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Changuito: Poesia ilimitada

No Rio de Janeiro, um português abriu a única livraria especializada em poesia do país. Conheça o intrépido livreiro que não diz uma frase sem citar um poema

TEXTO RONALDO BRESSANE
FOTOS MARCOS MICHAEL

01 de Maio de 2013

Changuito

Changuito

Foto Marcos Michael

Pocuso sabem, mas Dom Quixote vive em uma sala ensolarada num prédio feioso da Lapa carioca. Sim, aquele mesmo: o cavaleiro andante, que lutava com moinhos de vento na Península Ibérica, hoje batalha contra outros inimigos, tão poderosos quanto invisíveis — os leitores. Changuito, nome de guerra do lisboeta Mário Guerra, idade entre 20 e 40 anos (“Livreiro nunca declina a idade”, diz), é o dono da quixotesca livraria Poesia Incompleta. Quixotesca por muitas razões. Primeiro: é a única livraria especializada em poesia no Brasil — algo já raro em termos mundiais (Changuito ouviu dizer que só há congêneres em Paris, Seattle, Boston e Oslo). Em plena crise do livro, um negócio altamente arriscado. Segundo: por razões legais, Changuito não pode divulgar o endereço da livraria; no Rio, é proibido “estocar” livros acima do quarto andar de um prédio comercial. O livreiro só descobriu essa lei bizarra quando foi abrir o negócio na prefeitura — e já havia instalado na sala uma tonelada de ditirambos, sonetos, epopeias e versos livres: cinco mil volumes, em cerca de 30 idiomas diferentes.

O clandestino espaço é um terço da livraria que Changuito tinha em Lisboa, onde suas três salas com livros em 50 línguas funcionaram durante três anos — e, pasmem os que o taxam de cabeça-de-vento, com lucro anual de 20%. “Não se abre um negócio desses sem relação de amor com a poesia”, ensina ele, tossindo bastante enquanto acende o cachimbo (fumava quatro maços por dia, agora baixou para um). Faz 40 graus lá fora e aqui dentro o refresco vem puramente da janela, da cerveja oferecida pela namorada do livreiro e da trilha sonora, o flutuante piano do português Bernardo Sassetti. “A primeira coisa que me moveu para abrir a livraria foi a relação de intimidade com o leitor, que não acontece nessas megassuperlivrarias. Ali, o capitalismo é malfeito: estão a perder clientes de livros para CDs, computadores, filmes; podes ver pelo fechamento da Barnes & Noble. Creio na clivagem dos produtos de nicho: o tipo que adora ciências sociais vai em livraria só de livros de ciências sociais encontrar leitores de ciências sociais; um lugar onde tratam o leitor por tu”, explica o anarcocapitalista.

Mas, enfim, se fazia sucesso em Portugal, para que aventurar-se no Rio? “Estou aqui há três meses e tem sido relativamente catastrófico”, confessa. De novo, o amor justifica o movimento do livreiro: ele se apaixonou pela bela poeta carioca Valeska de Aguirre (Atos de repetição, 7Letras). Não só o amor, também a guerra. “Respira-se mal em Portugal; há gente assustadora no poder, analfabeta, tiriricas de fato e gravata com discurso neoliberalista que nem conjugar verbos sabem”, vitupera. No batismo da livraria, ficou entre homenagear Poesia toda, antologia de seu ídolo Herberto Helder, e Poesia incompleta, livro do também português Mario Dionisio: “Me pareceu mais justo, porque, por mais que se tenha de tudo, sempre falta algo”, lamenta. Coisa que o deixa irritadíssimo. Daí sua frustração em não poder divulgar o endereço da livraria: editoras e distribuidoras brasileiras desconfiam e não lhe entregam os livros pedidos. Portanto, por enquanto, seu faturamento é, como o nome sugere, incompleto.


Nas paredes da pequena livraria, o proprietário fixou manuscritos,
correspondências e ilustrações

Apesar de haver poucos livros brasileiros, há tesouros para onde se olhe nas abarrotadíssimas estantes — um catálogo finamente selecionado, tentações por todo lado. Há que se lembrar ao leitor que qualquer compra assusta: como são livros europeus, os preços estão em euro. No entanto, não existe lugar no país onde se possa passar a tarde toda folheando exemplares de editoras e selos raros do mundo todo, tendo a fazer-lhes as honras um cultíssimo leitor. Antes de ser livreiro, que fazia o magro barbudinho? “Era gerente de um bar onde havia concertos, ou seja, comprava tomate, queijo, servia bebidas e programava os shows”, diz. E estudou o quê? “Estudei tráfico de escravos na Abissínia, estudei trapézio, estudei história científica do século 15, estudei todas as matérias que não valem para nada, e, além disso, os poemas de Manoel de Barros”, conta. “Tentei fazer faculdades de animação sociocultural e jornalismo e, assustadíssimo com o baixo nível, depois de sete meses, saí”, diz, falando pausada e apaixonadamente, quase sempre citando versos. Seus heróis são Herberto Helder, Mário Cesariny, Camões, Cesário Verde, Camilo Pessanha... E Pessoa? “Estão a editar tanta porcaria de Pessoa, que acho difícil dizer que gosto dele. Os argumentos de cinema, os textos sobre monarquia? Claro que ele é grande, mas estão a fazer render demais o peixe, o baú dele é uma sangria”, critica. Entre os brasileiros, Changuito elege as Galáxias, de Haroldo de Campos, Drummond, Bandeira, e, acima de todos, João Cabral, “o primeiro poeta brasileiro que ouvi; fiquei absolutamente doido com aquilo”. Dos contemporâneos, elogia os romances Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Pornopopeia, de Reinaldo Moreaes, e Ó, de Nuno Ramos.

CONTEMPORÂNEA
E poesia contemporânea? Aí Changuito prefere silenciar, para não polemizar. Conta, meio desgostoso, que, em Portugal, os poetas que não elogiava deixavam de ir à livraria; no Brasil, somente teve a visita de Paulo Henriques Britto. Será que os poetas frequentam mais saraus que livrarias? À provocação, o magriça atiça-se. “Onde a poesia se exibe como um espetáculo espetacular, não é poesia’, diz um poema de Ramos Rosa. Ouvi muita poesia dita por poetas e atores. Engraçado: no quinto verso, vê-se os cinco livros que o tipo leu. Estamos em 2013 e estão a querer fazer o que o Ginsberg fez há 60 anos? Tu não és o Ginsberg, poxa, que leu os russos, os irlandeses, os franceses... aquilo não veio de nada. É muito raro um Rimbaud!”, tosse. Então, para Changuito, existe grande diferença entre escrever e publicar? “Há muitas pessoas se achando demais, tendo opiniões... ‘quem acha, vive se perdendo’, cantava o Noel Rosa. É como acontece na academia: fico chocado com o número de pessoas concluindo pós-doutorados. Mas o que alguém pode concluir sobre o que quer que seja?! Concluir é assustadoramente difícil. Li a grande poesia portuguesa do século 15 e não concluo porra nenhuma! ‘Umas vezes me espanto, outras me envergonho’, diria o Sá de Miranda. Acho que, na poesia contemporânea, estamos muito distanciados do espanto e não nos envergonhamos o suficiente”, trocadilha o livreiro.

Editam-se coisas demais? Como lidar com o dilúvio de informação? Navegar na rede é preciso? “Só uso o Facebook como plataforma de negócios. Nesse polvo das redes sociais, quando alguém põe um texto a rimar alma e calma e uma foto de pôr do sol, 17 imbecis fazem joinha... Não tenho tempo para isso, não acabei de ler o Dostoiévski”, justifica. Então, é difícil tirar as pessoas da zona de conforto. “Claro: ninguém quer ler Marcial, Plutarco, Píndaro, Checov; ninguém vai te agarrar na rua e dizer ‘Leia Shakespeare!’. No Rio, especificamente, há um amontoado de razões para as pessoas não lerem poesia. Tu não queres ficar pra baixo, refletindo, indispondo-se com a praia, não é?”

Para Changuito, ler deve ser um exercício singular. “Entro na Livraria Cultura e fico entontecido com as escadas rolantes, as luzes, o espaço... parece que o livro é só mais uma coisa.Vivemos uma época de possibilidades. Há 750 mil APPs para iPhone, podem-se comprar viagens instantâneas na rede, ver todos os filmes, ouvir os melhores textos em audiolivros ditos pelos melhores atores. Mas compra-se, e não se lê. Lembrando Szymborska, ‘Alguns gostam de poesia/ alguns, quer dizer, dois em mil’. As pessoas gostam é das possibilidades: de ter milhares de coisas que jamais terão tempo físico para usar; da hipótese de gelados com 80 sabores, mas, nos próximos 20 anos, vão provar o único sabor que de já gostavam antes. As pessoas nunca saem da zona de conforto para a zona de confronto”, discursa, desculpando-se por mais uma tossidela.

Por essa razão é que o livreiro, ao buscar um lugar definitivo para a Poesia Incompleta — com dificuldade, por conta dos altíssimos preços de aluguéis no Rio —, evita associar-se a bar ou restaurante. “As pessoas vão com as mãos molhadas pegar num livro, e cada exemplar que se inutiliza, joga-se fora. Quando as pessoas veem 50 exemplares da biografia de Giannecchini ou do Padre Marcelo, ou da Jane Fonda, acham que, se este caiu, há outro, tudo bem. Só exponho um único exemplar de cada livro; em geral, não tenho outros”, explica. Mas, Changuito, apesar de suas diatribes contra a falta de leitura geral, nunca se publicou tanto livro como hoje. Compra-se muito e lê-se pouco, então? Livro virou fetiche? “No dizer de Mario Cesariny, ‘há tanta maneira de compor uma estante’... Vi uma arquiteta, paga para desenhar uma casa, receber pra comprar livros, pois os donos não tinham. Gosta-se muito de acumular, ter muitas coisas, mostrar a casa cheia de quadros. É coisa de dentistas, médicos, mostrar diplomas, quadros; gente que nunca foi a museus — mas têm na mesa a Caras. A bibliofilia é só um desejo de colecionar: por acaso é livro, não é sapato, automóvel. Comprei muitas primeiras edições, mas isso nunca foi desligado do meu amor àquela obra”, desenvolve.

E afinal, Changuito, poesia é mesmo uma coisa inútil? “Discordo totalmente”, tosse, acendendo de novo o cachimbo. “Como é o ponto mais alto da palavra, a poesia pode formar sujeitos mais preparados, que percebam o seu lugar e o do outro no mundo, que aprendam a falar de si, do outro. Não se pode fazer nada grande sem muita leitura. Por isso nunca senti necessidade de escrever. Só valeria a pena se fosse Camões ou Haroldo. Já se disse tanta coisa sobre tudo, que vou dizer?” E fim de papo.

Quer dizer: antes, Changuito oferece mais cerveja e mostra mais quitutes de sua coleção. O repórter sai informado, porém mais suado, trôpego e pobre do que quando entrou. É um perigo esse Dom Quixote lusitano. 

RONALDO BRESSANE, jornalista e escritor, publicou, entre outros, os livros Céu de Lúcifer e O impostor.
MARCOS MICHAEL, fotógrafo.

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