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"Usei o trabalho de modo terapêutico"

Em entrevista iniciada há uma década e encerrada em 2013, Gil Vicente fala da trajetória, aspectos profundos da arte e de como o trabalho o ajudou a superar um longo período de melancolia

TEXTO Fernando Augusto S. Neto

01 de Outubro de 2013

Gil Vicente

Gil Vicente

Foto Luiz Antônio Araújo/Divulgação

Conheço Gil Vicente desde os anos 1980, participando dos famosos Festivais de Inverno da UFMG (juntamente com Marcelo Silveira, Alexandre Nóbrega e Rinaldo), a partir daí, sempre que nos encontramos tecemos boas conversas sobre arte, mercado e nossas agonias. Mas uma de nossas conversas mais marcantes se deu em 2001, em uma residência artística ocorrida no Paraná, denominada Faxinal das Artes. Esse evento, patrocinado pelo governo de Jaime Lerner, envolveu curadores como Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos, Daniela Bousso, Cristiana Tejo, entre outros, e reuniu cerca de 100 artistas de todo o Brasil e alguns estrangeiros, no pequeno vilarejo de Faxinal do Céu, uma reserva florestal perto de Curitiba, para uma convivência de 15 dias, com o propósito de propiciar um diálogo maior entre os artistas brasileiros, troca de experiências e desenvolvimento de projetos possíveis naquele tempo e lugar.

Embebido pela riqueza do encontro, resolvi entrevistar artistas com os quais já tinha algum contato a fim de conhecer melhor suas poéticas, procedimentos e aflições. A ideia deu certo, assim, acabei tecendo longas entrevistas com artistas como Shirley Paes Leme, Emanuel Nassar, Francisco Farias, Eduardo Frota, Elida Tessler, Marepe, Marcelo Solá, Karin Lambrecht, Dulce Ozinsky e, claro, Gil Vicente. Essas entrevistas eram abertas; dado o primeiro passo, que era o próprio fato de nos encontrarmos ali disponíveis para uma convivência de duas semanas e participar de bate-papos, de palestras e também de trabalho de ateliê, a conversa tinha um direcionamento claro: mostrar a poética do artista e seus procedimentos, provocá-lo a falar sobre sua formação e produção, tecendo desse modo um olhar reflexivo sobre seu processo criativo e os trabalhos realizados.

Passado o encontro do Faxinal das Artes, essas entrevistas foram guardadas em gavetas e caíram no sono. Gil Vicente, contudo, tem a capacidade de acordar fantasmas. Outrora, já havia lhe enviado o texto digitado para pensarmos a possibilidade de publicação, mas foi por ocasião da sua participação na 27ª Bienal de São Paulo e de uma viagem minha ao Recife, que retomamos nossa conversa de Faxinal, passados mais de 10 anos, para vermos o que havia sido dito, o que não fora dito ainda e o que se poderia dizer.

A conversa fluiu com naturalidade e interesse e chegamos ao texto que se segue. Gil Vicente, além de grande desenhista, é um bom contador de histórias, é divertido e enriquecedor ouvi-lo e saber como, em seu trabalho, ele sempre buscou o encontro com o outro. Seu exercício artístico tem algo do que fala Louise Bourgeois, ao definir a arte como “uma garantia de sanidade”. Poucos artistas têm a coragem de trilhar essa senda, a de aproximar sua arte das deambulações psíquicas e de ver nela uma promessa de sanidade ou, como queria Stendhal, “uma promessa de felicidade”. É este encontro, marcado pela convivência fraterna e espichado no tempo, que trazemos a público agora.

CONTINENTE Você é um artista plástico que vem de uma família de escritores, de um convívio com a literatura. Fale um pouco sobre essa convivência.
GIL VICENTE Meu avô materno, João Vasconcelos, era escritor e critico literário. Foi membro da Academia Pernambucana de Letras e publicou dois livros de contos ambientados no interior do estado. Quando eu nasci, ele estudava a obra de Gil Vicente e sugeriu o nome à minha mãe. Vovô morreu quando eu tinha seis anos. Lamento, pois já éramos bons amigos e, com certeza, teríamos trocado muitas figuras quando me interessei por arte. Depois de criar os filhos, minha mãe estudou Sociologia e Antropologia, com dissertação sobre a relação homem/mulher, na qual propunha redefinições nos papéis da convivência. Ela escreveu ensaios e tem vários livros publicados e premiados, principalmente de poesia, dos quais já ilustrei dois. Meu irmão mais velho é músico e sempre está envolvido com pesquisas ligadas à música pernambucana. Por outro lado, meu pai era muito amigo do escritor Osman Lins e de muitas pessoas da área cultural, como Jomard Muniz de Brito e outros. Nossa casa sempre abrigou boas discussões sobre arte e cultura.


Imagem: Reprodução

CONTINENTE Há um quadro trágico de sua autoria cujo título é Minha mãe morta. Como é a presença da morte em sua família e para você?
GIL VICENTE Acho que a presença dos pais vivos é muito maior que a presença da morte, essa preocupação nunca foi um problema na família. Sempre tivemos canal aberto para dialogar sobre tudo. Meus pais respeitaram e incentivaram a personalidade de cada filho e também suas opções profissionais. O desenho Minha mãe morta mostra um cachorro lambendo o corpo nu de uma mulher. Não aparece o rosto. É um corpo caído no chão, e eu não compreendo o que representa. A imagem e o título apareceram prontos e até hoje não sei o que significam. Muitos dos meus desenhos, principalmente os nanquins, são tentativas de acessar imagens das camadas mais internas, escuras e enlameadas, porém, desconheço interpretações para eles. Até prefiro trabalhar assim, pois, se estou muito consciente do que cada coisa representa, termino fazendo uma mera ilustração. Muitas pessoas acham esse desenho agressivo, mas outras o veem como uma coisa afetiva e muito carinhosa. Nessa mesma série, fiz outros desenhos pesados, nos quais a morte também é evocada.

CONTINENTE Certa vez você me mostrou uma pintura sua, uma natureza-morta com um cacho de bananas e uma flor sobre uma toalha de mesa em desalinho, e me disse que, psicologicamente, aquele trabalho representava bem uma situação que você passara. Esse fato me fez pensar na relação entre arte e psicanálise, como é essa questão para você?
GIL VICENTE Trabalho com desenho e pintura usando técnicas convencionais, nanquim sobre papel, óleo sobre tela, e temas também convencionais, como a figura, o retrato, a paisagem. Mas o que me interessa é estar mexendo comigo mesmo, estar me investigando, porque, no fim das contas, sempre usei o trabalho de modo terapêutico, para sobreviver como pessoa. Mesmo fazendo uma paisagem ou uma natureza-morta, como eu trabalho intuitivamente, os significados me escapam, há sempre certa narrativa que não consigo acessar racionalmente, mas que está na imagem. Certo dia, olhando distraidamente para uma natureza-morta, me dei conta, assustado, de que ela falava sobre uma namorada recente e me dizia muita coisa. Pouco depois, fui convidado para a mostra Imaginário e sexualidade, na Fundação Joaquim Nabuco, e enviei essa pintura.


Imagem: Reprodução

CONTINENTE Você estudou arte em diversos lugares, mas, como já disse, uma das figuras importantes nos seus estudos foi o artista José Cláudio. Como foi esse aprendizado?
GIL VICENTE Comecei a estudar bem cedo, e logo fui participando de coletivas, salões, e a vender trabalhos. Estudei seis anos na Escolinha de Arte do Recife e três nos ateliês livres de extensão da UFPE, nos quais fiz desenho e pintura de observação. Depois estudei em Paris, com uma bolsa do governo francês, onde também vi muitas exposições bacanas. Mas as minhas referências estavam sempre nos artistas daqui. Os artistas pernambucanos que mais me atraíam eram Reinaldo Fonseca, Cícero Dias, João Câmara, Ismael Caldas, Adão Pinheiro, Francisco Brennand, Vicente do Rego Monteiro, Zé Cláudio, Samico, Rodolfo Mesquita e outros. Em Zé Cláudio, me encantava o prazer dele com a pintura e o vivo caminho que escolhia para captar o popular. Além do respeitável exemplo profissional, ele escreveu textos sobre meu trabalho, que me abriram caminhos para a compreensão do que faço. Quando minha exposição Desenhos esteve no Mamam, em 1999, acompanhada de um debate com Marcos Lontra e Moacir dos Anjos, antes das falas dos curadores, Zé Cláudio, que estava na plateia, levantou-se e pediu para falar primeiro. Seu depoimento de improviso é um dos textos mais bacanas sobre meu trabalho. Por sorte, um jornalista gravou esse depoimento, que depois foi publicado na primeira edição da Continente. O então editor da revista, Mário Hélio, achou um ótimo título para o texto: Uma descida aos infernos. Ali, Zé Cláudio dá algumas chaves com as quais eu compreendo melhor o que faço. Não o significado das coisas, mas questões da minha relação com a expressão. Sou muito grato a ele e me comovo sempre que falo disso. Eu sempre quis pintar como ele, como Brennand, como Reynaldo Fonseca, e foi assim, perseguindo, correndo atrás de um e de outro, que fui construindo o meu trabalho.

CONTINENTE O retrato é um gênero de pintura, de certa forma, obrigatório para todo pintor na história da arte, mas perdeu seu lugar na arte moderna e contemporânea. No entanto você assume esse desafio, nos anos 1980, ao fazer uma série de retratos de artistas do Recife. Como que foi esse projeto?
GIL VICENTE Aconteceu por acaso. Minha produção da década de 1980 foi quase toda a partir do real, quer dizer, feita de observação. Pintei figuras, paisagens e naturezas-mortas. Meu círculo de amizades era pequeno, era mais familiar. Aos 23 anos, passei um período de grande melancolia. Meus relacionamentos eram muito atormentados, de todos eles eu saía me sentindo muito culpado. Tudo era para mim um tormento e a pintura ficava escura. A partir de 1982, fiz um esforço para sair dessa melancolia e também já tinha começado a fazer terapia. Assim, fui construindo lentamente um equilíbrio e o trabalho foi imprescindível para eu sobreviver. Usei-o para me salvar. Passei a convidar outras pessoas para posarem pra mim. E também comecei a jogar futebol, um esporte coletivo (pois até então o esporte que eu praticava era natação, à noite, que é você sozinho com a cabeça dentro da água, uma coisa muito escura e uterina). Enfim, procurei ter mais contato com o mundo, porque era um desgaste muito grande estar com as pessoas. Acho que a necessidade que eu tinha de desenhar a figura e de aprender a retratar era, desde cedo, um caminho para me aproximar do outro.


Foto: Reprodução

CONTINENTE Mas a série mostra também várias pessoas da cultura pernambucana. Como foi feita?
GIL VICENTE Quando consegui clarear, esquentar as cores e dar mais contraste à minha pintura, fiz 10 retratos de artistas amigos. Cada um foi realizado em dois dias, no ateliê do retratado. Chegava sem nenhuma ideia definida e a pose era escolhida naturalmente, numa dinâmica descontraída entre mim, o artista e o espaço. Como de costume, começava desenhando na tela com a tinta mais rala, para acertar as proporções da figura. Se esse desenho estrutural saísse rápido, eu já começava a pintar no primeiro dia. Iniciava pelo rosto, pois sendo a parte mais difícil, preferia enfrentar logo e me livrar dela. No resto do quadro, ia me divertindo, me soltando. Dessa série, acho que no retrato de Samico foi onde me saí melhor.

CONTINENTE E o seu interesse pela fotografia, como surgiu?
GIL VICENTE Fotografo desde os 17 anos. Comecei registrando meus trabalhos para divulgação e arquivo, mas também clicava coisas de rua que me atraíam plasticamente. Em meados de 1998, voltei a fotografar buscando algo diferente do desenho e da pintura. Mas me dei conta, muito claramente, de que todas essas fotos eram de coisas bidimensionais com interesse gráfico e pictórico: portões, paredes, portas... Enfim, compreendi que só me interesso por coisas bidimensionais, pelo plano, e que nasci faltando a dimensão da profundidade. Essas fotos são, na maioria, registros de intervenções populares. Comecei pelas portas metálicas de estabelecimentos populares, que no Recife são pintadas de maneira precária, com restos de tinta de cores quentes. Foi também uma forma de paquerar um pouco com a geometria. Depois de Portas, vieram as séries Passagens (paredes com aberturas que foram fechadas) e Desenhos, todas de origem popular.


Imagem: Reprodução

CONTINENTE Você fala do desenho e da sua pintura enfatizando o lado íntimo e pessoal, mas o que dizer do lado público desse trabalho? Quero dizer, como, em seu trabalho, você pensa o Brasil, a sociedade brasileira?
GIL VICENTE Como falei, o meu trabalho sempre foi muito autorreferente, feito mais pra me salvar. Por isso nunca me ative à temática social. Não fiz universidade, não estudei história da arte, estética, filosofia, nada disso. Sempre me abasteço mais pelo olho. Então, não sei discutir nenhuma questão social e política brasileira. Eu sou um ser social e participo da vida social do Brasil. Para minha formação como artista, dependi de outros artistas que foram generosos comigo. Da mesma forma, acompanho o trabalho de outros que estão começando. Isso é uma atuação social. Não vejo necessidade de trazer essa preocupação como tema do trabalho. Mas, na medida do possível, participo de projetos e oficinas junto a grupos da comunidade. Comecei a me interessar por música em 1998. É uma coisa diferente do que eu sempre fiz, com outro sistema cognitivo que mexe com a minha cabeça de forma muito lúdica. Mas música é matemática também, e é outra forma de eu dar vazão à minha paquera com a geometria. Assim, acabei ingressando com outras pessoas no Maracatu Leão Coroado, em Águas Compridas, Olinda, e lá procuramos ajudar a comunidade. O grupo no qual entrei fez um site com a história do Leão, levou para a sede uma unidade do projeto CDI (Comitê de Democratização da Informática) e pedimos colaborações de outros profissionais, como o arquiteto Albérico Paes Barreto, que fez gratuitamente um projeto para a nova sede do Leão. Mas não tenho capacidade de dar uma opinião sobre o quadro social e político brasileiro. Muito menos que caminho o Brasil deve tomar, qual a importância das ONGs etc. Tenho feito a minha parte, na medida do possível.

CONTINENTE Há 11 anos, no Faxinal das Artes, você disse que não entendia nada de política e que não vinculava seu trabalho a ela. No entanto, a sua série de desenhos Inimigos, de 2005-2010, é nitidamente ligada à política. Como você iniciou essa série? O que mudou nesse meio tempo?
GIL VICENTE Continuo sem entender nada de política. O que mudou é que perdi a ingenuidade. Desde 1976, quando completei 18 anos, votava com muita esperança em mudanças sociais para o país. Seguidamente tive decepções, e seguidamente renovei as esperanças. Até compreender que a política é um ótimo negócio que faz milionários com o dinheiro público. Além disso, o sistema eleitoral é pífio e nulo. O voto, em si, não tem a menor importância, pois qualquer elemento que for eleito fará obrigatoriamente o mesmo que seus antecessores: roubará para si e para o seu grupo. Um dirigente rouba cerca de dois terços da verba que passa por sua administração, e o resto é aplicado em projetos que beneficiam a classe média e a classe alta. Os pobres e miseráveis seguem sem estudo, sem saúde, sem direitos, sem oportunidades. E sabemos que os problemas sociais de cada estado do Brasil poderiam ser resolvidos apenas com o dinheiro público roubado naquele mesmo estado. Nunca votei esperando mais verbas para a arte e a cultura, mas desejando que, finalmente, o país caminhasse para a justiça social. Como eu era ingênuo! Em 2005, caiu a ficha e compreendi que nada vai mudar, que sempre foi assim e a tendência é piorar. Movido por essa clareza decepcionante, fiz a série Inimigos, e nunca mais compareci em cabines eleitorais para votar. Se a classe política não cumpre o seu dever social, não me sinto obrigado a cumprir o meu “dever cívico” de escolher um entre vários ladrões. Votar é assinar um papel em que está escrito: “Autorizo Fulano de Tal a roubar dinheiro público durante quatro anos sob total proteção da lei”. Estou fora. Não farei mais isso. O descaso com as questões sociais não ocorre apenas no Brasil. Os meus alvos na série Inimigos são governos ou instituições do Brasil e do mundo, representados por seus dirigentes. Eu quis mostrar que na minha região é assim, no meu país é assim e no resto do mundo também é assim. Em certo aspecto, a série Inimigos se parece com trabalhos anteriores, pois foi motivada por incômodos que eu não identificava com clareza. Foi um expurgo. Em julho de 2005, eu havia desenhado uma mão enfiando violentamente um revólver na boca de George Bush. No mês seguinte, fiz o primeiro desenho da série, Autorretrato matando George Bush, que foi exposto em Campinas-SP junto dos desenhos de Lula e Bento XVI. Ainda em dezembro de 2005, expus a série completa na Galeria Mariana Moura, no Recife. Em 2006, mostramos na Casa da Ribeira, em Natal, e, em 2008, no Atelier Subterrânea, em Porto Alegre. Na Bienal de São Paulo, em 2010, incluí o desenho matando Ahmadinejad. A série fala da minha raiva por ter sido enganado durante tanto tempo, e da minha descrença em qualquer alteração ética no quadro político brasileiro. 

FERNANDO AUGUSTO S. NETO, artista plástico e professor da Universidade Federal do Espírito Santo.

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