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Gastão de Holanda: A cidade e os escorpiões

Cepe Editora relança obra premiada, e há tempos esgotada, do escritor, editor e desenhista gráfico que foi um dos fundadores de O Gráfico Amador de Pernambuco

TEXTO Eduardo Cesar Maia

01 de Outubro de 2013

Gastão de Holanda

Gastão de Holanda

Foto Reprodução

A reedição de Os escorpiões, romance do versátil Gastão de Holanda (1919-1997), pela Cepe Editora, é oportuna em diversos sentidos. Em primeiro lugar, a publicação da obra neste ano de 2013 (quase 60 anos após a primeira edição) enseja uma discussão a respeito de como temos – jornalistas e acadêmicos incluídos – reservado pouco cuidado com a preservação de nossa memória literária recente.

Excetuando-se, obviamente, os autores canônicos de sempre (Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, João Cabral e poucos mais), muitos daqueles escritores e críticos que fizeram do Recife uma referência intelectual nacional durante as décadas de 1950, 1960 e 1970 jazem em livros empoeirados e esquecidos em nossas malcuidadas bibliotecas e em alguns sebos que ainda não se renderam à lógica “best-sellers & didáticos”.

Outra contribuição fundamental da editora através dessa publicação é apresentar, principalmente para os leitores mais jovens, o nome do próprio Gastão de Holanda. O escritor e desenhista gráfico, falecido no Rio de Janeiro há pouco mais de 15 anos, atuou como jornalista, professor, advogado, romancista, poeta, contista, editor e designer.

Na área do desenho gráfico, por exemplo, destaca-se seu empreendimento cultural como fundador, em 1954, juntamente com Aloísio Magalhães, José Laurênio de Melo, Orlando da Costa Ferreira e Ariano Suassuna, da famosa editora O Gráfico Amador, que se notabilizou por publicar, em edições limitadas e artesanais, obras de autores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Hermilo Borba Filho, Francisco Brennand, Carlos Pena Filho, Mauro Mota, entre outros. Nessas edições, a qualidade dos textos rivalizava, a cada obra, com o apuro e o experimentalismo da arte gráfica. Como editor, Gastão de Holanda encabeçou, no Rio de Janeiro, a importante Revista José – literatura, crítica & arte, que desempenhou relevante papel cultural na década de 1970.

Por fim, ademais da já apontada relevância de Gastão de Holanda como intelectual e agitador cultural, cabe aqui nesta breve resenha apontar, ainda que rapidamente, o valor literário e histórico de uma obra literária específica: Os escorpiões, romance publicado em 1954, ganhador do importante Prêmio IV Centenário de São Paulo, no mesmo ano.

A OBRA
O livro, antes de tudo, reflete um projeto literário ambicioso, tanto no conteúdo quanto na forma. A história da amizade entre dois jovens, Leopoldo e Frederico Sarmento, é transmitida por meio de estratégias narrativas diversas, como o relato em terceira pessoa através de um narrador onisciente, o diálogo direto, o fluxo de consciência, a transcrição epistolar e o relato onírico. À maneira da tradição do Bildungsroman (romance de formação), a narrativa, ambientada na cidade do Recife da década de 1930, tem como preocupação central relatar o processo de formação intelectual, moral e emocional do jovem Leopoldo, filho de uma humilde viúva dona de um pensionato para estudantes localizado no centro da cidade.


Numa de suas raras fotografias no Recife, em reunião ocorrida no início dos anos 1960, na casa de Orlando da Costa Ferreira, Gastão está sentado à direita. Foto: Reprodução

A primeira riqueza do livro é justamente a minuciosa representação do Recife daqueles tempos, não somente através da descrição das ruas, das festas, dos costumes, enfim, da “cor local”, mas principalmente por meio da existência concreta e palpável de personagens convincentes que vivem a cidade e nos transmitem uma sensação de memória autêntica de uma época.

Literariamente, o ponto forte da obra está justamente na construção de seus personagens centrais. A “provinciana história”, como diz o narrador, de Leopoldo e Frederico – personagens eminentemente contemplativos –, tem algo de romance existencialista. Tal influência fica patente em trechos como o seguinte, que reproduz a fala de Leopoldo: “Eu, por minha vez, forço a minha liberdade. Todo homem força a sua liberdade. Estranho paradoxo. Não teremos, futuramente, outra saída senão pelo absurdo” (pág. 24).

As preocupações e reflexões filosóficas do autor são expressas principalmente por esse personagem, que vive numa interminável angústia existencial, devida aos excessivos cuidados de sua mãe (“A infância dele fora banhada pelas lágrimas de uma viúva, como um vasto campo pelas chuvas de maio”), à ausência paterna e ao conturbado relacionamento amoroso com a judia Bertha, personagem que também merece destaque por sua complexidade e caráter ambíguo.

Assim, apesar de desprovidos de qualidades excepcionais e de não terem vidas exteriormente interessantes, os personagens de Os escorpiões nos persuadem de suas existências – algo essencial para o êxito ficcional – exatamente na medida em que seus conflitos íntimos nos revelam preocupações humanas que transcendem as circunstâncias de época e lugar, e que, portanto, podemos ver refletidas, por vezes, em nós mesmos.

Além de Os escorpiões, Gastão de Holanda escreveu ainda os romances Macaco branco (1955), O burro de ouro (1960) e A breve jornada de D. Cristóbal (1985); o livro de contos Zona de silêncio (1951); e as obras poéticas Eu te previno (1969), Capiberibe, o iceberg no ar (1977), O atlas do quarto (1978), Corpurificação (1979), O jornal (1981) e O dragão encurralado (1983). 

EDUARDO CESAR MAIA, jornalista, crítico literário, professor universitário, mestre e doutor em Teoria Literária.

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