Arquivo

Lanzarote: A ilha de Saramago

Lugar atrai tanto pela paisagem excepcional, moldada por erupções vulcânicas, quanto pela casa onde viveu o autor português, e que foi transformada em museu

TEXTO RICARDO VIEL, DE LANZAROTE

01 de Janeiro de 2014

Território espanhol, Lanzarote tem 850 km², sendo dividida em sete municípios. O turismo é sua maior fonte de renda

Território espanhol, Lanzarote tem 850 km², sendo dividida em sete municípios. O turismo é sua maior fonte de renda

Foto Divulgação

Era comum que ao correio de Lanzarote chegassem cartas dirigidas a José Saramago; apenas isso, sem o endereço, nem mesmo um ponto de referência para facilitar a vida dos carteiros. E, ainda assim, as mensagens acabavam sempre por chegar ao destino. Na ilha canária de cerca de 140 mil habitantes, todos sabiam onde vivia o Prêmio Nobel de Literatura de 1998. Para muitos, aquele pedaço de terra entre a Europa e a África só passou a existir quando o escritor português para lá se mudou. Saramago chegou a Lanzarote em 1993 e permaneceu até sua morte, em 2010. “Lanzarote não é minha terra, mas é terra minha”, disse o morador mais ilustre da ilha, certa vez. Em junho do ano passado, a frase foi gravada na base de uma escultura de seis metros, dedicada ao escritor e colocada em frente da casa e da biblioteca construídas pelo autor de Memorial do convento.

O encanto de José pela ilha foi amor à primeira vista. Em 1992, vindo de uma conferência na vizinha ilha de Las Palmas, o escritor e a companheira Pilar del Río fizeram uma visita de menos de dois dias a Lanzarote, onde morava (e ainda mora) uma das irmãs da jornalista espanhola. Ficaram impressionados. De volta a Lisboa, onde viviam, decidiram que construiriam uma casa e se mudariam para a ilha, o que aconteceu alguns meses depois. Em Portugal, Saramago havia sido censurado pelo governo ao ter o Evangelho segundo Jesus Cristo proibido de representar o país em um concurso. Saiu de um ambiente asfixiante e mudou-se para uma ilha vulcânica, onde a paisagem é essencialmente mar e lava e onde 60% do território é preservado – em 1993, o lugar foi declarado Reserva de Biosfera da Unesco.

Lanzarote foi, para o escritor, o ambiente ideal para criar. Ali encontrou tranquilidade, beleza e paz. “O prazer profundo, inefável, que é andar por estes campos desertos e varridos pela ventania, subir uma encosta difícil e olhar lá de cima a paisagem negra, escalvada, despir a camisa para sentir diretamente na pele a agitação furiosa do ar, e depois compreender que não se pode fazer mais nada, as ervas secas, rente ao chão, estremecem, as nuvens roçam por um instante os cumes dos montes e afastam-se em direção ao mar, e o espírito entra numa espécie de transe, cresce, dilata-se, não tarda que estale de felicidade. Que mais resta, então, senão chorar?”, escreveu Saramago na entrada do dia 24 de junho de 1993, no primeiro volume dos seus Cadernos de Lanzarote.


O escritor português José Saramago mudou-se para a ilha em 1993 e lá faleceu em 2010. Foto: Divulgação

ESPETÁCULO DO MUNDO
Embora pertencente à Espanha, Lanzarote fica a mais de 1.000 quilômetros de Madri e a pouco mais de 100 do Marrocos. É uma ilha de cerca de 850 km2 (duas vezes Florianópolis, por exemplo), dividida em sete municípios, que tem no turismo sua principal atividade – seguido da pesca e da agricultura (o vinho branco de Lanzarote é muito apreciado). Tem esse nome em homenagem ao conquistador genovês Lanceloto Malocello, que, no começo do século 14, aportou por aquelas terras. Das três fases geológicas pelas quais passou a ilha, a mais recente data dos séculos 17 e 18, quando décadas de erupções moldaram o lugar como hoje está.

“Tinha pensado que Sebastião Salgado seria pouco sensível às lavas e vulcões de Timanfaya (os olhos dele já viram tudo...), mas enganei-me. ‘Estou assombrado’, disse, e a expressão do rosto confirmava as palavras. ‘Hei de voltar e fazer umas fotografias’, disse. Se ele puder cumprir a promessa, Lanzarote poderá gabar-se da sorte que tem”, escreveu Saramago nos seus Cadernos de 1996. Em junho daquele ano, o fotógrafo brasileiro viajara de Paris para mostrar ao escritor as fotos de seu livro Terra, e pedir-lhe um prefácio. No pouco tempo livre que tiveram, visitaram o Parque Nacional de Timanfaya, uma cadeia de vulcões que formam um cenário apocalíptico. Os olhos que já haviam visto de tudo se depararam com camadas de lava que lembram enormes chapas de aço retorcido. Salgado não viu vegetação ou animal, porque ali praticamente não há vida, mas contemplou o mar azul no horizonte e assistiu como a luz em Lanzarote, por conta do vento constante que arrasta as nuvens, muda a paisagem a cada instante. A beleza dura e agressiva que havia enamorado o escritor era por ele mostrada, com orgulho, aos amigos.

Quando recebiam visitas (Carlos Fuentes, Almodóvar, Baltazar Garzón foram alguns dos que passaram por ali), Saramago e Pilar percorriam a ilha, mostrando-a aos convidados: os miradouros, as pequenas vilas de pescadores, as muitas criações do arquiteto César Manrique... Mas havia um lugar que o escritor se recusava a pisar: Playa Blanca. No final dos anos 1990, uma série de construções foi erguida naquela zona para atrair turistas. As casas brancas (a grande maioria das casas de Lanzarote é pintada da mesma cor) de um só nível deram lugar a edifícios, hotéis e restaurantes de luxo que descaracterizavam a paisagem. Até o último dia de vida, Saramago alertou para a ganância que colocava em risco o paraíso que escolheu como morada.


Caleta de Famara é um pequena vila localizada ao norte do arquipélago, distante da zona turística. Foto: Divulgação

A CASA
No dia 18 de junho de 2010, por volta das 11h15, Saramago morreu. Despediu-se do mundo aos 87 anos na casa, em Lanzarote, lugar que um dia comparou com sua aldeia natal. “Será Lanzarote, nesta altura da vida, a Azinhaga recuperada? As minhas deambulações inquietas pelos caminhos da ilha, com o seu quê de obsessivo, não serão repetições daquela ansiosa procura (de quê?) que me levava a percorrer por dentro os olivais desertos e silenciosos ao entardecer?”. Nove meses depois da partida de Saramago as portas da casa foram abertas para visitação pública.

Desde então, a residência do escritor em Lanzarote é uma casa-museu. Ali estão o escritório onde trabalhava, a sala de televisão onde cochilava depois do almoço, a cozinha onde se reunia com as visitas, a pedra e a cadeira do jardim onde se sentava para ver terminar o dia. É muito mais uma casa do que um museu. Ali moram pessoas – o cunhado e a cunhada continuam a viver na residência – e animais (um gato e uma cadela).

As fotos familiares continuam na geladeira da cozinha, lugar onde o visitante é convidado a tomar um café e ler trechos de algum livro do dono da casa. Na biblioteca, no terreno do outro lado da estreita rua, está a oliveira trazida pelo escritor de sua Azinhaga, e cerca de 20 mil livros – com duas prateleiras dedicadas à literatura brasileira.


Residência de José Saramago foi construída por ele e sua esposa, Pilar del Río.
Foto: Divulgação

Estão também Jorge Amado, representado por um pequeno e simpático bonequinho, e Drummond, em um quadro que retrata seu rosto. Na parte de cima da biblioteca fica um pequeno e aconchegante apartamento com dois quartos, uma cozinha e um banheiro. Foi construído para as visitas, mas o adoecimento de Saramago e sua posterior morte fizeram com que o espaço praticamente não fosse usado.

A ideia da fundação que administra o legado do escritor é possibilitar que o apartamento seja usado por acadêmicos interessados em pesquisar sobre o autor e por escritores, como uma residência literária. A casa segue com vida, embora talvez um pouco mais triste sem seu morador ilustre. “Diga ao Sebastião que volte à ilha, que venha fazer essas fotos. Estamos esperando ele”, diz Pilar, quando pergunto sobre a visita de Salgado.

O HOMEM QUE PROJETOU LANZAROTE

Lanzarote não se parece com as demais ilhas canárias. Não há parques temáticos, gigantescos complexos hoteleiros, nem torres de apartamentos. A preservação da ilha se deve ao trabalho do escultor, arquiteto e pintor César Manrique, que nasceu (1919) e morreu (1992) em Lanzarote, embora tenha viajado o mundo e morado em Nova York. Graças à sua visão ecológica e de sustentabilidade, além de seu talento, a ilha vulcânica conseguiu ser preservada e valorizada ao mesmo tempo. Um plano paisagístico iniciado há meio século conseguiu fazer do lugar uma zona turística, sem depredá-la. As intervenções de Manrique deram ao lugar características únicas: ele soube combinar as belezas naturais da ilha com uma arrojada arquitetura.


Os vulcões de Timanfaya são dos elementos peculiares locais. Foto: Divulgação

Os principais pontos turísticos de Lanzarote contam com projetos do artista. Uma de suas criações mais impressionantes é a intervenção nos Jameos del Agua, túneis naturais criados por lava “jovem” que correram em direção ao mar e assim abriram, na lava mais antiga, essas passagens subterrâneas. Nos anos 1960, o lugar, que tinha se tornado um vertedouro clandestino de lixo, foi transformado em um centro de cultura.

Antes de morrer, Manrique criou uma fundação (foto) que leva seu nome e está sediada em uma mansão construída pelo artista com amplas janelas para as montanhas vulcânicas. O objetivo da entidade, além de cuidar do legado do artista, é lutar pela preservação da ilha. Não é um trabalho fácil. A briga contra a especulação imobiliária é cada vez mais desigual, e recentes mudanças de leis permitiram a construção de hotéis monstruosos e campos de golfe que exigem irrigação diária – a escassez de água é um dos problemas mais graves de Lanzarote.

Por se tratar de uma ilha, há um equilíbrio frágil que precisa ser mantido: os turistas são bem-vindos, mas há um limite que, se desrespeitado, ameaça o futuro do lugar. Agora a fundação prepara-se para travar uma outra batalha, contra a prospecção petrolífera que, autorizada pelo governo, deve começar a ser realizada na costa da ilha no começo deste ano. “Vocês têm que fazer o possível para que a segunda morte de César, a espiritual, não se produza. Se perderem o espírito dele, esta ilha estará acabada”, disse certa vez Saramago, em um evento que recordava Manrique. 

O HOMEM QUE PROJETOU LANZAROTE


Fundação César Manrique. Foto: Divulgação

Lanzarote não se parece com as demais ilhas canárias. Não há parques temáticos, gigantescos complexos hoteleiros, nem torres de apartamentos. A preservação da ilha se deve ao trabalho do escultor, arquiteto e pintor César Manrique, que nasceu (1919) e morreu (1992) em Lanzarote, embora tenha viajado o mundo e morado em Nova York. Graças à sua visão ecológica e de sustentabilidade, além de seu talento, a ilha vulcânica conseguiu ser preservada e valorizada ao mesmo tempo. Um plano paisagístico iniciado há meio século conseguiu fazer do lugar uma zona turística, sem depredá-la. As intervenções de Manrique deram ao lugar características únicas: ele soube combinar as belezas naturais da ilha com uma arrojada arquitetura.

Os principais pontos turísticos de Lanzarote contam com projetos do artista. Uma de suas criações mais impressionantes é a intervenção nos Jameos del Agua, túneis naturais criados por lava “jovem” que correram em direção ao mar e assim abriram, na lava mais antiga, essas passagens subterrâneas. Nos anos 1960, o lugar, que tinha se tornado um vertedouro clandestino de lixo, foi transformado em um centro de cultura.

Antes de morrer, Manrique criou uma fundação (foto) que leva seu nome e está sediada em uma mansão construída pelo artista com amplas janelas para as montanhas vulcânicas. O objetivo da entidade, além de cuidar do legado do artista, é lutar pela preservação da ilha. Não é um trabalho fácil. A briga contra a especulação imobiliária é cada vez mais desigual, e recentes mudanças de leis permitiram a construção de hotéis monstruosos e campos de golfe que exigem irrigação diária – a escassez de água é um dos problemas mais graves de Lanzarote.

Por se tratar de uma ilha, há um equilíbrio frágil que precisa ser mantido: os turistas são bem-vindos, mas há um limite que, se desrespeitado, ameaça o futuro do lugar. Agora a fundação prepara-se para travar uma outra batalha, contra a prospecção petrolífera que, autorizada pelo governo, deve começar a ser realizada na costa da ilha no começo deste ano. “Vocês têm que fazer o possível para que a segunda morte de César, a espiritual, não se produza. Se perderem o espírito dele, esta ilha estará acabada”, disse certa vez Saramago, em um evento que recordava Manrique.

RICARDO VIEL, jornalista, colabora com diversas publicações brasileiras, entre as quais Valor Econômico e O Globo.

Publicidade

veja também

Polytheama: O cinema à espera de espetáculos

Jean-Louis Comolli: Os limites do visível

Três passos e… Hollywood