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Will Eisner: O superpoder de um artista

Biografia narra a trajetória do roteirista e desenhista que ajudou, com suas histórias em quadrinhos e personagens como Spirit, a sedimentar a importância da arte sequencial

TEXTO Yellow

01 de Dezembro de 2013

Imagem Arte sobre reprodução

Para a literatura, os quadrinhos, o design gráfico e o cinema, Will Eisner foi um dos autores mais importantes do século passado. Trabalhando como roteirista e desenhista de inúmeras séries de quadrinhos, sendo a mais famosa delas a do detetive mascarado Spirit, Eisner ajudou a elevar esse gênero ao status de arte. Seu refinamento artístico e uso de sofisticadas técnicas de narrativa influenciaram muitas gerações de artistas de diferentes mídias.

A biografia Will Eisner, um sonhador nos quadrinhos, do experiente autor Michael Schumacher – que já retratou as vidas de Eric Clapton, Allen Ginsberg e Francis Ford Coppola –, documenta, finalmente, a história de um velho conhecido de fãs, estudantes e autores de quadrinhos, ao mesmo tempo em que conta também um importante período da história dos Estados Unidos.

O desenhista nasceu à época da recessão, quando sua família foi uma dentre as muitas que chegaram da Europa, fugindo da Primeira Guerra Mundial, sofreu com a fome e o antissemitismo. Começou a trabalhar como ilustrador desde muito jovem, e chegou a fundar seu primeiro estúdio antes de servir ao exército durante a Segunda Guerra, quando produziu quadrinhos educativos para os soldados. Ao final do conflito, Eisner seria peça fundamental na criação da indústria das HQs. Em edição cuidadosa e ilustrada com imagens raras, da série Biblioteca Azul, da Editora Globo, o livro é uma grande introdução não somente ao trabalho de Eisner, mas à compreensão do nascimento e desenvolvimento da indústria do entretenimento.

Vários outros quadrinistas passaram pela vida de Eisner. Jack Kirby e Jules Feiffer foram seus empregados. O primeiro, antes de tornar-se o rei dos quadrinhos, ao criar em parceria com Stan Lee, o Quarteto Fantástico, os X-Men e Hulk, enfrentou um capanga da máfia, para poder salvar o chefe. Uma das melhores anedotas do livro é a história de como Eisner se recusou a publicar o Super-Homem de Jerry Siegel e Joe Shuster, que viria a revolucionar os quadrinhos e a indústria do entretenimento em todo o mundo.

Eisner inspirou-se, para sua mais conhecida criação, o detetive Spirit, em referências de sua infância. O jovem aprendeu sobre movimento e timing com o cinema, e desenvolveu suas habilidades de contador de histórias a partir da mistura de clássicos da literatura às histórias de detetives das pulps noir, que impregnavam o ambiente em que circulava.

Sua maior contribuição aos quadrinhos, ainda assim, não é através dos maravilhosos exemplos que deixou. Ele lutou durante toda a vida para que sua forma de arte fosse considerada mais do que simples entretenimento pueril para crianças. Ele foi o criador das graphic novels, romances em forma de quadrinhos, feitos para ocuparem espaço nas prateleiras ao lado de romances textuais. É graças a ele que as HQs têm hoje espaço em livrarias e bibliotecas, e recebem prêmios de literatura, como Maus, de Art Spiegelman, que ganhou o Prêmio Pulitzer em 1992.

FERRAMENTA PEDAGÓGICA
Eisner criou também o termo “arte sequencial”, por considerar derrogatória a denominação “quadrinhos” (em inglês, comics, uma redução de comic books) a uma forma de arte que, em sua visão e experiência, poderia ser usada não apenas para entretenimento, mas como veículo de expressão artística e ferramenta pedagógica para pessoas de todas as idades, numa época em que quadrinhos eram perseguidos e associados à delinquência juvenil.

Eisner foi suficientemente generoso para produzir pioneiros livros didáticos, principalmente Os quadrinhos e a arte sequencial (Comics and sequential art, 1985) e A narrativa gráfica (Graphic storytelling and visual narrative, 1996), nos quais aborda academicamente sua forma de arte, documentando e ensinando, para o porvir de muitas gerações, um conhecimento acumulado em décadas de dedicação à sua arte. Nestes volumes, explicita importantes elementos da narrativa gráfica, como a composição dos quadros e as sequências de imagens e diálogos podem determinar a passagem do tempo.

Além de ser um artista de técnica impecável, Eisner nunca deixou de experimentar. Nos anos 1970, conheceu e começou a tomar parte de convenções de quadrinhos. Passou a acompanhar e incentivar, até o fim da vida, o trabalho de jovens artistas. Participou de publicações underground, como a revista Snarf, do amigo Denis Kitchen. Em 1988, foram criados os prêmios Eisner, equivalentes ao Oscar da indústria dos quadrinhos, que são apresentados anualmente na Comic-Con, em San Diego, Califórnia. O desenhista estaria presente em todas as cerimônias de entrega do prêmio, até sua morte, em janeiro de 2005.

Vários dos trabalhos de Eisner abordam sua infância como imigrante de família semita e, para os judeus, ele é reconhecido como um homem honesto e íntegro. Há uma tradição judaica de colocar uma pedra sobre um túmulo para marcar uma visita, e o túmulo dele está encoberto de pedras.

O maior trunfo da biografia de Michael Schumacher é o de enumerar os feitos maravilhosos de Eisner, em meio a uma vida que não se pode chamar de aventurosa. Ele recorre a falas e à história paralela de vários outros personagens, e concentra-se na descrição histórica dos tempos do artista, enquanto este silenciosamente mudava o mundo, debruçado sobre sua prancheta.

Tive a oportunidade de conversar brevemente com Eisner em 2001, quando de sua passagem pelo Recife, para participar do Festival Internacional de Humor e Quadrinhos. O mestre manteve sempre um sorriso no rosto, e tinha alguns tostões de conversa para quem quisesse se aproximar dele. Sua humildade era arrebatadora, seu interesse pelos fãs fazia seus pequenos olhos brilharem e não lhe faltavam comentários interessantes e engraçados a todas as perguntas ou comentários que lhes eram feitos.

O aperto de mão de Eisner era firme como o de todos os heróis deve ser. Na ocasião, quando já amealhava 83 anos de idade, confidenciou que ainda mantinha uma rígida ética de trabalho, produzindo uma página de quadrinhos por dia. A entrega ao ofício parece ser herança de muitos sobreviventes da recessão, que, como ele, tiveram que trabalhar desde a infância para ajudar a sustentar suas famílias. Porém, Eisner exalava uma alegria contagiante por sua atividade e suas realizações. A paixão que tinha por sua arte era um superpoder. 

YELLOW, designer, professor e músico.

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