadeira que aprendeu com os mais velhos. Conhecido como reisado de caretas, essa manifestação é um dos símbolos culturais da Chapada do Araripe.

Com tanta riqueza concentrada num só lugar, a Chapada do Araripe revela surpresas. Fotografando para compor o acervo do Museu Mestre Espedito Seleiro, fui conduzido até o alto da Floresta Nacional, onde centenas de árvores conservam, tal qual um estranho museu natural, as marcas gravadas a ferro e fogo pelos comboios que desciam a região em busca de água para o gado, durante o que ficou conhecido como o Ciclo do Couro. Lembrando as gravuras encontradas nas encostas e compondo um quadro quase surrealista, as marcas constituem mais um capítulo desse surpreendente oásis natural e cultural. 

AUGUSTO PESSOA, fotógrafo.

Publicidade

veja também

Acervo: Agora está tudo digitalizado

Suzhou: Para contemplar a passagem do tempo

Vicente Masip: O pensador que não protela a ação