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Caleidoscópio: Um abraço na literatura

Situada em Lagoa dos Gatos, editora-biblioteca vem realizando, desde o início do ano passado, projetos para incentivar a leitura no agreste pernambucano

TEXTO PRISCILLA CAMPOS
FOTOS OTAVIO DE SOUZA

01 de Setembro de 2014

Patrícia Vasconcellos decidiu com a família o local onde levantaria a Caleidoscópio

Patrícia Vasconcellos decidiu com a família o local onde levantaria a Caleidoscópio

Foto Otavio de Souza

"O grande patrimônio que temos é a memória. A memória guarda o que vivemos e o que sonhamos. E a literatura é esse espaço onde o que sonhamos encontra o diálogo. Com a literatura, esse mundo sonhado consegue falar.” A afirmativa do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós foi feita durante uma conferência do projeto paranaense Paiol Literário, promovido pelo jornal Rascunho, em 2011. Nome importante para a literatura infantojuvenil brasileira, Campos de Queirós dedicou muito de si em prol da leitura. Na lista de suas idealizações para o aumento de leitores no Brasil está o Movimento por um Brasil Literário, que tem como base um manifesto em defesa do direito de acesso à leitura, valorizando, assim, a cultura escrita e a educação literária. O movimento ainda é pouco articulado no Nordeste e esbarra em rachaduras pedagógicas.

Em janeiro deste ano, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) divulgou um relatório no qual o Brasil aparece em oitavo lugar entre os países com maior número de analfabetos adultos. Ante um abrangente conjunto de dificuldades, as ideias do escritor mineiro encontram força no seu entendimento da memória como catalisador literário dos mais importantes. Tal potência, aliada à vontade de consolidar uma presença permanente da leitura, reverbera desde o início de 2013 no agreste pernambucano. Um ano após o falecimento de Bartolomeu, nascia no município de Lagoa dos Gatos a Caleidoscópio Editora, projeto realizado pela escritora, psicóloga e especialista em informática Patrícia Vasconcellos. Apesar de não existir um vínculo direto entre o movimento e a editora, Campos de Queirós e Patrícia compartilham o mesmo propósito: todos os esforços devem ser direcionados para que a literatura ocupe espaços remotos.


Livros produzidos pelos moradores em ambiente bem-cuidado têm atraído frequentadores

“Ainda criança, disse: ‘Aqui, quando eu crescer, vou construir uma escola.’ Acabou sendo uma editora/biblioteca”, conta Patrícia, assentada no terreno onde as primeiras raízes de sua árvore genealógica nasceram. “Meu avó materno teve 15 filhos em Lagoa dos Gatos. Ele era semianalfabeto e agricultor. Com o dinheiro do plantio, educou os filhos e foi morar no Recife.” O município tem ares de invenção geográfica, perdida em um tempo indefinido. Localizada a 171 km da capital pernambucana, Lagoa dos Gatos possui 15.645 habitantes, 26 escolas nas áreas urbana e rural e um desanimador índice de analfabetismo adulto de 49,4%.

“Antes de sentar com minha família para desenharmos a casa que se tornaria a Caleidoscópio, estive em Lagoa dos Gatos algumas vezes, após anos sem vir aqui. No meio da feira livre, aos sábados, nós começamos a colocar uma mesa plástica branca com os livros em cima. Organizamos empréstimos, anotando, para saber em que localidade estava o livro. Muitas vezes o pessoal não devolvia, mas eu achava isso bom, porque significava que as publicações estavam circulando. Muitos idosos levavam os livros e pediam para que seus netos lessem em voz alta para eles.” A escritora afirma que 700 livros foram emprestados durante um dia de biblioteca ao ar livre. “Em um município pequeno, com alto índice de analfabetismo, esse número tinha um significado importante, não podia ignorá-lo.”

De acordo com Patrícia, a Caleidoscópio foi construída com tijolos ecológicos, preservando as árvores e a mata ao redor do terreno. Parte da casa antiga foi mantida: uma janela em ruínas agora é um detalhe entre a sala principal, na qual se encontram as principais prateleiras de livros infantis (Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Machado de Assis são presenças constantes) e o pequeno cômodo ocupado por uma rede, estantes, fotografias de família, objetos ligados à astrologia e ao xamanismo. É nesse espaço também que literatura e memória se confundem: entre a coleção, um livro do poeta cearense Patativa do Assaré com dedicatória de sua mãe, presente oferecido quando Patrícia tinha ainda oito anos. A iniciação literária de Patrícia tem várias referências domésticas. Da mãe e da babá, ela ouvia histórias, a tia foi responsável por colocá-la no mundo dos livros, o pai era um contador de causos. “Lembro-me de visitas a livrarias, bancas de revistas, papelarias. Vieram os filhos, as ‘histórias de boca’, aquelas que inventava para eles – Trocando de lugar, meu primeiro livro infantil, é uma delas –, os contos de fadas, as músicas, poesias. Quando leio um livro e sou tomada por ele, não consigo parar de ler”, conta.



ESPAÇO DE TROCA
A sede da Caleidoscópio fica na zona rural de Lagoa dos Gatos e, aos poucos, um novo povoado arquiteta-se no entorno. “No começo, eu distribuía água para o pessoal, mas agora teremos uma cisterna. Próximo passo é a horta comunitária. A noção de compartilhar é muito presente aqui.” Eventos de música e cinema também já foram organizados por lá. “Tento trazer coisas de fora e locais. A ideia é expandir e, ao mesmo tempo, valorizar artistas daqui”, explica Patrícia. Para divulgar os eventos: cartazes, carros de som e o famoso boca a boca. Enquanto nós conversávamos, duas crianças entraram na sala principal para escolher um livro. Antes de irmos embora, a dupla estava dividindo a leitura, sentada na porta de casa, de frente para um pequeno jardim. “É por cenas como essa que eu faço tudo isso”, disse a escritora, sorrindo.

Além de simbolizar a resistência da leitura e agregar responsabilidades de núcleo disseminador cultural, a Caleidoscópio tem compromisso com a acessibilidade. Os dois primeiros livros publicados, O rei poderoso e Mergulho, possuem recurso de audiodescrição. O projeto é resultado de uma parceria entre Patrícia e a professora de psicologia Liliana Tavares, e conta com ilustrações dos designers Gabriela Araújo e Eduardo Souza. Ambos são vendidos tanto na Livraria Cultura quanto na papelaria de Lagoa dos Gatos.


Lagoa dos Gatos enfrenta a triste estatística de 49,4% de analfabetismo adulto

De acordo com a escritora, esse trabalho coletivo, no qual estão inseridos familiares, amigos e moradores, é de importância capital para que a Caleidoscópio continue produzindo. “Ao longo de um ano e meio, percebi a possibilidade de publicar autores daqui e comecei a incentivar o pessoal a escrever. Produzimos de forma autônoma, imprimimos em casa, cortamos, grampeamos e montamos o livro. É um trabalho em parceria mesmo, por amor à literatura.” O artesão Manoel Severiano da Silva faz parte do grupo que encontrou nas palavras também uma forma de libertação. Algumas capas desenhadas com caneta Bic e pintadas com lápis de cor dão o tom informal de seus poemas e pequenas histórias encontrados em O quadro e o pintor e Lágrimas do amor,entre outras compilações.

Meses após a abertura da editora, Patrícia percebeu que seria importante organizar um ponto cultural na área urbana de Lagoa dos Gatos. “Daria mais força para os meus projetos e seria um lugar conectado com o fluxo da população.” Ao lado da igreja, na praça principal, fica o Pó de Estrelas, um café que também possui serviços de copiadora e de fotos 3 x 4 (essa última atividade até então inédita no município). A casa azul destoa da paisagem interiorana ao seu redor: dispõe de wi-fi, cadeiras coloridas, vitrola tocando música popular brasileira, cheesecake de morango e água com gás. Nos finais de semana, já foram realizados saraus, apresentações e maratonas de poesia. A próxima ideia de Patrícia é transformar uma das salas da casa em sebo/livraria, para comercializar vários gêneros literários. “Outro instrumento muito forte para mim tem sido o programa que possuo na rádio comunitária, chamado Lagoa Cultural. Toda sexta-feira, leio histórias, debato sobre assuntos como sexualidade e meio ambiente. Dessa forma, tento colocar os moradores em contato com tópicos pouco discutidos por aqui”, aponta.

Em sua fala no Paiol Literário, Bartolomeu Campos de Queirós define a relação entre a palavra e o leitor com a proposição: “Literatura é também acreditar que o cidadão possui a palavra. O texto literário convida o leitor a se dizer diante dele”. O mineiro parece resumir esse convite de empoderamento feito constantemente pela escritora pernambucana aos moradores de Lagoa dos Gatos: a literatura é tão sua quanto minha, faça com ela o que você quiser. 

PRISCILLA CAMPOS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.
OTAVIO DE SOUZA, fotógrafo.

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